domingo, 28 de fevereiro de 2016

LINA - Filha de Pã
romance

Por Joaquim A. Rocha


// continuação...

O diálogo prolongou-se por mais algum tempo, até que Clara ordena à filha:

- Vai preparar as tuas roupinhas que amanhã vamos as duas à Vila arranjar uns patrões para ti. Já me disseram que o Senhor Doutor Juiz precisa de uma criada, a rapariga que lá estava adoeceu e foi para a terra dela.
- Está bem, minha mãe, vou a correr.

      Deviam ser cinco da manhã quando Clara acorda a filha.

- Levanta-te, são horas de arrancar. Temos que estar lá antes das nove. Depois o Senhor Doutor Juiz vai para o Tribunal.
- É tão cedo, mãe, não posso estar mais um bocadinho na cama?
- Não é possível, levanta-te.         

     A rapariga deu um salto do leito, vestiu a roupa e dirigiu-se à cozinha a fim de comer uma malga de água-de-unto com broa. Era só ferver a água, colocar lá dentro um bocado de unto, e já estava. O estômago ficava aconchegado durante duas ou três horas.

- Lina, despacha-te, e não te esqueças de pôr os sapatos dentro da cesta, para chegarem a Melcarte limpinhos; nós, pelo caminho, vamos de tamancas.
- Está bem, mãe; quando quiser já podemos ir.

     Tomar um duche, lavar os dentes, aspergir-se com água-de-colónia, não estava nos hábitos dessa gente. O banho tomava-se uma vez por semana, numa bacia de barro, ou numa pipa serrada a meio, chamada tina, ou tinalha, num local improvisado para esse efeito, pois na altura as habitações da aldeia não tinham casas de banho. As necessidades fisiológicas faziam-se numa retrete improvisada, por cima da corte do gado, e até se faziam nos campos, encostado a um muro ou detrás de uma frondosa árvore. A maioria das mulheres rurais não usava cuecas, pelo que lhes era fácil urinar por entre a saia. Punham-se a jeito, e já estava!   
     O caminho era longo, mas como era sempre a descer e, como sói dizer-se, «a descer todos os santos ajudam», não demoraram sequer duas horas. Utilizaram atalhos, por entre milheirais, atravessaram um regato, quase seco nessa altura do ano, e começaram a ver as primeiras habitações da Vila e sobretudo a torre de menagem do castelo, chamado outrora, segundo afirmam os historiadores, «Fortaleza do Minho». Nada daquilo lhes era estranho, costumavam ir à feira semanal vender uns frangos, ovos, produtos agrícolas, enfim tudo aquilo que se pudesse transformar nuns escudos para poderem comprar arroz, azeite, bacalhau, carapaus e sardinhas, etc., bens que eles não produziam.

- Lina, estamos na Vila. Vamos direitinhas à vivenda do Senhor Doutor Juiz – eu já sei onde ele mora. Temos que ter cuidado com o cão, é dos grandes e ferozes. Foi treinado para guardar casas e quintas. É capaz de esfarrapar uma pessoa, se não a conhece; depois de se habituar a nós já não nos faz mal, pelo contrário, tudo fará para nos defender.

- Ó mãe, o raio do cão ainda se vai meter connosco.
- Não te assustes, porque nós não entramos; só se formos acompanhadas pelo seu dono. Além disso, está preso à corrente. Quando te conhecer até obedece às tuas ordens, vais ver.
- Oxalá seja assim. Eu até gosto de cães, convivo com eles desde pequenina, mas este mete-me medo. Só aqueles olhos…  
- Sossega. Ele não salta o muro. Dizem que é da alta serra, um lobeiro puro-sangue; pelo tamanho e cor, deve ser.
       
     Chegaram finalmente à porta do juiz. Tocaram um badalo colocado junto ao portão e uma voz potente fez-se ouvir:

- Quem está aí à porta?
- É a nova candidata a criada, Senhor Doutor Juiz. Podemos entrar?
- Só um momento. Tenho que chamar o Leão.

     Dentro de dois minutos apareceu o juiz. Era alto, elegante, com um bigode bem aparado, muito bem vestido, cheirava a limpo, via-se que era pessoa asseada. Clara e a filha olharam para ele com respeito, algo intimidadas, e esperaram que fosse ele o primeiro a falar.

- Qual das duas quer ser a minha empregada? – perguntou, embora já calculasse que era a mais nova. Não queria ferir susceptibilidades.
- É a minha filha Lina, Senhor Doutor Juiz. Nunca trabalhou em nenhuma casa, mas eu ensinei-lhe a fazer tudo: na cozinha e nos quartos.
- Está bem. Espero que não me desiluda. O ordenado já deve saber: são duzentos escudos por mês. Para começar não é mal. Entrem, para verem a moradia. Eu daqui a pouco tenho que sair. Vais tratar-me primeiro do quarto e depois vais para a cozinha. Por enquanto moro aqui sozinho, por isso o trabalho não é muito.

