LINA - Filha de Pã
romance
Por Joaquim A. Rocha
// continuação...
O diálogo prolongou-se por mais algum tempo, até que Clara
ordena à filha:
- Vai preparar as tuas roupinhas que amanhã vamos as duas à
Vila arranjar uns patrões para ti. Já me disseram que o Senhor Doutor Juiz
precisa de uma criada, a rapariga que lá estava adoeceu e foi para a terra
dela.
- Está bem, minha mãe, vou a correr.
Deviam ser cinco da manhã quando Clara acorda
a filha.
- Levanta-te, são horas de arrancar. Temos que estar lá
antes das nove. Depois o Senhor Doutor Juiz vai para o Tribunal.
- É tão cedo, mãe, não posso estar mais um bocadinho na
cama?
- Não é possível, levanta-te.
A rapariga deu um
salto do leito, vestiu a roupa e dirigiu-se à cozinha a fim de comer uma malga
de água-de-unto com broa. Era só ferver a água, colocar lá dentro um bocado de
unto, e já estava. O estômago ficava aconchegado durante duas ou três horas.
- Lina, despacha-te, e não te esqueças de pôr os sapatos
dentro da cesta, para chegarem a Melcarte limpinhos; nós, pelo caminho, vamos
de tamancas.
- Está bem, mãe; quando quiser já podemos ir.
Tomar um duche,
lavar os dentes, aspergir-se com água-de-colónia, não estava nos hábitos dessa
gente. O banho tomava-se uma vez por semana, numa bacia de barro, ou numa pipa
serrada a meio, chamada tina, ou tinalha, num local improvisado para esse
efeito, pois na altura as habitações da aldeia não tinham casas de banho. As
necessidades fisiológicas faziam-se numa retrete improvisada, por cima da corte
do gado, e até se faziam nos campos, encostado a um muro ou detrás de uma
frondosa árvore. A maioria das mulheres rurais não usava cuecas, pelo que lhes
era fácil urinar por entre a saia. Punham-se a jeito, e já estava!
O caminho era
longo, mas como era sempre a descer e, como sói dizer-se, «a descer todos os santos ajudam», não demoraram sequer duas horas.
Utilizaram atalhos, por entre milheirais, atravessaram um regato, quase seco
nessa altura do ano, e começaram a ver as primeiras habitações da Vila e
sobretudo a torre de menagem do castelo, chamado outrora, segundo afirmam os historiadores,
«Fortaleza do Minho». Nada daquilo
lhes era estranho, costumavam ir à feira semanal vender uns frangos, ovos,
produtos agrícolas, enfim tudo aquilo que se pudesse transformar nuns escudos
para poderem comprar arroz, azeite, bacalhau, carapaus e sardinhas, etc., bens
que eles não produziam.
- Lina, estamos na Vila. Vamos direitinhas à vivenda do Senhor
Doutor Juiz – eu já sei onde ele mora. Temos que ter cuidado com o cão, é dos
grandes e ferozes. Foi treinado para guardar casas e quintas. É capaz de esfarrapar
uma pessoa, se não a conhece; depois de se habituar a nós já não nos faz mal,
pelo contrário, tudo fará para nos defender.
- Ó mãe, o raio do cão ainda se vai meter connosco.
- Não te assustes, porque nós não entramos; só se formos
acompanhadas pelo seu dono. Além disso, está preso à corrente. Quando te
conhecer até obedece às tuas ordens, vais ver.
- Oxalá seja assim. Eu até gosto de cães, convivo com eles
desde pequenina, mas este mete-me medo. Só aqueles olhos…
- Sossega. Ele não salta o muro. Dizem que é da alta serra,
um lobeiro puro-sangue; pelo tamanho e cor, deve ser.
Chegaram
finalmente à porta do juiz. Tocaram um badalo colocado junto ao portão e uma
voz potente fez-se ouvir:
- Quem está aí à porta?
- É a nova candidata a criada, Senhor Doutor Juiz. Podemos
entrar?
- Só um momento. Tenho que chamar o Leão.
Dentro de dois
minutos apareceu o juiz. Era alto, elegante, com um bigode bem aparado, muito
bem vestido, cheirava a limpo, via-se que era pessoa asseada. Clara e a filha
olharam para ele com respeito, algo intimidadas, e esperaram que fosse ele o
primeiro a falar.
- Qual das duas quer ser a minha empregada? – perguntou, embora já calculasse que era a mais
nova. Não queria ferir susceptibilidades.
- É a minha filha Lina, Senhor Doutor Juiz. Nunca trabalhou
em nenhuma casa, mas eu ensinei-lhe a fazer tudo: na cozinha e nos quartos.
- Está bem. Espero que não me desiluda. O ordenado já deve
saber: são duzentos escudos por mês. Para começar não é mal. Entrem, para verem
a moradia. Eu daqui a pouco tenho que sair. Vais tratar-me primeiro do quarto e
depois vais para a cozinha. Por enquanto moro aqui sozinho, por isso o trabalho
não é muito.
