ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
romance
Por Joaquim A. Rocha
8.º Capítulo
EM VÉSPERAS DA PARTIDA
Naquela tarde de domingo, e devido
a terem chegado depois da hora habitual, os dois amigos não acharam nenhuma
mesa vazia no Café Suiça. Nem na esplanada, do lado da Praça da Figueira,
conseguiram arranjar um lugar. De mútuo acordo dirigiram-se ao Café Gelo,
também na Praça do Rossio. Podiam ter ido ao Nicola, mas esse estava sempre
cheio. Depois de sentados, e aguardando a sua vez para serem atendidos,
Henrique, roído de curiosidade, tudo querendo saber, interroga:
- Os seus passos encaminharam-se para Melgaço,
suponho.
- Não, meu amigo. Na minha terra já não
tinha familiares chegados, apenas primos em terceiro grau. Fui para Lisboa,
para um lindo bairro chamado das Laranjeiras, pertinho do Jardim Zoológico,
para casa da minha irmã Ludovina; se tivesse ido ao Minho provavelmente
desertaria – não me agradava nada a ideia de ir combater para as matas dos
cafres. Caga na saquinha como eu era, amedrontado como andava, não me seria
difícil passar a fronteira, dar às de vila diogo.
O amigo ficou com algumas dúvidas
e pergunta, meio atarantado:
- Mas, se não possuía dinheiro, ia para
onde?!
Cândido,
apercebendo-se da contradição, responde:
- O drama era esse. O maldito metal. Sempre
a atrapalhar a minha vida. Enfim, sonhos! Durante esses dias pouco mais fiz do
que meditar. Ia de vez em quando até à janela, olhava o exterior como numa
despedida definitiva. Uma manhã ouvi alguém a cantar. Parecia ser a voz da
sopeirinha, cujos patrões moravam ali defronte. Não me recordo nitidamente do
seu rosto, mas aquele som entrou em mim como um canto de sereia e apaziguou o
meu ânimo, acalmou a minha ira. Podia ser coincidência, mas até parece que a
melodia fora feita só para mim.
- Você é um romântico!
- Talvez seja. Sensibilizou-me tanto,
tanto, que peguei num papel e numa caneta e escrevi os versos seguintes:
Rosa Maria
minha linda flor
eu a ti daria
todo o meu amor;
lindos olhos teus
Maria
minha rosa em
flor
eu por eles capaz
seria
de matar morrer
amor;
se ouvires dizer,
Maria,
que uma bala me
deu fim
reza sempre um
padre nosso
em cada dia por
mim;
vou partir para
combater
em favor desta nação
vou à minha
obrigação
desta pátria
defender;
posso ter vida ou
morrer
ter tristeza ou
alegria
posso ainda voltar um dia
à minha terra
natal;
não creias de mim
o mal
se ouvires dizer,
Maria;
eu um dia voltarei
à minha
terra tão querida
cheio de força e
de vida
e feliz ainda
serei;
parto a cumprir
uma lei
à qual fugir não posso
vou defender o que
é nosso
o que é teu e da
nação
e tu à noite, ao
serão,
reza sempre um
padre nosso;
posso muito tempo
estar
sem te poder
escrever
mas eu juro, podes
crer,
que contigo hei-de
casar;
se uma bala me
matar
ou tiver um outro fim
só por isso, só
assim,
não cumpro o meu
juramento;
tu reza sempre um
momento
em cada dia por
mim.
Henrique ouviu com algum assombro
estes versos. Comenta:
- Não lhe conhecia essa faceta, essa
veia poética. Ela adorou…
- Qual quê! A sopeira nunca leu este
ingénuo poema, o mais certo também era ela não saber ler, nem sequer soube da
minha presença naquele local. O nome que lhe atribuí podia ter sido outro
qualquer, simplesmente este soou-me bem ao ouvido e é óptimo para rimar.
- E depois, o que aconteceu? – interroga, enternecido, o nosso Henrique.