     A habitação não era muito grande. Na parte de cima tinha três quartos, uma sala, uma cozinha com despensa. Na parte de baixo existia espaço para um ou dois automóveis, e ainda para se fazer, quem assim o quisesse, algum trabalho artesanal. Havia um pequeno tanque e um estendal para secar a roupa. Nessa altura ainda não andavam por ali as máquinas de roupa. Cozinhava-se a carvão ou a lenha. Havia lojas ali perto que vendiam de tudo – houvesse dinheiro para comprar.    
     O juiz antes de sair prendeu o cão a um arame comprido, não fosse o diabo tecê-las, e assim também o animal podia andar um pouco de um lado para o outro. Clara, depois do Senhor Juiz sair, virou-se para a filha e disse-lhe:

- Esta vai ser a tua nova casa. Respeita o patrão, não escutes conversas, e sobretudo não mexas nos seus papéis. Arruma tudo como deve ser e não te metas em namoricos com os rapazes da Vila, olha que têm fama de malandros e de pelintras.
- Está bem, mãe. Não se preocupe, vai correr tudo bem. Não se esqueça que já tenho quinze anos.
- Eu sei; és já uma senhorinha.

     Despediram-se com um abraço, e Lina dirigiu-se para dentro da residência – o trabalho estava à sua espera. Fez a cama do juiz, limpou o quarto, o chão estava a precisar de cera, mas isso ficaria para outra altura. Teve o máximo cuidado para não partir umas bugigangas que o magistrado tinha em cima de um móvel, mirou as fotografias, que gente fina, rostos bonitos, roupas caras, aquilo é que era gente de classe!

      Ela nunca passaria da cepa torta, pensava. Sem instrução, sem nenhuma beleza especial, apenas aqueles olhos que penetravam a alma dos mortais. Em casa, quando fitava demoradamente o gato, ou o cão, conseguia que eles adormecessem profundamente. Era um dom que ela possuía. Esse, ninguém lho tiraria.
     Passou revista a toda a habitação, um dos quartos estava vazio, o outro, mais pequeno, possuía uma cama de ferro, uma mesinha de cabeceira, uma arca com roupas. Nada de luxos. «Deve ser o quarto da criada», pensou. Dirigiu-se à cozinha. Viu o que havia: alguma carne, peixe, duas postas de bacalhau a demolhar. Delineou rapidamente o almoço: bacalhau cozido com batatas e couves. O Senhor Doutor tinha uma pequena horta e as couves estavam no ponto de se apanhar. Tinha que pedir algum dinheiro ao patrão para fazer compras: azeite, arroz, massa, etc. – a despensa estava quase vazia. Acendeu o lume, pôs água a ferver, e dirigiu-se à horta a fim de colher a hortaliça. As ervas daninhas já começavam a aparecer, pelo que havia necessidade de as arrancar. Precisava também de mais variedade: umas nabiças, pimentos, penca, repolho, etc. «A outra criada não cuidava muito bem da horta», pensou.
     Passava pouco do meio-dia quando chega o Senhor Doutor.

- Está tudo a correr bem?
- Sim, Senhor Doutor Juiz. O jantar já está pronto, já se pode sentar à mesa.
- Não é jantar, é almoço! Nos meios rurais é que se chama assim. Nós, na vila ou cidade, dizemos pequeno-almoço de manhã cedo, almoço ao meio-dia, e jantar às sete e meia da tarde, ou da noite. E já agora, como é que te chamas? A tua mãe disse-me o teu nome, mas eu não fixei.
- Chamo-me Lina, mas na aldeia toda a gente me trata por Pràlina.
- Pràlina?! – admirou-se, esboçando um sorriso.
- Sim. Foram as minhas colegas da escola que me puseram essa nomeada.
- Eu prefiro chamar-te Lina. É o teu nome e fica-te bem. Assenta-te que nem uma luva. E agora vamos almoçar.

     Serviu o magistrado na sala e ela ficou a comer na cozinha, numa mesa pequena que ali estava. Os criados não estavam autorizados a comer à mesma mesa do patrão. O juiz chamou a rapariga e pediu-lhe:         

- Vais à garagem e trazes de lá uma garrafa de vinho tinto. Não te demores.
- Vou numa perna e venho noutra, Senhor Doutor.

     De facto na garagem havia diversas garrafas de vinho, branco e tinto, do verde, ofertas de lavradores. Também lá se via um presunto pendurado, algumas cebolas e alhos, uma barrica com batatas, alguma fruta. O juiz tratava-se bem, pensou ela. Antes do magistrado voltar para o tribunal pediu-lhe algum dinheiro.

- É para comprar algumas coisas que faltam – disse ela.
- Toma uma nota de cinquenta escudos, deve chegar. E o que vais fazer para o jantar?
- Tenho ali carne de vaca, se calhar fazia-a com massa.
- Óptimo. Parece que escolhi bem a serviçal. És ainda muito nova, mas a tua mãe ensinou-te bem. Hã! já me esquecia: tu vais dormir no quarto pequeno, tens roupa de cama no baú. Põe nesse quarto as tuas pertenças. Quando fores às compras adquire um avental para ti, para não te sujares.  

- Está bem, Senhor Doutor, cumprirei todas as ordens.  
// continua...

Sem comentários:

Enviar um comentário