terça-feira, 2 de janeiro de 2024

ENTRE MORTOS E FERIDOS (dois anos de guerra na Guiné-Bissau)

Por Joaquim A. Rocha  

// continuação de 17/09/2023

15.º Capítulo

 

TEIXEIRA PINTO

 

 

       Esta Vila ostentava o nome do major João Teixeira Pinto (1876-1917), «herói da ocupação militar da Guiné». Em 1912 era Chefe do Estado-Maior. Em 1917, quando decorria a primeira guerra mundial, dirigiu-se a Moçambique, onde morreu numa batalha contra os alemães. O PAIGC retirou essa designação logo que a Guiné-Bissau se tornou independente e batizou-a de Canxungo.

 

     Cândido, depois de ter gozado umas curtas férias no Alto Minho, encontra de novo o amigo e prossegue a sua narrativa:

 

- Nesta região, onde a agonia e o sonho se entrecruzaram, habitavam em grande número os manjacos. Além desta etnia, havia também os mancanhas e felupes. Estes últimos, que predominavam na outra margem do rio Cacheu, usavam como armas de caça apenas arcos e setas, cujas pontas envenenavam para a presa não lhes escapar no caso de ser atingida.

     Nessa Vila deparei com alguns indivíduos que me pareceram indianos ou paquistaneses, mas que depois me disseram ser naturais do Líbano: dedicavam-se ao comércio, na comprida avenida, cerca de um quilómetro, à volta da qual tudo girava; aí havia também uma pequena igreja católica, uma escola do ensino primário (a confirmar), e os lupanares!

     Raros eram os autóctones que se vestiam à europeia: apenas uma raquítica tanga cobria as suas partes pudendas. Raríssimos, também aqueles que falavam a língua portuguesa: somente os que conviviam mais assiduamente com brancos, ou exerciam atividades como seus empregados.

     Os guineenses, de uma maneira geral, estavam demasiado afastados da civilização ocidental.

- Como é possível, depois de séculos de permanência portuguesa! – exclama Henrique, quase furioso.

- Os portugueses não penetraram no coração de África como o fizeram no Brasil. Preferiram, por razões de segurança, manter-se no litoral, perto da costa, onde haveria sempre um barco que permitisse a fuga em caso de necessidade. Os negros são, de longe, mais perigosos do que os índios das florestas brasileiras.

     Ao longo de milénios, estes povos viveram isolados e a bem dizer só a partir dos anos sessenta deste século XX, e devido à guerra colonial, é que a tropa entra nessas densas matas africanas e contacta com as tribos do seu interior.

     Muitos portugueses ainda hoje estão convencidos de que na Guiné-Bissau apenas existia um grupo homogéneo - «o negro da Guiné lava a cara com café». Isso é completamente falso e fantasioso. Existiam, e ainda existem, variadíssimas etnias, com culturas próprias, com chefes distintos, ocupando zonas diferentes, que defendiam, com unhas e dentes, dos eventuais ataques das outras tribos. Muitos desses grupos étnicos não se entendiam entre si, porque falavam dialetos distintos, guerreavam, se motivo houvesse para tal! Uns falavam o balanta, outros o fula, o manjaco, o mandinga, o felupe, o baiote, bijagó, etc.

- E a língua portuguesa…

- Poucos guineenses a falavam. Sem escolas do ensino primário espalhadas pelo território era impossível aprendê-la. Até em Bissau o português era uma terceira língua. O crioulo e o português começavam timidamente no século XX a desempenhar o papel de línguas de aproximação entre elas (tribos, ou etnias), e entre elas e os europeus.

     No que diz respeito à religião poder-se-á afirmar, sem trair a verdade, que o animismo, magia, feiticismo, e o islamismo, predominavam; contudo, começavam já a surgir nas minúsculas cidades e vilas, sedes de concelho, igrejas católicas. Em Bissau, capital da província, havia uma catedral, com lugar cativo para o Governador e sua esposa. Nela, todos os domingos, se celebrava uma missa especial: um verdadeiro espetáculo – a chegada do bispo, do governador e sua comitiva (na altura em que eu por lá andei exercia esse cargo o general Arnaldo Schutz), a chegada dos burgueses e militares fardados a rigor. Só visto!