- Bem, vagueei pelas ruas da cidade de
Ulisses, olhar perdido e distante, coração amarfanhado, chocho e só. Podes
crer, meu caro amigo, que várias vezes me apeteceu escapulir, pirar-me,
desaparecer do mapa: mas iria para onde?! Logo a seguir seria preso, metido num
barco ou num avião e atirado na mesma para as matas africanas, desterrado –
todos nós tínhamos plena consciência disso. O regime não perdoava àqueles que o
contrariassem. Para evitar as fileiras do exército havia apenas duas maneiras:
1.ª - não comparecer à inspecção militar e de imediato emigrar clandestinamente
(se a sorte favorecesse o candidato a
emigrante este nunca vestiria a farda; se tivesse azar…); 2.ª - ter amigos
poderosos no sistema e através dum pedido sair livre da inspecção médica.
- E por amparo de mãe, por doença?
- Nessa época até os coxos e aqueles
que tinham falta de dedos nas mãos, desde que possuíssem o do gatilho, eram
considerados aptos! Somente os desprovidos de vista, os privados de pernas e braços,
os filhos únicos, cuja mãe fosse viúva e apresentasse uma declaração de extrema
pobreza, passada pela Repartição de Finanças e pela Junta de Freguesia,
alegando que ele era o seu exclusivo amparo, é que se livravam. De resto tudo
servia. Dou-te um exemplo: na minha Companhia havia um colega com a altura
aproximada de metro e meio – quase um pigmeu!
- Ouvi dizer que alguns indivíduos,
filhos de gente graúda, se safaram da tropa, pagando. Terá algum laivo de veracidade?
- De certo modo, já te respondi a essa
questão. Sabes, o vil metal compra quase tudo e a quase toda a gente! É de
admitir que alguns pais ricos e influentes tudo fizessem, tudo tentassem, para
livrar os seus rebentos da maldita e indesejável guerra colonial. Eu dei-te o
exemplo do ricaço, filho de proprietários de agências de viagens. Por outro
lado, há sempre alguém que aceita dinheiro em troca de favores. A corrupção faz
parte de qualquer sociedade. A honestidade, a moral, não é para toda a gente –
muitos aproveitam-se do lugar destacado que ocupam para conseguirem obter
rendimentos ilícitos. E há uma coisa que eu aprendi: a ideologia, que nos
obriga a ser coerentes, é posta de parte por alguns quando lesa interesses
materiais.
- Nem sempre o que se diz corresponde à
verdade – comenta Henrique, ainda na
verdura dos seus anos.
- A corrupção e a chantagem sempre
existiram, fazem parte da luta pela sobrevivência. Só se é perfeito quando tudo
se alcança, daí não haver ninguém perfeito! Há santos nos altares que foram
refinados patifes; e alguns seres humanos morreram desonrados sendo eles boas
pessoas! Tudo faz parte de um percurso irregular, um caminhar aos solavancos.
Até o deus dos cristãos errou, segundo a bíblia: criou o universo, criou o
homem à sua semelhança, e o que aconteceu? Adão sentiu-se só e quis uma
companheira. Tiveram dois filhos: Abel e Caim, e, este último, mata, sem dó nem
piedade, o seu mano! E chamam a isso, perfeição?!
- O meu amigo Cândido é um filósofo. Eu
estou de acordo consigo nalgumas coisas. A cunha, por exemplo: é uma
instituição nacional, todos a ela recorrem – uns para conseguir um bom emprego,
outros para subirem na carreira, outros até para obterem uma simples consulta
médica! Ninguém pode passar sem recorrer à maldita; além disso todas as
sociedades geram privilegiados. Os nossos pais ensinam-nos a ser correctos,
bons cidadãos, mas depois a vida não permite que a gente se sirva amiúde dessas
virtudes! Se nos comportarmos sempre bem somos tidos por lorpas e todos nos
enganam, porque somos bonzinhos. É complexa a vida.
Cândido, depois de beber
calmamente a sua imperial, diz ao amigo:
- Caro Rique, tu és muito jovem, muita
coisa ainda irás observar neste mundo belo e diabólico, mas desde já te
aconselho: procura sempre o equilíbrio. O radicalismo não nos leva a lado
nenhum. Não embarques em fanatismos religiosos nem em ideologias baratas. A vida
é o somatório de muitos acontecimentos. Mas não falemos mais nessas coisas,
senão esgotamos o assunto e depois ficamos calados como mudos. Até breve.
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