quinta-feira, 6 de março de 2025

 QUADRAS AO DEUS DARÁ

Por Joaquim A. Rocha



// continuação...



666

 

Podia ter sido alguém

Neste mundo desigual;

Mas nasci um zé-ninguém,

Num canto de Portugal.

 

667

 

Sou poeta, sou poeta,

Passo a vida a poetar;

Corro célere para a meta,

Mas nunca lá vou chegar!

 

668

 

Quem me dera ter mil asas

Para eu poder voar;

Caminhar sobre as brasas,

Ser crente para rezar.

 

669

 

Já ganhei muito dinheiro,

Sentia-me um novo-rico;

Era livre, e solteiro,

Rijo como o grão-de-bico!

 

670

 

O casamento, e filhos,

Consomem nosso peteiro;

Meti-me em grandes sarilhos,

Perdi saúde e dinheiro!

 

671

 

Aprendiz de sapateiro,

E aprendiz de alfaiate;

Ganhei rios de dinheiro,

Tive palácio e iate!

 

672

 

Exportei trinta dinheiros

Para a China e Japão;

Enchi os meus mealheiros

De penúria e ilusão!

 

673

 

Andei à lenha, maravalha,

Às pinhas e bons pinhões;

Usei vara e navalha,

Para matar ilusões.

 

674

 

Nasci em Junho ou Julho,

Não sei bem quando nasci;

Fui atirado ao entulho

E no entulho cresci!

 

675

 

O vosso cão ladra, ladra,

Ladra sempre sem parar,

Seja no campo, na estrada,

E na praia à beira mar!

 

676

 

O nosso cão já não ladra,

Morreu ontem ao jantar;

Comeu fígado de cabra,

Sardinhas do baixo mar.

 

677

 

Ai quem me dera ter cão,

Ou gato preto, peludo;

Um grilo de estimação,

A máscara do entrudo!

 

678

 

Não tenho animais em casa

Para evitar as despesas;

Um gato tudo lambaza,

Os ratos limpam as mesas!

 

679

 

Deixai-me agora dormir,

Tenho direito ao descanso;

Passei noites a curtir,

Como tolo, um vil tanso!

 

680

 

Pra rimar nasci um dia,

Numa aldeia sem história;

Nem uma folha bulia,

Nessa terra sem memória.

 

681

 

Lutei nas matas de África,

Contra negros e mestiços;

Não tinha jeito nem prática,

Nem a arte dos feitiços.

 

682

 

Trouxe de lá mil doenças,

Que duraram uma vida;

Não recebi cruz nem tenças,

Apenas raiva incontida.  

 

683

 

Dom Quixote luta em vão

Por mil causas que inventou;

Perdeu o siso, razão,

Mas a fama conquistou!  

 

684

 

Eu não sou o Dom Quixote,

Só luto por uma causa:

Encontrar um belo mote,

Poema longo, sem pausa.

 

685

 

Quem me dera ser poeta,

O maior deste planeta;

Chegar primeiro à meta,

Ao som de uma corneta.

 

686

 

Tenho a ciência de Job,

A sua resignação,

Em dinheiro, sou mui pobre,

Mas rico na ilusão.

 

687

 

Que terra é esta, que terra,

Ninguém a quer compreender;

Seja na praia ou na serra

Todos a fazem sofrer!

 

688

 

Eu moro no universo,

No planeta terreal;

Vive comigo um verso

O mais triste em Portugal.

 

689

 

O Putin é um sacana,

Ele e suas quadrilhas;

Do seu vil corpo dimana

Mau cheiro a cinco milhas.

 

690

 

“Eu vim aqui para ajudar,

 Tu não fazes nada, nada!

Vai para a cama descansar,

Repousa os ossos, camarada”!

 

691

 

Ela, cheia de vontade,

Prometia, prometia,

Mas a douta realidade

Afastava a fantasia.

 

692

 

Trabalhei mais do que dantes,

Muitas horas, muitos dias;

Fiz quadras para descantes,

Orações pra romarias.

 

693

 

Fui criado ao deus dará,

Sem nenhuma proteção;

Virou-me costas Alá,

Desprezou-me o deus cristão!

 

694

 

Não sou padre, não sou monge,

Não sou judeu ou cristão;

Ando sempre perto e longe,

Entre o sonho e a razão.

 

695

 

Já comprei um manjerico

Nas festas de São João,

Mas por aqui não me fico:

Vou comprar teu coração!

 

696

 

Nasci pobre, muito pobre,

Mais pobre do que a pobreza;

Crescido, tornei-me nobre,

Mais nobre do que a nobreza!

 

697

 

Já tive outrora amigos,

Eram cem ou muito mais;

Agora, nem inimigos

À minha espera no cais!

 

698

 

Perdi o tempo, e o vento

Transporta-me no espaço;

Sou apenas pensamento,

No seu áspero abraço.

 

699

 

Minha memória já falha,

Esqueço constantemente

O percurso e a tralha,

Té dormir e dar ao dente!

 

700

 

Há quem diga que a idade,

Após a aposentação,

Traz-nos a felicidade,

Mas é tudo ilusão!

 

701

 

A idade, sobe, sobe,

Nunca para de subir;

É um mundo que se move,

Entre ontem e o devir! 

 

702

 

Ai quem me dera chorar

No teu suave regaço,

Lágrimas com sal do mar,

Inundando céu, espaço!

 

703

 

Rússia invadiu Ucrânia,

Um país independente;

Matou Maria, também Tânia,

Anafado, indigente.

 

704

 

Ninguém está bem na Terra,

Há miséria, furacões;

Em todo o lado há guerra,

Morrem milhares, milhões!

 

705

 

O planeta já aquece,

A temperatura é alta;

O povo, que não merece,

Anda sempre na ribalta.

 

706

 

Dizem que há muita fome

Neste país sem memória;

Come tudo, o lobisome,

A fama, e a história!

 

707

 

Não me atires com mil pedras,

A mim, que não sou ninguém;

Assim não cresces, não medras,

Jamais chegas a Belém!

 

708

 

Eu já fui bom caçador,

De pardais e borboletas;

Nunca cacei um amor,

Mesmo embrulhado em tretas!

 

709

 

Minha amiga, estudante,

Tinha grandes professores;

Um deles, o seu amante,

Dava-lhe perfume e flores.

 

710

 

Andei na vida perdido,

Em busca d´outro destino;

Dei-me um dia por vencido,

Ninguém vinga, por ladino!

 

711

 

Eu nasci no outro mundo,

No útero duma estrela;

Vinha sujinho, imundo,

Livre de canga e trela.


// continua...







Sem comentários:

Enviar um comentário