- Estava cheia, com certeza…

- A abarrotar. Escusado será dizer-te que a religião professada pela maioria esmagadora da tropa lusa era a católica; no entanto, durante os três anos que passei no serviço militar, sobretudo os dois últimos, cumpridos na Guiné, não encontrei por parte dos meus camaradas um fervor religioso muito alto. Talvez a culpa não fosse deles – a Igreja, quanto a mim, é a grande culpada.

- Mas, porquê? Ela faz tudo para atrair a si mais crentes.          

- Vejamos: padres, no mato, podias procurá-los com uma lupa que não os topavas, e quando se via algum era de metralhadora na mão, mais guerreiro do que ministro de Cristo! Em todo o período que andei pelas matas guineenses apenas vi dois capelães: quase não se distinguiam dos militares de carreira – fardados, galões de oficial, armas bem colocadas nos seus fortes braços, prontos para a luta.

- Custa a crer; mas se o meu amigo o diz…

- Em Cufar, e graças à iniciativa de um colega, de seu nome António, julgo que já fora sacristão, reunimo-nos uns quantos e juntos rezámos. Não resultou! O clima de guerra que então se vivia não era nada propício a este tipo de manifestações. A partir desse dia nunca mais o tentámos. Quando havia um domingo disponível, e nos encontrávamos numa localidade com igreja, aí sim, íamos à missa. Isso aconteceu pouquíssimas vezes.

- Mas por que não ia um pároco ao vosso acampamento rezar missa?!

- Não sei; talvez houvesse poucos e alguns deles tivessem receio de se arriscar – a cidade oferecia maior segurança e mais comodidade.   

     Quando fui para Bissau, e assistindo às missas que lá se realizavam, com aquele cerimonial todo, comecei a afastar-me da Igreja católica – afinal de contas aquela pompa nada tinha a ver connosco: gente humilde, gente do trabalho, cuja simplicidade já fazia parte do nosso ser. Eles pertenciam a outra classe, a um mundo mais requintado, às elites, ao escol nacional! Eles adoravam o cristo rei, o que transformava a água em vinho; nós adorávamos o cristo homem, pobre, mas sábio, e acessível!

- O meu amigo está a generalizar: tal como uma Empresa escolhe mal os seus funcionários, ou um clube desportivo compra por um “balúrdio” um jogador que depois se verifica não render na equipa o que dele se esperava, também a Igreja Católica por vezes não tem sorte com os seus curas e bispos. A Empresa pode ir à falência por má gestão; o clube vende esse jogador e adquire outro; a Igreja Católica, porque espalhada por todo o lado, e porque os seus objetivos não são os lucros da primeira, nem as vitórias do segundo, perde aqui, ganha acolá. Graças a esse equilíbrio vai sobrevivendo e com ela a religião para a qual vive. Não se esqueça que na Igreja há gente muito boa…

- De acordo, Henrique. Eu nunca afirmei o contrário; porém a crença dos cristãos fica deveras abalada quando se vê que aqueles que têm obrigação de a prestigiar, encaminhar para ela mais fiéis, a distorcem, a reduzem a um circo de vaidades e interesses. O bom exemplo do sacerdote é muito importante para o crente, para o católico em particular. Para mim o verdadeiro prior é aquele que se afasta da política, da guerra e dos vícios. O padre deve ser amigo do branco, do negro, do amarelo, do vermelho, de todos – seja nacional ou estrangeiro. Não pode, nem deve, discriminar, fazer juízos de valor. O que se desvia destes elementares princípios, destes padrões, não passa de um farsante, de um vigarista, de um ímpio!      

- Em parte estou de acordo consigo, mas também penso que o padre é um ser humano, um homem, com todas as fraquezas e defeitos da espécie humana. Por outro lado, a sociedade também exerce sobre eles uma forte influência, também os contamina, eles não vivem em nenhuma redoma de vidro. Até os frades e os monges por vezes são atraídos pelas luzes da ribalta, apesar de desejarem a solidão. Claro que se devem retirar da Igreja logo que verifiquem que a sua vocação, o seu espírito, se está a afastar dos princípios que atrás mencionou. Mas, peço-lhe: continue a sua narrativa e deixemos este assunto tão complexo e polémico, senão, daqui a nada, estamos a discutir se as dúvidas de Jean Barois não passavam de um mero exercício de retórica!

