ENTRE MORTOS E FERIDOS (dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
Por Joaquim A. Rocha
// continuação de 17/09/2023
15.º
Capítulo
TEIXEIRA PINTO
Esta Vila ostentava o nome do major João Teixeira Pinto (1876-1917), «herói da
ocupação militar da Guiné». Em 1912 era Chefe do Estado-Maior. Em 1917, quando
decorria a primeira guerra mundial, dirigiu-se a Moçambique, onde morreu numa batalha
contra os alemães. O PAIGC retirou essa designação logo que a Guiné-Bissau se
tornou independente e batizou-a de Canxungo.
Cândido, depois de ter gozado umas
curtas férias no Alto Minho, encontra de novo o amigo e prossegue a sua narrativa:
- Nesta região, onde a agonia e o sonho
se entrecruzaram, habitavam em grande número os manjacos. Além desta etnia,
havia também os mancanhas e felupes. Estes últimos, que predominavam na outra
margem do rio Cacheu, usavam como armas de caça apenas arcos e setas, cujas
pontas envenenavam para a presa não lhes escapar no caso de ser atingida.
Nessa Vila deparei com alguns indivíduos que me pareceram indianos ou
paquistaneses, mas que depois me disseram ser naturais do Líbano: dedicavam-se
ao comércio, na comprida avenida, cerca de um quilómetro, à volta da qual tudo
girava; aí havia também uma pequena igreja católica, uma escola do ensino
primário (a confirmar), e os lupanares!
Raros eram os autóctones que se vestiam à europeia: apenas uma raquítica
tanga cobria as suas partes pudendas. Raríssimos, também aqueles que falavam a
língua portuguesa: somente os que conviviam mais assiduamente com brancos, ou
exerciam atividades como seus empregados.
Os guineenses, de uma maneira geral, estavam demasiado afastados da
civilização ocidental.
- Como é possível, depois de séculos de
permanência portuguesa! – exclama
Henrique, quase furioso.
- Os portugueses não penetraram no
coração de África como o fizeram no Brasil. Preferiram, por razões de segurança,
manter-se no litoral, perto da costa, onde haveria sempre um barco que
permitisse a fuga em caso de necessidade. Os negros são, de longe, mais perigosos
do que os índios das florestas brasileiras.
Ao longo de milénios, estes povos viveram isolados e a bem dizer só a
partir dos anos sessenta deste século XX, e devido à guerra colonial, é que a
tropa entra nessas densas matas africanas e contacta com as tribos do seu interior.
Muitos portugueses ainda hoje estão convencidos de que na Guiné-Bissau
apenas existia um grupo homogéneo - «o
negro da Guiné lava a cara com café». Isso é completamente falso e
fantasioso. Existiam, e ainda existem, variadíssimas etnias, com culturas próprias,
com chefes distintos, ocupando zonas diferentes, que defendiam, com unhas e
dentes, dos eventuais ataques das outras tribos. Muitos desses grupos étnicos
não se entendiam entre si, porque falavam dialetos distintos, guerreavam, se
motivo houvesse para tal! Uns falavam o balanta, outros o fula, o manjaco, o
mandinga, o felupe, o baiote, bijagó, etc.
- E a língua portuguesa…
- Poucos guineenses a falavam. Sem
escolas do ensino primário espalhadas pelo território era impossível
aprendê-la. Até em Bissau o português era uma terceira língua. O crioulo e o
português começavam timidamente no século XX a desempenhar o papel de línguas
de aproximação entre elas (tribos, ou etnias), e entre elas e os europeus.
No que diz respeito à religião poder-se-á afirmar, sem trair a verdade,
que o animismo, magia, feiticismo, e o islamismo, predominavam; contudo,
começavam já a surgir nas minúsculas cidades e vilas, sedes de concelho,
igrejas católicas. Em Bissau, capital da província, havia uma catedral, com
lugar cativo para o Governador e sua esposa. Nela, todos os domingos, se
celebrava uma missa especial: um verdadeiro espetáculo – a chegada do bispo, do
governador e sua comitiva (na altura em
que eu por lá andei exercia esse cargo o general Arnaldo Schutz), a chegada
dos burgueses e militares fardados a rigor. Só visto!
- Estava cheia, com certeza…
- A abarrotar. Escusado será dizer-te
que a religião professada pela maioria esmagadora da tropa lusa era a católica;
no entanto, durante os três anos que passei no serviço militar, sobretudo os
dois últimos, cumpridos na Guiné, não encontrei por parte dos meus camaradas um
fervor religioso muito alto. Talvez a culpa não fosse deles – a Igreja, quanto
a mim, é a grande culpada.
- Mas, porquê? Ela faz tudo para atrair
a si mais crentes.
- Vejamos: padres, no mato, podias
procurá-los com uma lupa que não os topavas, e quando se via algum era de
metralhadora na mão, mais guerreiro do que ministro de Cristo! Em todo o
período que andei pelas matas guineenses apenas vi dois capelães: quase não se
distinguiam dos militares de carreira – fardados, galões de oficial, armas bem
colocadas nos seus fortes braços, prontos para a luta.
- Custa a crer; mas se o meu amigo o
diz…
- Em Cufar, e graças à iniciativa de um
colega, de seu nome António, julgo que já fora sacristão, reunimo-nos uns
quantos e juntos rezámos. Não resultou! O clima de guerra que então se vivia
não era nada propício a este tipo de manifestações. A partir desse dia nunca
mais o tentámos. Quando havia um domingo disponível, e nos encontrávamos numa
localidade com igreja, aí sim, íamos à missa. Isso aconteceu pouquíssimas
vezes.
- Mas por que não ia um pároco ao vosso
acampamento rezar missa?!
- Não sei; talvez houvesse poucos e
alguns deles tivessem receio de se arriscar – a cidade oferecia maior segurança
e mais comodidade.
Quando fui para Bissau, e assistindo às missas que lá se realizavam, com
aquele cerimonial todo, comecei a afastar-me da Igreja católica – afinal de
contas aquela pompa nada tinha a ver connosco: gente humilde, gente do trabalho,
cuja simplicidade já fazia parte do nosso ser. Eles pertenciam a outra classe,
a um mundo mais requintado, às elites, ao escol nacional! Eles adoravam o
cristo rei, o que transformava a água em vinho; nós adorávamos o cristo homem,
pobre, mas sábio, e acessível!
- O meu amigo está a generalizar: tal
como uma Empresa escolhe mal os seus funcionários, ou um clube desportivo
compra por um “balúrdio” um jogador
que depois se verifica não render na equipa o que dele se esperava, também a
Igreja Católica por vezes não tem sorte com os seus curas e bispos. A Empresa
pode ir à falência por má gestão; o clube vende esse jogador e adquire outro; a
Igreja Católica, porque espalhada por todo o lado, e porque os seus objetivos
não são os lucros da primeira, nem as vitórias do segundo, perde aqui, ganha
acolá. Graças a esse equilíbrio vai sobrevivendo e com ela a religião para a
qual vive. Não se esqueça que na Igreja há gente muito boa…
- De acordo, Henrique. Eu nunca afirmei
o contrário; porém a crença dos cristãos fica deveras abalada quando se vê que
aqueles que têm obrigação de a prestigiar, encaminhar para ela mais fiéis, a
distorcem, a reduzem a um circo de vaidades e interesses. O bom exemplo do
sacerdote é muito importante para o crente, para o católico em particular. Para
mim o verdadeiro prior é aquele que se afasta da política, da guerra e dos
vícios. O padre deve ser amigo do branco, do negro, do amarelo, do vermelho, de
todos – seja nacional ou estrangeiro. Não pode, nem deve, discriminar, fazer
juízos de valor. O que se desvia destes elementares princípios, destes padrões,
não passa de um farsante, de um vigarista, de um ímpio!
- Em parte estou de acordo consigo, mas
também penso que o padre é um ser humano, um homem, com todas as fraquezas e
defeitos da espécie humana. Por outro lado, a sociedade também exerce sobre
eles uma forte influência, também os contamina, eles não vivem em nenhuma
redoma de vidro. Até os frades e os monges por vezes são atraídos pelas luzes
da ribalta, apesar de desejarem a solidão. Claro que se devem retirar da Igreja
logo que verifiquem que a sua vocação, o seu espírito, se está a afastar dos
princípios que atrás mencionou. Mas, peço-lhe: continue a sua narrativa e
deixemos este assunto tão complexo e polémico, senão, daqui a nada, estamos a
discutir se as dúvidas de Jean Barois não passavam de um mero exercício de retórica!
