domingo, 21 de fevereiro de 2016

ENTRE MORTOS E FERIDOS 
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)

romance 

Por Joaquim A. Rocha 




8.º Capítulo

EM VÉSPERAS DA PARTIDA

     Naquela tarde de domingo, e devido a terem chegado depois da hora habitual, os dois amigos não acharam nenhuma mesa vazia no Café Suiça. Nem na esplanada, do lado da Praça da Figueira, conseguiram arranjar um lugar. De mútuo acordo dirigiram-se ao Café Gelo, também na Praça do Rossio. Podiam ter ido ao Nicola, mas esse estava sempre cheio. Depois de sentados, e aguardando a sua vez para serem atendidos, Henrique, roído de curiosidade, tudo querendo saber, interroga:

- Os seus passos encaminharam-se para Melgaço, suponho.
- Não, meu amigo. Na minha terra já não tinha familiares chegados, apenas primos em terceiro grau. Fui para Lisboa, para um lindo bairro chamado das Laranjeiras, pertinho do Jardim Zoológico, para casa da minha irmã Ludovina; se tivesse ido ao Minho provavelmente desertaria – não me agradava nada a ideia de ir combater para as matas dos cafres. Caga na saquinha como eu era, amedrontado como andava, não me seria difícil passar a fronteira, dar às de vila diogo.
  
     O amigo ficou com algumas dúvidas e pergunta, meio atarantado:

- Mas, se não possuía dinheiro, ia para onde?!

     Cândido, apercebendo-se da contradição, responde:

- O drama era esse. O maldito metal. Sempre a atrapalhar a minha vida. Enfim, sonhos! Durante esses dias pouco mais fiz do que meditar. Ia de vez em quando até à janela, olhava o exterior como numa despedida definitiva. Uma manhã ouvi alguém a cantar. Parecia ser a voz da sopeirinha, cujos patrões moravam ali defronte. Não me recordo nitidamente do seu rosto, mas aquele som entrou em mim como um canto de sereia e apaziguou o meu ânimo, acalmou a minha ira. Podia ser coincidência, mas até parece que a melodia fora feita só para mim.
- Você é um romântico!
- Talvez seja. Sensibilizou-me tanto, tanto, que peguei num papel e numa caneta e escrevi os versos seguintes:

                              Rosa Maria
                              minha linda flor
                              eu a ti daria
                              todo o meu amor;
                              lindos olhos teus Maria
                              minha rosa em flor
                              eu por eles capaz seria
                              de matar morrer amor;
                              se ouvires dizer, Maria,
                              que uma bala me deu fim
                              reza sempre um padre nosso
                              em cada dia por mim;
                              vou partir para combater
                              em favor desta nação
                              vou à minha obrigação
                              desta pátria defender;
                              posso ter vida ou morrer
                              ter tristeza ou alegria
                             posso ainda voltar um dia
                             à minha terra natal;
                             não creias de mim o mal
                             se ouvires dizer, Maria;
                             eu um dia voltarei
                             à minha terra tão querida
                             cheio de força e de vida
                             e feliz ainda serei;
                             parto a cumprir uma lei
                             à qual fugir não posso
                             vou defender o que é nosso
                             o que é teu e da nação
                             e tu à noite, ao serão,
                             reza sempre um padre nosso;
                             posso muito tempo estar
                             sem te poder escrever
                             mas eu juro, podes crer,
                             que contigo hei-de casar;
                             se uma bala me matar
                             ou tiver um outro fim
                             só por isso, só assim,
                             não cumpro o meu juramento;
                             tu reza sempre um momento
                             em cada dia por mim.   


     Henrique ouviu com algum assombro estes versos. Comenta:

