LINA - FILHA DE PÃ
romance
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Luís Filipe Gonzaga Pinto Rodrigues
2.º Capítulo
O tempo foi
passando. A Lina, endiabrada, já conhecia toda a gente dos arredores. Entrava
nas casas das pessoas, com um à-vontade incrível. Fazia imensos recados, e em
troca recebia umas côdeas de pão e às vezes uns ovos para que a sua mãe lhe
fizesse umas gemadas, a fim de ela crescer e tornar-se mulher. Um dia, próximo
do natal, estando reunida com um grupo de raparigas amigas, começaram a trocar prendas
entre si. Uma delas, que pronunciava muito mal as palavras, por ser gaga, diz:
- Esta boneca é prà.., é prà…, Li… Li… Lina.
As outras riram e gozaram:
- É Pràlina! É Pràlina!
E a alcunha nasceu
e pegou. Passado algum tempo toda a turma do lugar a tratava por Pràlina. As
raparigas e rapazes da sua idade brincavam com ela: «Pràlina malina, menina ladina.» Afinava e atirava pedras aos
rapazes, mas eles fugiam dela como o diabo da cruz. Aqueles olhos verdes,
penetrantes, infiltravam-se na alma do mais afoito. Todos a temiam, até o sacerdote!
Agora andava sempre com a cruz de Cristo ao peito, não fosse o diabo tecê-las. A
Lina, sabendo que a temiam, exagerava. Costumava dizer às crianças da sua
idade:
- Sabem, eu tenho poderes ocultos; quando olho muito tempo
para uma janela, posso partir-lhe os vidros! Se olho fixamente para uma ave ela
cai do ramo!
Elas acreditavam, e por isso pediam-lhe com
veemência:
- Lina: não faças essas coisas, depois as pessoas adultas batem-te.
Ela ria-se com gosto, e respondia:
- Estejam descansadas: eu não quero fazer mal a ninguém; mas
se me tratarem como a um cão raivoso, ou como a um sapo nojento, eu mostro-lhes
do que sou capaz. – E continuou com as
suas pantominices.
Nesse dia a conversa
ficou por ali, pois a sua mãe chamou-a e ela teve de ir para casa. O pai já
tinha regressado de fora, mas vinha com uma doença grave, a maldita
tuberculose. O médico aconselhou-o a ir fazer tratamento para o Caramulo, mas
ele adiava sempre, na esperança de melhorar.
- Ó Sileno, vai para o Caramulo, aqui acabas por morrer. E é
pena, porque ainda és um homem novo.
- E o dinheiro para a viagem, Senhor Doutor?
- Pede à Santa Casa da Misericórdia, não é nenhuma fortuna.
Eu também contribuo com qualquer coisa. Se for necessário faz-se uma subscrição
pública.
E graças à
iniciativa do clínico, um certo dia o Sileno meteu-se na carreira no lugar do Couto,
junto às Termas, até à Vila de Monção, e dali partiu no comboio para aquela
estância de repouso.
Os políticos locais bem tinham lutado pelo caminho-de-ferro, «uma obra de grande necessidade»,
segundo afirmavam, mas nunca conseguiram trazê-lo até à sua terra; a estação do
comboio do concelho vizinho fora inaugurada em 1915, com foguetes e fanfarra. Estes
ficaram à espera, sentados. «Não há verba»,
diziam os governantes. Mas para gastar fortunas na I Grande Guerra, sobretudo a
partir de 1917, e para outras coisas menos importantes e supérfluas, apareceu!
**
Na primeira
segunda-feira de Setembro de 1926 a Lina foi para a escola. Ficava quase a um
quilómetro da sua casa. O seu lugar de nascimento, chamado Pomarães, ficava num
alto, já no início da montanha, e os invernos começavam mais cedo do que nas
freguesias ribeirinhas, perto do rio Minho. Foi na companhia de outras
raparigas e rapazes e, como era a descer, depressa chegaram à escola. Era no
antigo convento e havia instalações para ambos os sexos. As salas eram assaz pequenas,
as carteiras minúsculas, o que valia era que as crianças também eram
pequeninas, algumas mesmo raquíticas, e assim lá iam cabendo dentro daquele
espaço exíguo.
A professora Olívia
chamou as alunas pelo seu nome próprio e algumas delas não respondiam, porque,
embora presentes, sempre tinham sido tratadas por alcunhas, e desconheciam o
seu verdadeiro nome.
- Lina Cancela!
A cachopa
levantou-se e disse:
- Sou eu, senhora professora. Mas todos me chamam Pràlina.
A mestra pensou
um bocado e observou:
- Aqui na sala de aulas és Lina; lá fora que te tratem como
quiserem. E o mesmo serve para as tuas companheiras.
As primeiras
aulas foram interessantes. O livro da primeira classe trazia algumas imagens
engraçadas e as moças divertiam-se à grande com elas. Passado algum tempo, as garotas
já estavam fartas do livro, da loisa, do quadro negro, do giz – irritante para
caraças – e até da professora, sempre aos gritos, sempre zangada, sempre pronta
a malhar com a cana-da-índia ou com a régua. Todos os dias aquilo. Era uma
autêntica prisão, um sacrifício quase inútil, segundo a mentalidade da época.
- E para quê? – perguntava
constantemente o avô materno. – Para quê? Eu não fui à escola e estou aqui:
casei, tive filhos, agora tenho netos. Aprendi quase tudo sobre lavoura, trabalhei,
e trabalho, como um moiro, e tinha que vergar a espinha na mesma se tivesse
tirado a instrução primária. Exemplos não faltam aqui no lugar: o Tibúrcio tem
a quarta classe, e para que lhe serve? Mal sabe ler e escrever, esqueceu tudo
aquilo que aprendera nas aulas. Até tem dificuldade em assinar o nome dele. Pede-se-lhe
para escrever uma carta e diz logo que não tem tempo! Os filhos do Zé Cortiça,
esses sim: foram os dois para padre e agora estão bem. Até dizem que um deles,
o mais novo, o senhor cónego, vai chegar a bispo!
- Da maneira que falas, até parece que tens inveja deles!
Não me digas que querias ser sacerdote?! – desabafa
a Clotilde, despeitada.
- Lá estás tu com os teus ciúmes, mulher! Reconheço que eles
vivem bem, são ilustres, considerados e respeitados por toda a gente, mas eu
não gostava de ser cura. Não tinha paciência para estudar aqueles anos todos no
Seminário. E ir para a cidade, para longe dos meus pais, dos meus irmãos, da
minha terra e dos meus amigos, não! Não trocava isto por nada deste mundo.
Nasci para viver aqui: com a lavoura, com a vinha, com o gado, com a minha
família. Não! Padre, nunca!
- Havia de dar um rico clérigo! – diz, a rir, uma das filhas do casal.
- Era como os outros! Não conhecem aquele ditado: «façam o que eu digo, não façam o que eu faço.»
Todos os
presentes se riram com vontade, apesar da piadinha já ser velha e relha!
Conheciam muito bem o que se dizia de alguns párocos do concelho, andavam com
fulana e sicrana, mas os crentes perdoavam-lhes, porque sabiam que eram homens,
e os homens pecam.
- Quem não tiver pecados que atire a primeira pedra – desafiou Clotilde, lembrando-se da sua
juventude. // (continua)...
Sem comentários:
Enviar um comentário