*
- À medida que o tempo fenece, a
memória, esse silo que tudo armazena e conserva, vai-me traindo; muitos dos
eventos já esqueci de todo e outros brotam da minha memória partidos,
fragmentados. Lembro-me, isso sim, de factos importantes que deixaram marcas
indeléveis no meu subconsciente. Por exemplo, este: uma noite, estando a minha
Companhia colocada em Teixeira Pinto, fomos espalhafatosamente acordados. Era o
alferes Briosa, cabelos entre o castanho e o loiro, olhos verdes, brilhantes,
dentes pequeninos, jovial, prazenteiro, com uma vitalidade fora do comum, que,
em altos brados, nos obrigava a saltar da cama e ir imediatamente vestir a
farda. Queria-nos prontos a partir para o mato dentro de dez minutos. Na guerra,
o soldado está vinte e quatro horas ao dispor do seu amo e senhor. Já na
parada, formados, o nosso capitão Fontelas (fora
promovido havia pouco tempo) vociferou: «A nossa “excursão” hoje vai ser até um quartel perto de Bula, que neste
preciso momento está a ser atacado pelos nossos “amiguinhos” turras. São cerca
de quarenta quilómetros daqui lá. Temos, de qualquer modo, daí chegar o mais
rápido possível. As estradas são perigosas, de terra batida, e cheias de
surpresas. Todo o cuidado é pouco. Não se esqueçam de levar as bengalas de ferro,
pois a partir de um certo sítio – isso ser-vos-á indicado oportunamente – terão
de ser usadas para deteção de minas. Não se sabe o tempo que vamos demorar e
nem o que nos irá suceder, por isso levem água e rações de combate para dois
dias.»
Entrámos para aqueles camiões enormes, revestidos a aço, com bancos
corridos, em madeira, que faziam uma barulheira infernal ao arrancar e nos
transportavam aos solavancos durante o percurso. À frente da coluna seguia um
desses terríveis monstros pré-históricos, cheio de sacos de areia. A sua invulgar
alcunha - «rebenta minas» - não
poderia ser mais apropriada. Logo atrás rolava o pequeno blindado, o «chaimite», desejoso por mostrar as suas
habilidades.
Seguimos estrada fora. Percorridos uns bons vinte quilómetros
mandaram-nos descer dos carros e continuar a pé. A partir daí seria um
autêntico suicídio permanecer dentro daquelas viaturas. Os seus motores
ruidosos atrairiam inevitavelmente a atenção dos nossos inimigos, pelo que
seria preferível e conveniente demorar mais tempo a socorrer os nossos companheiros
mas não correr o risco de irmos todos pelos ares. O blindado, mais silencioso e
maneirinho, passou para a nossa retaguarda. Algumas viaturas iriam regressar a
Teixeira Pinto – tinham cumprido a sua missão.
- Tudo bem planeado…
- É verdade. Uns de um lado e outros do
outro da “estrada”, lá íamos picando,
picando, na ânsia desesperada de descobrirmos os explosivos mortais. Andámos,
andámos, quando de repente uma enorme explosão nos atira a metros de distância.
Uma mina assassina tinha rebentado ao passar sobre ela quatro gigantescos
pneus. O condutor, pois só ele ia nessa altura no carro, ficou sem jeito. Ainda
com vida, gemia com dores. O sangue escorria-lhe pela cara abaixo, cobrindo-lhe
os olhos, e os seus membros inferiores mais pareciam os de uma boneca: tinha,
sem quaisquer dúvidas, as pernas esfrangalhadas, desfeitas! Enquanto o
enfermeiro prestava os primeiros socorros ao ferido, pela rádio lançava-se um
apelo ao helicóptero para o transportar a Bissau. Por precaução, e sabendo-se,
ou presumindo, que o inimigo já tomara conhecimento da nossa presença,
arriscámos uns tiros de bazuca em várias direções. Logo depois o perturbador
silêncio invadiu todo o espaço à nossa volta, provocando uma sensação de vácuo,
de imponderabilidade.
- O helicóptero demorou muito? – perguntou Henrique.
- O “pássaro voador” tardava a chegar! Afastado do infeliz, não assisti à
sua partida. Não sei se sobreviveu aos ferimentos. O ser humano, ao longo da
sua existência terreal de milhões de anos, e depois de ter sido afastado violentamente
do paraíso, corrido a pontapé pelo deus todo-poderoso, tem resistido a tantas
provações que não me surpreenderia se o meu camarada condutor fosse hoje um
homem vivo e com saúde. A nossa espécie tem sete fôlegos como o felino!
- E também é frágil como uma avezinha…
- observa o jovem, com um sorriso
matreiro nos lábios.
- Tens razão. Depois de se ter desviado
a viatura do caminho – ou o que dela restava – avançámos lenta mas resolutamente,
com mil cuidados redobrados, até a luz do dia de nós se despedir. A noite não é
boa conselheira, sobretudo quando nos encontramos em guerra e no mato; o nosso
capitão, homem perspicaz e inteligente, sabia isso. Assim, mandou suster a
marcha: de madrugada prosseguiríamos. Barriga para baixo, e metralhadoras em
posição de fogo, lentamente, lá nos acomodámos ao longo do caminho, uns a oeste,
outros a este.
- Ficaram na escuridão total…
- Absoluta! Não se via nada, nem
ninguém. Contudo, havia sons: animais noturnos faziam ouvir a caraterística
voz; a sua passagem, vagarosa, arrastada, pela escura e demoníaca selva,
provocava calafrios de terror. As aves da noite chamavam, numa linguagem codificada,
o seu companheiro de farra.
Nós, pobres mortais,
semicerrávamos os olhos para de imediato os abrirmos com medo de sermos caçados
pela “raposa traiçoeira”, como
simples galinhas dormindo sono profundo!
Abri os olhos e, não querendo acreditar, esfreguei-os para me convencer
de que não estava a dormir. Longe, por entre as incontáveis árvores, uma luz
fraca passeava. Disse, entre dentes, ao soldado que se encontrava junto a mim:
«Valongo, estás a ver o mesmo que eu?!» A resposta não se fez
esperar: «É uma luz; talvez sejam os
turras!» Eu então solicitei-lhe:
«Atira-lhe uma bazucada.» Retorquiu ele: «És doido varrido! Estão distantes e por outro lado vamos pôr isto tudo
em polvorosa.» Eu insisti: «Atira-lhe;
aponta em direção àquela brecha.»
Aquele silêncio estava a pôr-me num estado de semiloucura, por isso
desejava ouvir barulho, gritos, tiros, granadas a rebentar no solo estrondosamente!
Queria que a luz das chamas substituísse aquela escuridão imensa – pretendia
sair daquela espécie de letargia que me estava a enlouquecer. O meu camarada
bazuqueiro, ensonado, de olhos esbugalhados, fixa a poderosa arma no ombro
direito e aí vai projétil.
O estrondo do disparo, qual explosão nuclear, ecoou por toda a selva
africana! Bichos e gente, num grito de raiva e de desespero correram algum
tempo sem destino certo. Metralhadoras pesadas e ligeiras começaram a fazer-se
escutar, sobrepondo-se aos gritos e aos movimentos frenéticos, desarticulados.
As feras brotavam de dentro de nós e devoravam, sem piedade e sem dó, a
natureza indefesa e inocente. De súbito, saindo de uma garganta funda, uma voz
rouca e estridente, poderosa, parecendo vir do Olimpo adormecido, de um Zeus
zangado, atroou os ares: «Calem as armas,
suas bestas!» Era a descomunal voz do nosso comandante da Companhia. Estava
furioso, impaciente, agressivo. Não encontrava qualquer motivo ou explicação,
por mais que meditasse, para aquele tiroteio, para aquele festival saloio, para
aquele desperdício de munições e energias.
Os seus homens estavam tensos e
ele sabia-o; não tinham tido a sua formação na Academia Militar, a sua
preparação na arte de bem guerrear qualquer inimigo, a sua força anímica.