 

*

 

- À medida que o tempo fenece, a memória, esse silo que tudo armazena e conserva, vai-me traindo; muitos dos eventos já esqueci de todo e outros brotam da minha memória partidos, fragmentados. Lembro-me, isso sim, de factos importantes que deixaram marcas indeléveis no meu subconsciente. Por exemplo, este: uma noite, estando a minha Companhia colocada em Teixeira Pinto, fomos espalhafatosamente acordados. Era o alferes Briosa, cabelos entre o castanho e o loiro, olhos verdes, brilhantes, dentes pequeninos, jovial, prazenteiro, com uma vitalidade fora do comum, que, em altos brados, nos obrigava a saltar da cama e ir imediatamente vestir a farda. Queria-nos prontos a partir para o mato dentro de dez minutos. Na guerra, o soldado está vinte e quatro horas ao dispor do seu amo e senhor. Já na parada, formados, o nosso capitão Fontelas (fora promovido havia pouco tempo) vociferou: «A nossa “excursão” hoje vai ser até um quartel perto de Bula, que neste preciso momento está a ser atacado pelos nossos “amiguinhos” turras. São cerca de quarenta quilómetros daqui lá. Temos, de qualquer modo, daí chegar o mais rápido possível. As estradas são perigosas, de terra batida, e cheias de surpresas. Todo o cuidado é pouco. Não se esqueçam de levar as bengalas de ferro, pois a partir de um certo sítio – isso ser-vos-á indicado oportunamente – terão de ser usadas para deteção de minas. Não se sabe o tempo que vamos demorar e nem o que nos irá suceder, por isso levem água e rações de combate para dois dias

     Entrámos para aqueles camiões enormes, revestidos a aço, com bancos corridos, em madeira, que faziam uma barulheira infernal ao arrancar e nos transportavam aos solavancos durante o percurso. À frente da coluna seguia um desses terríveis monstros pré-históricos, cheio de sacos de areia. A sua invulgar alcunha - «rebenta minas» - não poderia ser mais apropriada. Logo atrás rolava o pequeno blindado, o «chaimite», desejoso por mostrar as suas habilidades.

     Seguimos estrada fora. Percorridos uns bons vinte quilómetros mandaram-nos descer dos carros e continuar a pé. A partir daí seria um autêntico suicídio permanecer dentro daquelas viaturas. Os seus motores ruidosos atrairiam inevitavelmente a atenção dos nossos inimigos, pelo que seria preferível e conveniente demorar mais tempo a socorrer os nossos companheiros mas não correr o risco de irmos todos pelos ares. O blindado, mais silencioso e maneirinho, passou para a nossa retaguarda. Algumas viaturas iriam regressar a Teixeira Pinto – tinham cumprido a sua missão.

- Tudo bem planeado…

- É verdade. Uns de um lado e outros do outro da “estrada”, lá íamos picando, picando, na ânsia desesperada de descobrirmos os explosivos mortais. Andámos, andámos, quando de repente uma enorme explosão nos atira a metros de distância. Uma mina assassina tinha rebentado ao passar sobre ela quatro gigantescos pneus. O condutor, pois só ele ia nessa altura no carro, ficou sem jeito. Ainda com vida, gemia com dores. O sangue escorria-lhe pela cara abaixo, cobrindo-lhe os olhos, e os seus membros inferiores mais pareciam os de uma boneca: tinha, sem quaisquer dúvidas, as pernas esfrangalhadas, desfeitas! Enquanto o enfermeiro prestava os primeiros socorros ao ferido, pela rádio lançava-se um apelo ao helicóptero para o transportar a Bissau. Por precaução, e sabendo-se, ou presumindo, que o inimigo já tomara conhecimento da nossa presença, arriscámos uns tiros de bazuca em várias direções. Logo depois o perturbador silêncio invadiu todo o espaço à nossa volta, provocando uma sensação de vácuo, de imponderabilidade.

- O helicóptero demorou muito? – perguntou Henrique.    