- Não lhe conhecia essa faceta, essa veia poética. Ela adorou…
- Qual quê! A sopeira nunca leu este ingénuo poema, o mais certo também era ela não saber ler, nem sequer soube da minha presença naquele local. O nome que lhe atribuí podia ter sido outro qualquer, simplesmente este soou-me bem ao ouvido e é óptimo para rimar.
- E depois, o que aconteceu? – interroga, enternecido, o nosso Henrique.
- Bem, vagueei pelas ruas da cidade de Ulisses, olhar perdido e distante, coração amarfanhado, chocho e só. Podes crer, meu caro amigo, que várias vezes me apeteceu escapulir, pirar-me, desaparecer do mapa: mas iria para onde?! Logo a seguir seria preso, metido num barco ou num avião e atirado na mesma para as matas africanas, desterrado – todos nós tínhamos plena consciência disso. O regime não perdoava àqueles que o contrariassem. Para evitar as fileiras do exército havia apenas duas maneiras: 1.ª - não comparecer à inspecção militar e de imediato emigrar clandestinamente (se a sorte favorecesse o candidato a emigrante este nunca vestiria a farda; se tivesse azar…); 2.ª - ter amigos poderosos no sistema e através dum pedido sair livre da inspecção médica.
- E por amparo de mãe, por doença?
- Nessa época até os coxos e aqueles que tinham falta de dedos nas mãos, desde que possuíssem o do gatilho, eram considerados aptos! Somente os desprovidos de vista, os privados de pernas e braços, os filhos únicos, cuja mãe fosse viúva e apresentasse uma declaração de extrema pobreza, passada pela Repartição de Finanças e pela Junta de Freguesia, alegando que ele era o seu exclusivo amparo, é que se livravam. De resto tudo servia. Dou-te um exemplo: na minha Companhia havia um colega com a altura aproximada de metro e meio – quase um pigmeu!
- Ouvi dizer que alguns indivíduos, filhos de gente graúda, se safaram da tropa, pagando. Terá algum laivo de veracidade?
- De certo modo, já te respondi a essa questão. Sabes, o vil metal compra quase tudo e a quase toda a gente! É de admitir que alguns pais ricos e influentes tudo fizessem, tudo tentassem, para livrar os seus rebentos da maldita e indesejável guerra colonial. Eu dei-te o exemplo do ricaço, filho de proprietários de agências de viagens. Por outro lado, há sempre alguém que aceita dinheiro em troca de favores. A corrupção faz parte de qualquer sociedade. A honestidade, a moral, não é para toda a gente – muitos aproveitam-se do lugar destacado que ocupam para conseguirem obter rendimentos ilícitos. E há uma coisa que eu aprendi: a ideologia, que nos obriga a ser coerentes, é posta de parte por alguns quando lesa interesses materiais.
- Nem sempre o que se diz corresponde à verdade – comenta Henrique, ainda na verdura dos seus anos.
- A corrupção e a chantagem sempre existiram, fazem parte da luta pela sobrevivência. Só se é perfeito quando tudo se alcança, daí não haver ninguém perfeito! Há santos nos altares que foram refinados patifes; e alguns seres humanos morreram desonrados sendo eles boas pessoas! Tudo faz parte de um percurso irregular, um caminhar aos solavancos. Até o deus dos cristãos errou, segundo a bíblia: criou o universo, criou o homem à sua semelhança, e o que aconteceu? Adão sentiu-se só e quis uma companheira. Tiveram dois filhos: Abel e Caim, e, este último, mata, sem dó nem piedade, o seu mano! E chamam a isso, perfeição?!  
- O meu amigo Cândido é um filósofo. Eu estou de acordo consigo nalgumas coisas. A cunha, por exemplo: é uma instituição nacional, todos a ela recorrem – uns para conseguir um bom emprego, outros para subirem na carreira, outros até para obterem uma simples consulta médica! Ninguém pode passar sem recorrer à maldita; além disso todas as sociedades geram privilegiados. Os nossos pais ensinam-nos a ser correctos, bons cidadãos, mas depois a vida não permite que a gente se sirva amiúde dessas virtudes! Se nos comportarmos sempre bem somos tidos por lorpas e todos nos enganam, porque somos bonzinhos. É complexa a vida.

     Cândido, depois de beber calmamente a sua imperial, diz ao amigo:


- Caro Rique, tu és muito jovem, muita coisa ainda irás observar neste mundo belo e diabólico, mas desde já te aconselho: procura sempre o equilíbrio. O radicalismo não nos leva a lado nenhum. Não embarques em fanatismos religiosos nem em ideologias baratas. A vida é o somatório de muitos acontecimentos. Mas não falemos mais nessas coisas, senão esgotamos o assunto e depois ficamos calados como mudos. Até breve.

Sem comentários:

Enviar um comentário