«Bestas!» - repetiu, agora
mais calmo e compreensivo: «Não de em nem mais um tiro. Isto que não volte mais a
acontecer…»
- Não pregaram olho, nessa noite…
- Dormir! Os primeiros raios solares
brindaram-nos com a sua presença. Levantámo-nos do incómodo chão e recomeçamos
a marcha. Corpo cansado, roupa húmida, devido à impercetível mas danosa
cacimba, espírito sob tortura. As probabilidades de virmos a sofrer uma cilada
eram imensas; a gente do PAIGC não perderia uma oportunidade destas: conhecia
perfeitamente a nossa posição no terreno e a nossa força. Graças aos deuses,
nada aconteceu; fomos seguindo, seguindo, com muita precaução, até ao
aquartelamento dos camaradas que nos solicitaram apoio. Agora, face àquele dântico
espetáculo, compreendia por que não tínhamos sido visitados pelo negro inimigo.
Os guerrilheiros concentraram todas as suas forças no ataque ao quartel, ora
transformado em escombros! Um pandemónio: berros e mais berros, ordens e mais
ordens. Os helicópteros chegavam e partiam com os atingidos e mortos, num
deambular macabro. Os rostos dos nossos companheiros refletiam o medo,
espelhavam o terror, a ânsia e a tragédia.
- Um massacre! É inadmissível! – exclama Henrique, irritado.
- Não, não estava certo! Aquele
quartel, se assim se lhe podia chamar, no interior da floresta, à mercê de um
belzebu astuto e calculista, granítico, e – de certa maneira – poderoso, apesar
de à primeira vista não o parecer. Os “gajos”
utilizavam, com mestria, os morteiros, talvez fornecidos pela União Soviética,
através de Cuba. E possuíam canhões! E armas sofisticadas. Tudo!
- Sozinhos, não poderiam ter feito
frente ao exército português – afirma
Henrique, categoricamente.
- Também acho. Nós já suspeitávamos,
tínhamos a bem dizer a certeza, que militares cubanos faziam parte das forças
contrárias. Como Salazar, e os seus esbirros, estava longe da realidade! Ele
pensava, cérebro envolto em naftalina, ainda na idade média do desenvolvimento
intelectual, que os “turras” eram
gente de pé descalço, tipo movimento da “Maria
da Fonte”, e usavam ainda a tradicional catana. Pobre pacóvio de Santa
Comba! Encerrado num gabinete, os seus grandes pés sempre enfiados naquelas
botarras pretas, rodeado de velhas múmias conselheiras, bebendo o chã da sua
Mariazinha, não podia, se calhar não queria, aperceber-se do que se passava nas
colónias. Bastava que os diplomatas portugueses lhe dissessem: «Senhor Presidente do Conselho de Ministros,
Portugal encontra-se completamente isolado, nenhuma nação se solidariza com a
nossa causa, ninguém nos dá razão. Só nos resta ceder.»
- Pensa que o país estava numa situação
dessas que descreveu?
- O PAIGC era apoiado por peritos, por
especialistas, neste tipo de lutas. As armas que as nações apoiantes lhe forneciam
mostravam ser de certo modo adequadas à região africana, e essa coincidência não
era por mero acaso. Estas guerrilhas serviam de balão de ensaio às grandes
potências para outras guerras mais importantes e rendíveis. Mas não falemos
disso, pois trata-se de uma matéria complicada e eu, meu amigo, não tenho competência
para a abordar com rigor e isenção. Naquele tempo os nossos terríveis adversários
ainda não utilizavam a aviação, à exceção do helicóptero, nem carros de
combate; no entanto, iam paulatinamente deitando abaixo os nossos aparelhos e
destruindo as nossas viaturas: especialmente as de transporte! As suas
emboscadas surtiam quase sempre o efeito pretendido, isto é, conseguiam matar
um ou dois dos nossos homens, desmoralizar os restantes, e inutilizar toneladas
de mantimentos!
- Uma tática infalível!
- Usavam a Rádio Internacional,
nomeadamente da Argélia, para emitir propaganda política, nela surgindo frequentemente
vozes de cidadãos portugueses conhecidos, opositores ao regime corporativista e
colaboradores dos movimentos de libertação.
- Vozes, essas, que se ouvem em nossos
dias na Assembleia da República!
- E ainda bem! Sinal de que há
democracia. Depois da revolução, Portugal tornou-se um país onde todos os portugueses
têm lugar.
- De acordo – concordou Henrique – no entanto deviam pedir perdão aos
ex-soldados, pois indiretamente prejudicaram-nos.
- Isso agora é secundaríssimo. Para
mim, até me provarem o contrário, o grande culpado foi o santa-combense e os
seus capangas. Não tiveram visão do futuro, estavam por demais agarrados ao
passado. Não souberam distinguir o essencial do acessório. Mas permites que
continue a minha história?
- Com certeza. Até agradeço.
- Pouco havia a fazer ali. Os “turras” deviam estar radiantes. Aquela
ação tinha sido para eles um êxito completo, pleno: alguns mortos, muitos
feridos por balas e estilhaços, o aquartelamento praticamente arrasado! Ao
invés, as suas baixas, se as tiveram, deveriam ter sido ínfimas, a bem dizer,
insignificantes. A conclusão lógica a tirar de tudo isto seria a de que esta
pugna jamais poderia ser ganha de armas na mão. O inimigo não precisava de muita
soldadesca: poucos, bem treinados, conhecedores do terreno, moralizados,
chegavam e sobravam para um exército de cinquenta mil homens!
- Como iam longe as guerras clássicas!
– comenta Henrique, lembrando-se dos
filmes que já vira acerca desse tema.
- Na mata eram impossíveis,
impraticáveis. Por outro lado, a ciência militar, o espantoso avanço
tecnológico, tornou obsoletas essas guerras. Agora, e sobretudo no futuro, com
a ajuda do computador, da robótica, as coisas já serão diferentes. Por este
andar, a sofisticação atingirá o seu auge dentro de poucas décadas. Prosseguindo:
Depois de nesse sombrio local
termos estado cerca de um dia, patrulhando a mata em redor, regressámos a Teixeira
Pinto na madrugada do dia seguinte. Escusado será dizer que durante a noite
ninguém conseguiu dormir. Horas longas, quase eternas. A vista doía de tanto
sono e tanto esforço para não lhe ceder, mas o medo, esse sentimento que corrói
a alma e nos torna pigmeus, pequeninos, era mais forte do que Morfeu. Silêncios
profundos, de vez, em quando, interrompidos pelos ruídos de animais notívagos,
alimentavam ainda mais, se possível, a nossa ansiedade. Os mosquitos, desprotegidos
como a gente estava, banqueteavam-se à vontade, sem etiqueta, sem pedir
licença, enchendo a pança, ao contrário de nós que tínhamos uma lazeira dos
diabos e nada para rilhar, nem uma migalha de alimento, nem uma côdea de pão de
milho sequer para enganar a fome!
- É o sofrimento na sua máxima
expressão! – diz o moço, com uma
expressão melancólica, comovido até às lágrimas.
- Bem o podes afirmar! Finalmente, a
aurora, radiante, surgiu no horizonte; novos odores, fragrâncias primaveris da
floresta tropical, vieram desejar-nos os bons dias. Lembro-me de ter olhado,
olhos semicerrados, para aquele amanhecer e monologar: “que linda é a África e como o ser humano a desrespeita, a conspurca!”
Em Teixeira Pinto toda a gente se pelava por saber o que se passara. Nós,
porém, fomos bastante lacónicos, parcos em pormenores; queríamos um banho,
comer e dormir. Pedimos a todos os santinhos que não nos maçassem durante umas
horas. Banho… nem pensar! Não havia água nas torneiras. Podíamos ir ao rio
tomá-lo, mas estávamos demasiado fatigados para isso; por outro lado, corria-se
alguns riscos – quem sabe se na outra margem uma arma mortífera nos espreitava?
- Também já era azar a mais! – comentou Henrique, resfolegando.
- Já estávamos habituados. Assim,
comemos alguma coisa e em seguida fomos repousar o corpo e o espírito. Acordei
sobressaltado. Sonhara com aqueles horrores, com corpos mutilados, com feras
raivosas, da boca escorrendo-lhes sangue, a atacarem-nos traiçoeiramente. Para
me distrair um pouco peguei em algumas cartas e li-as.
- Por falar nisso, e aproveitando a
deixa: podia ler-me mais uma?
- Com certeza, terei todo o prazer
nisso:
Querido afilhado
A
continuação de boa saúde – esse é o meu desejo. Desculpe se há mais tempo não
lhe respondi, sei que isso é imperdoável, mas a causa desse atraso é o seguinte:
como queria que na próxima vez que escrevesse lhe mandasse a minha foto, estava
à espera que viessem cedo de Lisboa, foram lá para revelar, mas até à data ainda
não chegaram; portanto não se ponha a pensar coisas desnecessárias. Logo que
elas cheguem mando-lhe uma, mas vai reparar que não sou nenhuma beleza dessas
que aparecem nas revistas de modas.