A habitação não
era muito grande. Na parte de cima tinha três quartos, uma sala, uma cozinha
com despensa. Na parte de baixo existia espaço para um ou dois automóveis, e
ainda para se fazer, quem assim o quisesse, algum trabalho artesanal. Havia um
pequeno tanque e um estendal para secar a roupa. Nessa altura ainda não andavam
por ali as máquinas de roupa. Cozinhava-se a carvão ou a lenha. Havia lojas ali
perto que vendiam de tudo – houvesse dinheiro para comprar.
O juiz antes de
sair prendeu o cão a um arame comprido, não fosse o diabo tecê-las, e assim também
o animal podia andar um pouco de um lado para o outro. Clara, depois do Senhor
Juiz sair, virou-se para a filha e disse-lhe:
- Esta vai ser a tua nova casa. Respeita o patrão, não
escutes conversas, e sobretudo não mexas nos seus papéis. Arruma tudo como deve
ser e não te metas em namoricos com os rapazes da Vila, olha que têm fama de
malandros e de pelintras.
- Está bem, mãe. Não se preocupe, vai correr tudo bem. Não se
esqueça que já tenho quinze anos.
- Eu sei; és já uma senhorinha.
Despediram-se com
um abraço, e Lina dirigiu-se para dentro da residência – o trabalho estava à
sua espera. Fez a cama do juiz, limpou o quarto, o chão estava a precisar de
cera, mas isso ficaria para outra altura. Teve o máximo cuidado para não partir
umas bugigangas que o magistrado tinha em cima de um móvel, mirou as
fotografias, que gente fina, rostos bonitos, roupas caras, aquilo é que era
gente de classe!
Ela nunca passaria da cepa torta, pensava. Sem
instrução, sem nenhuma beleza especial, apenas aqueles olhos que penetravam a
alma dos mortais. Em casa, quando fitava demoradamente o gato, ou o cão,
conseguia que eles adormecessem profundamente. Era um dom que ela possuía. Esse,
ninguém lho tiraria.
Passou revista a
toda a habitação, um dos quartos estava vazio, o outro, mais pequeno, possuía
uma cama de ferro, uma mesinha de cabeceira, uma arca com roupas. Nada de
luxos. «Deve ser o quarto da criada»,
pensou. Dirigiu-se à cozinha. Viu o que havia: alguma carne, peixe, duas postas
de bacalhau a demolhar. Delineou rapidamente o almoço: bacalhau cozido com
batatas e couves. O Senhor Doutor tinha uma pequena horta e as couves estavam
no ponto de se apanhar. Tinha que pedir algum dinheiro ao patrão para fazer
compras: azeite, arroz, massa, etc. – a despensa estava quase vazia. Acendeu o
lume, pôs água a ferver, e dirigiu-se à horta a fim de colher a hortaliça. As
ervas daninhas já começavam a aparecer, pelo que havia necessidade de as
arrancar. Precisava também de mais variedade: umas nabiças, pimentos, penca,
repolho, etc. «A outra criada não cuidava
muito bem da horta», pensou.
Passava pouco do meio-dia quando chega o Senhor
Doutor.
- Está tudo a correr bem?
- Sim, Senhor Doutor Juiz. O jantar já está pronto, já se
pode sentar à mesa.
- Não é jantar, é almoço! Nos meios rurais é que se chama
assim. Nós, na vila ou cidade, dizemos pequeno-almoço de manhã cedo, almoço ao
meio-dia, e jantar às sete e meia da tarde, ou da noite. E já agora, como é que
te chamas? A tua mãe disse-me o teu nome, mas eu não fixei.
- Chamo-me Lina, mas na aldeia toda a gente me trata por Pràlina.
- Pràlina?! – admirou-se,
esboçando um sorriso.
- Sim. Foram as minhas colegas da escola que me puseram essa
nomeada.
- Eu prefiro chamar-te Lina. É o teu nome e fica-te bem. Assenta-te
que nem uma luva. E agora vamos almoçar.
Serviu o
magistrado na sala e ela ficou a comer na cozinha, numa mesa pequena que ali
estava. Os criados não estavam autorizados a comer à mesma mesa do patrão. O
juiz chamou a rapariga e pediu-lhe:
- Vais à garagem e trazes de lá uma garrafa de vinho tinto.
Não te demores.
- Vou numa perna e venho noutra, Senhor Doutor.
De facto na
garagem havia diversas garrafas de vinho, branco e tinto, do verde, ofertas de
lavradores. Também lá se via um presunto pendurado, algumas cebolas e alhos,
uma barrica com batatas, alguma fruta. O juiz tratava-se bem, pensou ela. Antes
do magistrado voltar para o tribunal pediu-lhe algum dinheiro.
- É para comprar algumas coisas que faltam – disse ela.
- Toma uma nota de cinquenta escudos, deve chegar. E o que
vais fazer para o jantar?
- Tenho ali carne de vaca, se calhar fazia-a com massa.
- Óptimo. Parece que escolhi bem a serviçal. És ainda muito
nova, mas a tua mãe ensinou-te bem. Hã! já me esquecia: tu vais dormir no
quarto pequeno, tens roupa de cama no baú. Põe nesse quarto as tuas pertenças.
Quando fores às compras adquire um avental para ti, para não te sujares.
- Está bem, Senhor Doutor, cumprirei todas as ordens.
// continua...
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