Então,
afilhado, tem-se distraído alguma coisa? Aqui, nesta terra, é tudo muito
bonito, mas só que no verão foge toda a gente para as praias e ao domingo é uma
autêntica pasmaceira. Se calhar este ano também vou uns dias, estou a precisar
muito, a minha pele é demasiado branquinha. Que me diz disso?
No Minho litoral temos praias
lindíssimas, com muito iodo, a água no entanto é um nadinha fria, quase gelada;
há anos que é impossível tomar um bom banho! Conhece Ofir, Âncora ou Moledo?
Segundo me disseram, em África existem muitas praias e boas, mas estão cheias
de tubarões e de crocodilos – será verdade?! Não se arrisque.
Por
hoje nada mais, receba muitos abraços da madrinha muito amiga. E escreva-me
depressa, sim?!
Fernanda
- Já lhe estava a pedir para a deixar
ir à praia – brinca Henrique, folgazão.
- Nem queiras saber como desabafei! Ora
essa! Só me faltava esta; a falar-me de divertimento, de praias, a mim que nem
sequer água tinha para tomar um duche! Achas isso agradável, decente?!
- Que quer o meu amigo? Que ela lhe
contasse desgraças, lhe falasse dos inúmeros desastres que ocorriam por esse
mundo fora, da fome que grassava em muitos países, das doenças sem cura?!
- Não queria isso, não; sofrimentos,
tinha-os eu à porta, não precisava dos alheios, mas considero uma afronta
ter-me perguntado se me divertia. Onde raio ela imaginou que eu estava? No
Casino do Estoril, na Feira Popular, nas praias algarvias?
- Bem, bem! Parece que tomava o assunto
muito a peito…
- Nem sequer respondo a essa subtileza.
Adiante. Quatro da manhã. O alferes Barrelas, esguio como uma árvore em
crescimento, um trinca espinhas, um dos mais irrequietos oficiais da Companhia,
irrompe, em altos brados, pela nossa camarata e ordena: «A pé! Pensam que isto é um hotel de cinco estrelas? Ou julgam que estão
em férias? Dentro de cinco minutos, quero-os todos formados.»
Com o corpo ainda dorido, com os olhos teimosamente fechados, vesti-me,
peguei na metralhadora e juntamente com os outros apresento-me na parada. Não
me apetecia mesmo nadinha ir a essa operação. Não conhecia exatamente o meu
peso, mas sentia-me fraco, débil, tísico! Saí da minha terra com cerca de
sessenta quilos; se agora pesasse cinquenta já me podia dar por satisfeito!
Manifestei ao meu alferes o receio de estar doente e a resposta não se fez
esperar: «Isto aqui não é para medricas:
um homem é um homem.»
- E o Cândido que lhe respondeu?
- Não adiantaria argumentar; no
regresso, se regressasse, iria falar com o médico e logo se veria. Devido
àquela dor intensa no peito, temia estar tuberculoso. Tanta gente morrera já
com essa terrífica doença! Antes de partirmos para a nova aventura pelas matas
o capitão Fontelas falou-nos: «Esta ação
de hoje é apenas de rotina, quase um passeio! Vamos nas viaturas até um
determinado sítio e depois seguimos a pé. Levem, de qualquer modo, munições e
rações de combate para dois dias. Dirijam-se agora ao refeitório e tomem o
pequeno-almoço. Dentro de meia hora quero-os todos prontos para arrancar.» Mais
nada! Quem éramos nós, filhos de deuses mirrados, de campónios sem eira nem
beira, de operários de segunda, de trolhas analfabetos, para tomarmos conhecimento
prévio da operação? Simples peças de uma máquina mais ou menos bem montada,
limitávamo-nos a cumprir ordens, a obedecer cegamente. Eles sabiam o que
convinha fazer: quando e como. A nossa cabeça, a nossa inteligência, os nossos
neurónios, ali não tinham qualquer utilidade, eram lixo! Só a presença física,
resistência, capacidade de persuadir pelo número, pela força bruta, se levavam
em conta.
- Em um regime autoritário queria certamente
uma democracia militar! – ataca Henrique,
com alguma ironia.
- É uma força de expressão – eu sei que
não era possível. Continuando: entrámos nas camionetas e rolou-se cerca de uma
hora na estrada Teixeira Pinto a Cacheu. Parámos. Os carros voltaram para trás
e nós, depois de descermos, dirigimo-nos a pé ao posto de vigilância, Bachile,
que se encontrava a uns cinquenta metros da estrada. Nesse posto permaneciam
quinze homens, pertencentes a um batalhão mais antigo do que nós na Guiné, cujo
comando estava em Teixeira Pinto como o nosso. Um desses homens, o cozinheiro,
acabaria por morrer da maneira mais estúpida que se possa conceber. Como a sua
especialidade o retinha entre muros, um dia, possivelmente bem bebido (o vinho que nós bebíamos era misturado com
água para sobrar para eles), ofereceu-se para acompanhar os colegas em uma
operação. O comandante disse-lhe que não, ele
era necessário no posto para confecionar a comida aos seus camaradas, pois
quando regressassem viriam esfomeados, não estava habituado àqueles caminhos,
àqueles esforços, arrepender-se-ia se fosse.
- Resultou, a sugestão, o conselho?
- Qual quê! Nada o demoveu. Quis ir à
viva força. «Só uma vez!» - implorou
ele ao oficial.
- Até parece que a velha loba esfaimada
o chamava!
- Não voltou vivo, não! As balas de “Satã” trespassaram o seu voluntarioso
coração e o seu corpo agigantado. «O
destino: ninguém lhe pode escapar!» Epitáfio derradeiro sobre uma alma a
caminho do além, da estrela mãe, ou da lousa fria.
- Soube, porventura, quais eram os
objetivos dessa saída?
- Um dos objetivos principais da nossa
ida seria, pelos vistos, rendê-los. Outro objetivo, fazer uma breve batida
pelos arredores, a fim de verificar se os “turras”
andavam por perto. A zona resplandecia de beleza. Algumas habitações, embora
modestas, indicavam-nos que ali não havia problemas de maior. O que mais me
chamou a atenção foi a existência de uma árvore gigantesca que, sem quaisquer
exageros, nem vinte homens juntos a conseguiriam abraçar. A sua sombra cobria
uma vastíssima área.
- Sabe o seu nome?
- Infelizmente não tenho a certeza; não
possuo quaisquer conhecimentos de botânica. Apenas distingo o carvalho, o castanheiro,
pinheiro bravo e manso, eucalipto, e pouco mais: árvores que crescem no Alto
Minho. No entanto, disseram-me tratar-se do poilão, ou poilão-forro; os seus
frutos dão uma espécie de lã, chamada sumaúma, a qual, depois de bem lavada, utilizam
para encher almofadas e colchões.
- Interessante – comenta Henrique.
- A população residente começava o seu
dia de trabalho pastando o gado, cultivando o arroz, colhendo a mancarra, ou
amendoim, fabricando o óleo de palma. Não falavam a língua de Camões! Como
noutro local te disse, a maioria dos habitantes da Guiné-Bissau não dominava a
nossa língua no ano de 1966; a exceção ia para os negros que viviam na capital
da província e para alguns chefes locais que a aprendiam, embora pessimamente;
assim, podiam ser elos de ligação entre o seu povo e a administração
portuguesa.
- Quer dizer que não havia escolas do
ensino elementar espalhadas pelo mato! – surpreende-se
o jovem.
- Já o disse antes. O governo português
nunca se importou muito com isso; as escolas primárias – poucas – estavam
localizadas nas vilas mais importantes e nas cidades. Escola secundária só
havia uma na capital! Ensino superior nem o cheiro!
- E era assim que os lusos queriam
conquistar a simpatia dos africanos! – espicaçou
Henrique, admirado, e com alguma dificuldade em crer em tudo aquilo que escutava.
- Até posso estar errado, mas duvido
que a população em geral soubesse que a Guiné pertencia a um país europeu, de
seu nome Portugal. Para eles isso não fazia sentido; nós estávamos a ocupar
militarmente o seu território. Ali tinham nascido, ali cresciam e morriam.
Aquele era o seu chão e não viesse este ou aquele dizer-lhes o contrário.
Língua, possuíam a sua, secular, e não precisavam de nenhuma outra. Não lhes
fossem também dizer como se criava o gado, como se plantava o arroz nos
terrenos alagadiços, como se fazia óleo, vinho de palma e aguardente. Amavam a
sua cultura, a sua religião, os seus mitos e tradições; a sua arte, as suas
cerimónias fúnebres, seus rituais, e quiçá a cor da pele! Não, ali não era
mesmo poiso de branco; este só na cidade, longe da selva, longe da natureza
imaculada.
- O meu amigo Cândido perde-se em
considerações, desliza pelo tempo e pelo espaço… Eu gostaria de saber como as
coisas lhe correram.
- Desculpa. As palavras são como as
cerejas: vêm em cachos! Pois bem: partimos então para o patrulhamento. Andámos,
andámos, sob sol, sob calor abrasador. A água do cantil depressa se esgotou,
apesar do enorme controlo que exercíamos sobre ela. Os lábios começavam a ficar
gretados. As águas dos pântanos, dos lagos nascidos das chuvas, não serviam
para beber. Mesmo assim, o enfermeiro dizia-nos que enchêssemos os cantis, pois
misturaria na água um comprimido que já trazia consigo para esse efeito. Não
sei que raio tinha a pastilha, só sei que de imediato tornava claro aquele
líquido sujo e nojento! Contudo, a água ficava com um sabor esquisito.
- Era tudo contrariedades!
- É verdade. Estávamos a chegar ao
nosso destino. De súbito, o capitão mandou-nos parar: «As armas em posição de fogo; bazucas aqui para a frente; a dois passos
de nós há uma tabanca que tem dado abrigo e alimento aos turras; vamos
destruí-la completamente. Os tipos podem oferecer resistência; cada pelotão vai
tentando rodeá-la; quando eu disser, começam a disparar.» Saímos da
floresta e entrámos numa clareira. O capim rivalizava connosco em tamanho. O
calor da tarde tornava-se insuportável. Não me lembro bem em que mês do ano se
estava – talvez Junho – mas isso também não era importante, pois na Guiné há
temperaturas elevadas durante todo o ano. Aproximámo-nos do local, o mais perto
possível. Da tabanca chegavam, impercetíveis, os murmúrios de algumas vozes
masculinas e femininas. “Estranhas vozes
e estranha gente”, disse para com os meus botões. Chegado a este ponto, meu
caro amigo Henrique, apetece-me sonhar. Imaginar-me em Melgaço, ouvir as vozes
amigas dos meus conterrâneos, convidando-me: «Vem beber uma malga de vinho da última colheita e comer um pedaço de
pão com presunto – este é do especial.»
- Fantasias! Saudades! A vontade de
rever a sua família, a sua casa, o rio Minho. Tudo! – atalha o rapaz, na esperança de apaziguar o ânimo exaltado do amigo.
- Talvez! O primeiro tiro: pum! A
seguir as bazucadas, com o seu som aterrorizador – armas e pessoal em movimento
acelerado. As labaredas irrompem tenebrosas e belas, os gritos lancinantes
destroçavam o coração do mais empedernido. As cubatas, feitas de barro amassado
e cobertas de capim, não resistiram às granadas das bazucas e às chamas: uma a
uma, foram tombando como tordos sob o fogo do exímio caçador. Os moradores, com
os seus parcos haveres, fugiam o mais rapidamente possível em direção à mata
cerrada, que distava dali uns bons cem metros. Avançámos mais. Contra nós, pelo
menos fiquei com essa impressão, ninguém disparou! Dentro das habitações, das
poucas que restaram, não se vislumbrava vivalma. «Ainda bem» - congratulei-me, aliviado. Esperava ardentemente,
juro-te, que não se encontrassem corpos carbonizados, esturricados: seria um
horror para mim.
- Foi uma razia! – indaga Henrique, numa tentativa de adivinhar o que se passou.
- Podes crer! E quando já se pensava
estar tudo resolvido, tudo acabado, eis que surge uma velha mulher, alta,
esguia, de um negro muito negro, quase nua, gritando como uma louca. Na cabeça,
oval, sustentava uma cabaça e na mão direita tinha um objeto de barro.
Barafustava, gesticulava, e ninguém – nem mesmo os nossos guias – compreendiam
essa língua tão exótica! A mulher pousou as coisas no solo e com os olhos
vermelhos de raiva e com gestos de fera ferida pronunciava frases terríveis
contra nós, mesmo sem as entendermos! Então, um dos alferes da Companhia, não
me recordo qual deles, agarrou-lhe no braço direito e disse-lhe, num tom de voz
seco, que não admitia réplica, acompanhando as palavras com olhares
convincentes: «Vai-te embora! Ninguém
aqui te quer fazer mal. E parte enquanto é tempo. Quando nós estivermos longe,
tu voltas para reconstruir a tua palhota.»
- E ela… – foi-se embora?!
- A velha, mistura de leão e tigre,
assanhada, sem ter percebido uma única palavra do que ouvira, liberta-se do
roubador de liberdades e vidas, do incendiário cruel, e tenta vingar a afronta,
atirando-se com desespero ao oficial. Este, colhido de surpresa, não esperando
o forte impacto, cai. Um furriel, vendo que a situação teria de ter um fim
rápido e eficaz, um desfecho digno de um exército dominador, agarra a
irreverente mulher e atira-a com ímpeto a metros de distância. Sem sequer lhe
dar tempo de se erguer, sobre aquele corpo indefeso, antigo, numa fúria jamais
vista, olhos fora das órbitas, qual exterminador bíblico, deus sanguinário
destruindo Sodoma e Gomorra, imaginando-se numa guerra entre dois mundos,
descarrega todo o arsenal da sua G-3. Quase duas dezenas de balas puseram fim a
um espírito livre e selvagem.
- Inqualificável! Matar uma mulher
indefesa! Isso não se faz! Nada o justifica! – diz Henrique, com alguma tristeza.
- Para mim, aquela valente não morreu
em vão. Pode ter sido loucura ou ingenuidade, um ato irrefletido; pode ter sido
também ato assumido, um sacrifício ao deus da honra e da liberdade.
Sinceramente não sei.
- Você ficou chocado. Que fizeram ao
corpo – enterraram-no? – pergunta o
jovem, na esperança vã de obter uma resposta positiva.
- Não! Quem iria perder tempo com isso?
Seria devorado por animais, por aves de rapina, por abutres, ou enterrado
depois pelos seus parentes. Esta cena, que para os meus companheiros não teve
um significado especial, fazendo parte da rotina da guerra, comoveu-me até às
lágrimas, feriu a minha sensibilidade e marcou profundamente o meu caráter; a
partir daí, posso afirmá-lo, houve de facto uma alteração no rumo da minha
vida. Aquela imagem esquelética, aqueles olhos de trovão, os seus gestos de
guerreira, gravaram-se para sempre no meu cérebro, no meu espírito, no subsolo
da minha alma. Às vezes vale a pena morrer!
- Depois desse acontecimento pavoroso,
retiraram?
- Sim. Já não estávamos ali a fazer nada.
O capitão mandou retirar imediatamente. A morte da heroína, o calor intenso, a
falta de água, estavam a produzir em mim o seu efeito nefasto e demolidor.
Comecei a sentir algo estranho, a ter visões. Uma nuvem pairava sobre a minha
cabeça e libertava uma chuva miudinha que os meus ressequidos lábios saboreavam
com prazer. Que rica água: fresca e pura como a das nascentes; saborosa como
uma limonada em pleno verão. Porém, uma cotovelada viril veio interromper esta
visão irreal e maravilhosa. O meu camarada de especialidade, o Beja, diz-me: «Eh, pá! Estás a ficar branco, como a cal; que
se passa? Aguenta, que agora já estamos de volta.» Aos vinte e um, vinte e
dois anos de idade, os milagres de resistência acontecem. Soube, a partir desse
inesquecível dia, que o ser humano é mais rijo do que aparenta. Se me tivessem
contado todas estas peripécias, sem eu as ter amargamente vivido, dificilmente
nelas acreditaria: dias sem ingerir qualquer alimento, sem descansar, sem beber,
calcorreando matas e pantanais, trilhos e mais trilhos tenebrosos, sob um sol
escaldante, enfrentando perigos visíveis e ocultos, eram razão mais do que suficiente
para derrubar ciclopes homéricos ou Aquiles de frágil calcanhar. Nós, rapazes
portugueses deficientemente treinados e pessimamente alimentados ali estávamos,
como olímpicos imortais!
- Parece tudo um sonho; estou abismado
com tanta resistência – confessa Henrique.
*
- O regresso a Teixeira Pinto tornou-se
lento e penoso. Tivemos sempre a nítida sensação de estarmos a ser perseguidos.
Não me lembro quantos quilómetros já tínhamos percorrido a pé. Talvez qualquer
coisa como quarenta! Nem valia a pena pensar nisso. A caminho, em frente. Havia
mais de uma hora que deixáramos a povoação em chamas e uma virago africana a
ser devorada pelos abutres e toda a espécie de carnívoros necrófagos! O
silêncio da floresta anunciava borrasca. A emboscada estava mesmo a rebentar.
Não seria de prever outra coisa! A “costureirinha”
dos paigecês, com o seu matraquear caraterístico, produzindo um som semelhante
ao da máquina de costura, cantava a sua canção fúnebre. Atirei-me ao solo com a
rapidez do raio, aproveitei o tronco grosso de uma árvore e ripostei às balas
do inimigo. O nosso capitão, verdadeira personagem dos filmes de guerra, indiferente
às balas, andava de um lado e de outro, dando instruções, empolgando os seus
guerreiros: «Carregar! Sem dó nem
piedade. A eles! Morte aos turras!» Ouviam-se palavrões, obscenidades que
fariam corar uma prostituta. O tiroteio não durou mais do que meia hora. Os
guineenses não deviam ser muitos e só pretendiam perturbar, desgastar a tropa
portuguesa. Permaneci deitado mais algum tempo. Só tinha consumido um carregador.
Depois daquele barulho indescritível, resta o silêncio novamente. Até o bater
do coração se ouve! O comandante, aparentemente calmo, mandou avançar: «Vão atentos, o inimigo pode atacar-nos de
novo.»
- Houve feridos? – pergunta Henrique, com comiseração.
- Felizmente não houve quaisquer baixas
a lamentar. No entanto, o nosso furriel Grande, ao tentar levantar-se, cai ao
chão desmaiado. Um contratempo. O capitão, habituado a lidar com a fraqueza
humana, acostumado também a resolver todos os problemas e dificuldades que iam
surgindo, com um sentido prático, sem tergiversações, vai ao pé dele e dá-lhe
duas valentes bofetadas: «Acorde furriel,
deixe as suas misérias e debilidades para outra ocasião. Este não é
propriamente o lugar nem o momento certo para este tipo de exibições!»
- A terapêutica surtiu efeito?! – pergunta Henrique, com ironia.
- Por mais incrível que isso pareça, o
furriel entreabriu os olhos e, com a ajuda dos seus homens, levantou-se a
custo. O enfermeiro deu-lhe qualquer coisa a cheirar e, amparado, sem qualquer
carga, lá foi indo.
- Lá diz o ditado: «os gigantes também tombam!»
- Podes não acreditar, mas este novo
acontecimento também mexeu imenso comigo. Um dia ancho de lições! Como que é
que um homem, muito mais alto e forte do que eu, com outro treino, com uma
alimentação mil vezes melhor do que a minha, vergava assim?! Eu, franganito,
cinco réis de gente, o “lingrinhas”,
ou “esquilo”, como o alferes Briosa
sempre me chamou, aguentava, embora sofrendo, todo este diabólico percurso.
Ainda hoje, passados tantos anos, reflito nisso.
- De facto, você é um homem de têmpera!
– elogia Henrique, num sorriso aberto e
franco, mostrando uns dentes perfeitos e bem escovados.
- Nem por isso! Hoje já estou um pouco
em baixo, os anos não perdoam. Na Guiné-Bissau suportei mil sofrimentos porque
tinha aquela idade, caso contrário teria sucumbido. Eu não sou Hércules, nem
sequer Ulisses! E David também não poderia ser, porque não tenho a sua pontaria!
Até parece que estou a ver o gigante Golias a tombar depois de receber uma pedrada
em cheio, naquela testa enorme!
Mas prosseguindo: continuámos a andar; uma hora depois, mais ou menos,
ouvimos vozes. Escondemo-nos e vimos um grupo de mulheres, com cestos à cabeça,
andar apressado. Logo que se aproximaram, alguns dos meus companheiros
saltaram-lhes ao caminho como qualquer Zé do Telhado, ou Tomás das Quingostas,
e um dos oficiais mandou-as parar e deu-lhes ordem de prisão, como se elas
tivessem acabado de assaltar uma agência bancária em Lisboa!
- Do primeiro já ouvi falar, até já li
um livro, e vi um filme, sobre a sua vida; mas quem foi esse Tomás das Quingostas?
Nunca ouvira antes pronunciar o nome de tal criatura!
- Era um chefe de malfeitores. Nasceu
no lugar das Quingostas, em São Paio de Melgaço, no ano de 1808. A sua
quadrilha esteve ao serviço, durante a guerra civil, provocada pela desavença
entre os dois irmãos D. Pedro e D. Miguel, de quem lhes pagava melhor. Depois
de 1834, quando terminou a dita guerra, dizia-se miguelista, mas era para
receber dinheiro dos absolutistas e dos carlistas espanhóis. Logo que os
liberais (mais concretamente o visconde
das Antas) o promoveram a comandante da guarda volante do Alto Minho, força
paramilitar, muito duvidosa, começou logo a perseguir aqueles que até aí tinha
apoiado. Era um verdadeiro camaleão.
- Um bandido age de acordo com as suas
conveniências! – corrobora o jovem
Henrique.
- Exatamente! O Tomás e a sua quadrilha
percorreram os montes de Castro Laboreiro, as serras da Peneda e do Gerês, o
Soajo, os concelhos limítrofes ao seu, sobretudo Valadares, indo até à Galiza,
assaltando quintas e casas senhoriais, ricos e remediados, traficando soldados
para as hostes carlistas, enfim, causando o terror e o caos numa vasta zona,
pilhando e matando diversas pessoas que por azar se cruzaram no seu caminho.
- Um valentão! E ninguém lhes dava
caça? – pergunta Henrique, incrédulo com
aquilo que ia ouvindo.
- O país estava de rastos por essa
altura, tanto financeira como economicamente, mas a rainha D. Maria II deu
ordens à tropa para o perseguirem e prendê-lo; no caso dele não se render,
deveria ser abatido. E foi o que aconteceu. Em finais de Janeiro de 1839 o
Tomás das Quingostas foi preso; mas quando os soldados da soberana o levavam
para a cadeia de Melgaço ele tentou fugir. Os militares apontaram-lhe as armas
e mataram-no! Isto é o que conta a lenda, mas quanto a mim ele morreu numa
emboscada preparada minuciosamente por um tal major Frazão, enviado pelo
governo para acabar com o salteador e a sua quadrilha. Assim acabou o maior
bandido do Alto Minho. E sem cabeça!
- Sem cabeça?! Como foi isso? – pergunta, admiradíssimo, Henrique.
- A razão foi a seguinte: ele tinha de
ser enterrado na freguesia onde morrera – neste caso coincidia com a freguesia
onde nascera. Tudo bem! Mas como é que os soldados iriam provar aos seus
superiores que tinham abatido o chefe de uma grande quadrilha de bandoleiros?
- Só levando-lhes a cabeça do moinante!
- Exatamente. O resto do corpo foi
enterrado perto do sítio onde fora fuzilado, por detrás de uma capela – o padre
não permitiu que ele fosse sepultado no seu interior, visto que era um fora da
lei e, segundo consta, um herege.
- Interessante. Há tantos episódios da
História de Portugal por divulgar!
- É verdade. E agora, prosseguindo a
minha narrativa: as mulheres africanas, assustadas, fugiram. Como atletas de
alta competição, como genuínos galgos, espumando pela boca, alguns magalas
correram atrás delas. Apanharam três: duas novas e uma mais idosa. Os oficiais
tentaram falar-lhes; mas o diálogo, devido sobretudo ao idioma e ao nervosismo,
não foi possível. Chamaram um dos guias, mas este disse desconhecer aquele
dialeto. Desse modo, e receando serem elas portadoras de mensagens para os
paigecês, levámo-las connosco. Chegámos finalmente ao local de onde tínhamos
partido, ou seja Bachile. Através da rádio pediu-se ao quartel de Teixeira
Pinto que mandasse as viaturas a fim de nos transportarem até lá. As criaturas
foram atiradas de qualquer maneira para o chão do alpendre e quase esquecidas.
Algum tempo passou. Enquanto esperava, tentei dormir um pouco. Mas, eis senão
quando um magano, depois de um repouso reparador e algum alimento ingerido, lembra
aos outros que «mulher, mesmo negra,
nasceu para dar prazer ao macho, e aquelas ali vinham mesmo a calhar!»
Outro, que com certeza já o tinha pensado, mas não tivera a ousadia de propor
tal infâmia, disse então: «E por que
não?! O nosso comandante, juntamente com todos os alferes (à exceção do alferes
Briosa, que é camarada, e está neste momento a dormir como um justo), seguiu
para Teixeira Pinto num jipe. Os sargentos e furriéis não se metem nestas
coisas. Elas estão, pois, à nossa mercê. Quem começa?!»
- Eu não acredito naquilo que estou a
ouvir! – grita Henrique, num gesto de
repugnância, chamando a atenção das pessoas ali próximas.
- Escuta: logo de imediato um deles,
com uma desfaçatez exibicionista, despe as calças, aproxima-se de uma das
jovens e bruscamente puxa-lhe o pano (tanga),
que cobria as suas partes genitais. Os demais, ao verem esta erótica cena,
excitaram-se e não se fizeram rogados. Velha e novas alimentaram os apetites
carnais desses pequenos energúmenos, desses excrementos aberrantes.
- E as mulheres, como reagiram? – pergunta o jovem, espumando de raiva, mas
mais comedido.
- De nada lhes valeu chorar, implorar;
de nada lhes valeu gritar; de nada lhes valeu resistir! Indignado com tal
procedimento, invoquei a sua condição de gente civilizada, de cristãos
convictos, de divulgadores de ideais humanistas, samaritanos. Pregava no
deserto.
- O ser humano, quando atinge a
bestialidade, já não é ser humano, é um bicho! – diz Henrique, colérico.
- Tens toda a razão. Peguei na G-3, mas
logo mão serena, e certamente comungando comigo o mesmo sentimento de repúdio, segurou
com firmeza o meu braço e disse-me: «Que
pretendes fazer, louco? Queres matar os teus companheiros?!» Refleti
durante algum tempo, e respondi-lhe: «Faz
sentido aquilo que me dizes; contudo vou avisar o alferes Briosa.» Bati à
porta do quarto aonde ele se encontrava a dormir, e logo a porta se abriu.
Informei-o: «Meu alferes, está a passar-se
uma coisa horrível ali fora.» O alferes, tudo ouviu com paciência e
compreensão, observando: «Ó “Esquilo”, tu
és um autêntico anjinho! Não vês que os homens estiveram sob pressão este tempo
todo, não são nenhuns santos, alguns deles já são casados, aos meses que vivem
na mais pura abstinência, e vai daí aproveitaram a ocasião. Tens muito ainda
para ver ao longo da tua comissão na Guiné. Guerra é guerra. Em todos os
tempos, em todos os lugares, ela gera cenas semelhantes ou piores do que estas.
Que pensas que fizeram os exércitos gregos, os romanos, os persas? E também na 1.ª
Grande Guerra (1914-1918) e 2.ª Guerra Mundial, esta última começou em 1939 e acabou
somente em 1945, como sabes, quantas coisas erradas se fizeram! Até a bomba
atómica os americanos utilizaram, destruindo cidades, e matando e ferindo
milhares de japoneses! Todos, sem exceção, cometeram excessos, crimes abomináveis.
Este, comparado com os deles, é um crime menor. Se não queres ver, afasta-te –
deixa-os em paz. A vida em ambiente conflituoso é isto também!»
- O alferes agiu com prudência, mas sem
dignidade – não eram suas filhas nem irmãs! – comenta o jovem.
- De nada valeram os meus argumentos,
que a seus olhos mais pareciam sofismas! Que fizeram de mal aquelas senhoras?
Que vilanias, que crimes, tinham elas cometido?! Que infrações, que regras
tinham elas violado? Num Estado de Direito estes raciocínios poderiam ter algum
peso; ali, na selva africana, em tempo de conflito armado, as teses que
predominavam eram as da força das armas. Os remorsos, se um dia rebentarem como
ervas daninhas no prado verdejante, serão aromatizados pelo tempo e pela
distância. Além disso, os preconceitos de raça e cor eram ao tempo muito vincados.
- Malditos! Se existir o inferno, mais
cedo ou mais tarde irão lá parar – exclama
Henrique, numa voz teatral, profunda, ameaçadora.
*
As cansadas e barulhentas viaturas por fim chegaram. Os soldados,
sexualmente satisfeitos, sorridentes, quase felizes, saltaram com extrema
agilidade para o seu interior. Praticamente esquecidos da operação, dos sofrimentos
a que o seu corpo e o seu espírito tinham sido sujeitos, falam agora daquele
ato machista que julgam, pobres idiotas, dignificá-los! Dentro da viatura o
tema da conversa é apenas um: sexo! «Quantas
deste, ó Santarém?» O outro responde, a rir: «Eu sei lá! Algumas três!» O Coimbra, com imensa mágoa, lamenta-se:
«Eu só consegui dar duas!» Logo a
seguir outra voz: «Pois eu, se não fôssemos
já embora, ainda dava mais uma ou duas; de coisinha nunca me farto!» Era o
Famalicão, explodindo de ironia. O Braga, aborrecido consigo mesmo, por ter
dormido enquanto os outros fornicavam, comenta: «Caramba! Pelo que ouço, vocês emprenharam as gajas!» Logo, o
pérfido Lamego, zomba: «Qual de nós será
o pai das crianças?!» Todinho o percurso até ao quartel, nesta conversa vil!
Não podia mais. Vomitava raiva! Finalmente chegámos à Vila de Teixeira Pinto. «Que bom!» - disse eu baixinho, respirando
de alívio.
- Na verdade, esse crime não tem perdão
– explode Henrique. – Nem o facto de
estarem em guerra o justifica!
- Monstruoso! Hediondo! Somente os
homens de Gengiscão se podem comparar com eles.
- Quando chegaram ao quartel, desta vez
havia água nas torneiras?
- Não me fales disso; o soldado não
contava, não valia um tostão furado, um pataco dos antigos; era escumalha, lixo
humano. Haver ou não haver água para nós tomarmos um banho repousante era
indiferente para os superiores. Desde que eles a tivessem… Acontece que obras
públicas não existiam – tudo estava paralisado. Alguma coisa que se fizesse na
então província da Guiné-Bissau era realizada pela tropa! As ruas de Teixeira
Pinto eram de terra batida; não existia Câmara Municipal, nem Juntas de
Freguesia, nada!
- Isso revela uma certa mentalidade. Contou
tudo aquilo que aconteceu ao seu capitão?
- Contar-lhe?! Ele nem sequer me
ouviria! E se os meus colegas viessem a saber que falara sobre o assunto com o
comandante da Companhia, considerar-me-iam traidor, renegado, e vingar-se-iam de
mim certamente. Isso estava fora de questão. O melhor era tentar esquecer
aquilo que se passou. Sozinho não podia mudar o mundo. Os seres humanos são
pior do que as feras em certas circunstâncias, e este e outros crimes
repetir-se-ão através dos séculos. Ninguém tenha dúvida disso!
*
As operações, batidas, missões, patrulhamentos, ações, como lhe queiram
chamar, ou então arranjem outro nome para o sofrimento, para a dor, física e
espiritual, sucederam-se com poucas interrupções. Ainda me encontrava em
Teixeira Pinto quando decidi, ou me autorizaram, ir à consulta do médico
militar. Estava escanzelado. Pesava somente quarenta e sete quilos! O clínico,
depois de me auscultar, fez, ou mandou fazer, análises e chegou à conclusão de
que eu tinha o estômago cheio de bichinhos (micróbios)
que devoravam tudo aquilo que eu ingerisse. Receitou-me uns medicamentos e lá
fui aguentando. Mas antes de abandonar o seu consultório, aconselhou-me: «Quando chegares à Metrópole vai ao hospital
e trata-te como deve ser.» Agradeci a sua sábia sugestão; faltava um ano
para eu regressar. Que eram doze meses na vida de um ser humano? Doente, ou com
saúde, o soldado tinha de estar ali, a combater pela Pátria e pelo Chefe. No
fim da campanha teria a sua medalha e o louvor hipócrita. Depois, já como
civil, recuperaria, ou não, das mazelas arranjadas na guerra. Tudo à sua custa!
Mas isso não tirava o sono aos governantes. Quanto aos dentes – já tinha dois
apodrecidos – teria de me deslocar a Bissau a fim de os extrair, único sítio
onde havia “dentista”. Entretanto
aconteceu nessa recatada e bonita vila, um dos episódios mais cruéis de toda a
campanha: na prisão do quartel encontrava-se um prisioneiro idoso, com uma barbicha
algo ridícula, mas importante para ele. Não se sabia bem por que razão o homem
se achava detido. Era difícil escutar da sua boca uma única palavra. Tinha sido
feito prisioneiro numas das batidas que se levavam a cabo periodicamente nas
redondezas do aquartelamento.
- Até faz lembrar as rusgas na baixa
lisboeta para apanhar as prostitutas! – interveio
Henrique, com o intuito de desanuviar um pouco a tensão.
- Brinca, brinca, maroto, que o teu
brincar tem graça! Agora a sério: nessas missões tudo que viesse à rede era peixe
– novos e velhos, homens ou mulheres, excluindo as crianças, tudo servia! Após
um breve, ou prolongado, interrogatório grotesco, mandavam-se embora ou matavam-se
na primeira oportunidade. O velho, certo dia, aparece estendido, sem vida, no
pavimento da sua cela improvisada. Ainda mostrava os sinais da violência junto
à barbicha, agora quase toda ela arrancada!
Quem teria sido, quem… Os indícios escasseavam, provas… inexistentes! A
sentinela, nada viu, nada escutou, não desconfiava de ninguém. Mas eis que um
dia, no bar dos soldados, o Bragança se descai. O álcool, esse amigo da
verdade, passou-lhe uma rasteira: tinha sido ele! Como se divertira! «Arranquei-lhe pelo a pelo!» - conta,
eufórico e importante. «Os turras não
merecem compaixão, por sua causa é que nós aqui nos encontramos!» - berra
para todos o ouvirem bem.
- É óbvio que o prenderam e
castigaram?! – interpreta Henrique.
- Por mais incrível e surpreendente que
isso nos pareça, nem preso nem castigado! Por matar um presumível colaborador
da guerrilha? «Caramba! Merecia era uma
medalha!» - comentavam entusiasmados os seus incontáveis admiradores.
- O seu colega revelou-se um grande
canalha, um patife! Merecia um severo puxão de orelhas, um castigo exemplar.
- Mas espera! Em contraste com este
episódio, passou-se este outro: juntámo-nos uns quantos soldados e, a pé, fomos
conhecer melhor os arredores de Teixeira Pinto. Seguimos por uma humilde estrada
de terra batida, G-3 ao ombro, e de repente avistámos um campo de ananaseiros.
Aquele cheirinho agradável indicava-nos que o fruto já estava bom para comer.
Um dos camaradas sugeriu: «Como não se
encontra por perto o dono, vamos colher um ou dois ananases; ninguém vai dar
por nada – são tantos!»
Embora com uma certa relutância, acompanhei os outros e tirei apenas um.
Não era um grande apreciador desse fruto – gostava mais de pêssegos ou peras.
Frutinha da minha terra minhota.
O proprietário, um negro de olhos de águia, tudo observou sem ser visto
por nós. Assim, quando regressámos ao quartel já lá tínhamos a queixa. Chamados
ao comandante, ouvimos uma admoestação daquelas que jamais se olvidam: «Devem respeitar a propriedade alheia; o dono
dos ananases é amigo e antigo cooperante da tropa portuguesa. Isto que não
volte mais a acontecer; não quero larápios na minha Companhia. Agora vão pagar
com língua de palmo o que comeram. Cada um de vocês desembolsará a importância
de vinte escudos!»
- Não considero o castigo exagerado; penso
até que foi leve.
- Amigo Henrique: com esse dinheiro
compravam-se três cervejas das maiores, mais ou menos o que se bebia diariamente
quando não se saía do quartel, e comiam-se umas sandes de queijo, chouriço ou
presunto, isto no bar é claro. O ananás que furtei, quando muito, valeria cinco
escudos!
- E pagaram?
- Que remédio! Com língua de palmo. Esse
dinheiro seria descontado no pré. Hoje penso que não foi totalmente errada essa
sentença, só custava contudo verificar que os critérios para a aplicação da
pena eram completamente arbitrários.
- Vejo que a justiça militar nessa
altura andava muito por baixo!
- Escuta o caso seguinte, emblemático
de tudo o que atrás disse. Ouve e dá-me a tua opinião: o soldado que assassinou
o velhote da barbicha, vendo que ficara impune, e ainda por cima o crime lhe
trouxera certa fama, começou a pensar em outra patifaria digna dele, do seu “prestígio”. Havia perto do nosso quartel
uma bajuda (rapariga virgem),
engraçada, com quinze, dezasseis anos. A moça via a tropa como amiga e por isso
dava conversa aos soldados. Nunca lhe passara certamente pela mente receber de
nós qualquer tipo de maldade. Porém, o Bragança, já a tinha fisgado. Um dia
disse aos camaradas que o acompanhavam: «Hei
de comê-la, hei de partir katota com ela! Não sei ainda como, mas isso vai
acontecer de certeza absoluta!»
O Sintra, gozão, mas ao mesmo tempo ponderado, observou: «Vê lá no que te metes, olha que o capitão
não gosta que se abuse dos pretos, nossos amigos; a bajuda vai fazer queixa de
ti, denunciar-te, e é o fim do mundo; eu não arriscava.»
«Se fizer queixa, rebento-lhe com
os miolos!» - reagiu a sinistra criatura, de punhos cerrados.
«Tretas! De qualquer modo eu nada
sei: não ouvi nada!» - apressa-se a dizer o Sintra.
Passado escassos dias, o Bragança apareceu triunfante – conseguira a
proeza! Era deveras um herói! «Como o
tinha conseguido?!» – perguntaram-lhe, achando o ato incredível.
«Ah! Ah! querem saber? Pois ouçam:
falei com a miúda e perguntei-lhe se alguma vez provara vinho do Porto – que se
tratava de uma bebida doce, própria para senhoras; as europeias bebiam daquilo
todos os dias. Respondeu-me que não, que nem sequer sabia o que era, nunca
tinha visto nem bebido. Enfim, ficou combinado oferecer-lhe uma garrafa, do
bom, para ela provar. Dirigi-me ao bar da cantina e comprei uma botelha, do
mais barato que havia! Depois fui ter com ela, abri a dita e passei-lha para as
mãos. Até lambeu os beiços! Dei-lhe mais. Bebeu, como quem bebe água! Às
tantas, quando vi que já estava meio tonta, levei-a para o capim. De morte,
meus amigos, de morte! Nunca tinha manjado nada semelhante. Um autêntico pitéu!»
«Eh, pá! Tu, violaste a gaja!
Estás tramado» - disse com certo receio, e alguns ciúmes, um dos seus
amigos. «Não sejas parvo» - retorquiu
o Bragança. «Para eu ser castigado teria
de ser muita gente; não vês os putos mulatos que pululam por aí? Alguém os fez,
não?! Vocês são cegos! Não veem entrar nos quartos dos oficiais, e não só, as
raparigas negras?»
O Sintra, poeta ao jeito de
António Aleixo, e para acabar com aquela conversa perigosa, improvisou:
A katota
da bajuda
é fresca
como um limão;
como a pera,
é carnuda…
é bela…
como um pavão!
«Muito
bem!» - disseram todos em uníssono. «Muito
bem!»
- Desta vez foi severamente castigado?
– perguntou Henrique, esperançado em
ouvir um sim.
- Qual quê! O violador tinha novamente
razão. Parece que foi chamado ao comandante, mas o que disseram entre si ninguém
o sabe. O certo é que ficou mais uma vez impune!
- Quase inacreditável o que me acaba de
contar. Estou fulo, irritado. Como é possível que esse malandro, esse sabujo,
não tenha sido severamente punido?! Como?!
- A tropa, meu caro Henrique, a tropa,
tudo explica. Ali a lei era outra. Os oficiais castigavam ou perdoavam conforme
as suas conveniências. Eram os senhores da guerra! Passados uns dias destacaram
o meu pelotão para Cacheu, uma “cidade” minúscula, sem luz elétrica, sem água
canalizada, sem comércio, sem estabelecimentos de ensino, sem qualquer tipo de
distração. // continua...
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