- O “pássaro voador” tardava a chegar! Afastado do infeliz, não assisti à sua partida. Não sei se sobreviveu aos ferimentos. O ser humano, ao longo da sua existência terreal de milhões de anos, e depois de ter sido afastado violentamente do paraíso, corrido a pontapé pelo deus todo-poderoso, tem resistido a tantas provações que não me surpreenderia se o meu camarada condutor fosse hoje um homem vivo e com saúde. A nossa espécie tem sete fôlegos como o felino!

- E também é frágil como uma avezinha… - observa o jovem, com um sorriso matreiro nos lábios.

- Tens razão. Depois de se ter desviado a viatura do caminho – ou o que dela restava – avançámos lenta mas resolutamente, com mil cuidados redobrados, até a luz do dia de nós se despedir. A noite não é boa conselheira, sobretudo quando nos encontramos em guerra e no mato; o nosso capitão, homem perspicaz e inteligente, sabia isso. Assim, mandou suster a marcha: de madrugada prosseguiríamos. Barriga para baixo, e metralhadoras em posição de fogo, lentamente, lá nos acomodámos ao longo do caminho, uns a oeste, outros a este.

- Ficaram na escuridão total…

- Absoluta! Não se via nada, nem ninguém. Contudo, havia sons: animais noturnos faziam ouvir a caraterística voz; a sua passagem, vagarosa, arrastada, pela escura e demoníaca selva, provocava calafrios de terror. As aves da noite chamavam, numa linguagem codificada, o seu companheiro de farra.

     Nós, pobres mortais, semicerrávamos os olhos para de imediato os abrirmos com medo de sermos caçados pela “raposa traiçoeira”, como simples galinhas dormindo sono profundo!

     Abri os olhos e, não querendo acreditar, esfreguei-os para me convencer de que não estava a dormir. Longe, por entre as incontáveis árvores, uma luz fraca passeava. Disse, entre dentes, ao soldado que se encontrava junto a mim:

     «Valongo, estás a ver o mesmo que eu?!» A resposta não se fez esperar: «É uma luz; talvez sejam os turras!» Eu então solicitei-lhe:

     «Atira-lhe uma bazucada.» Retorquiu ele: «És doido varrido! Estão distantes e por outro lado vamos pôr isto tudo em polvorosa.» Eu insisti: «Atira-lhe; aponta em direção àquela brecha

     Aquele silêncio estava a pôr-me num estado de semiloucura, por isso desejava ouvir barulho, gritos, tiros, granadas a rebentar no solo estrondosamente! Queria que a luz das chamas substituísse aquela escuridão imensa – pretendia sair daquela espécie de letargia que me estava a enlouquecer. O meu camarada bazuqueiro, ensonado, de olhos esbugalhados, fixa a poderosa arma no ombro direito e aí vai projétil.

     O estrondo do disparo, qual explosão nuclear, ecoou por toda a selva africana! Bichos e gente, num grito de raiva e de desespero correram algum tempo sem destino certo. Metralhadoras pesadas e ligeiras começaram a fazer-se escutar, sobrepondo-se aos gritos e aos movimentos frenéticos, desarticulados. As feras brotavam de dentro de nós e devoravam, sem piedade e sem dó, a natureza indefesa e inocente. De súbito, saindo de uma garganta funda, uma voz rouca e estridente, poderosa, parecendo vir do Olimpo adormecido, de um Zeus zangado, atroou os ares: «Calem as armas, suas bestas!» Era a descomunal voz do nosso comandante da Companhia. Estava furioso, impaciente, agressivo. Não encontrava qualquer motivo ou explicação, por mais que meditasse, para aquele tiroteio, para aquele festival saloio, para aquele desperdício de munições e energias.

     Os seus homens estavam tensos e ele sabia-o; não tinham tido a sua formação na Academia Militar, a sua preparação na arte de bem guerrear qualquer inimigo, a sua força anímica.

     «Bestas!» - repetiu, agora mais calmo e compreensivo: «Não de  em nem mais um tiro. Isto que não volte mais a acontecer…»      

- Não pregaram olho, nessa noite…

- Dormir! Os primeiros raios solares brindaram-nos com a sua presença. Levantámo-nos do incómodo chão e recomeçamos a marcha. Corpo cansado, roupa húmida, devido à impercetível mas danosa cacimba, espírito sob tortura. As probabilidades de virmos a sofrer uma cilada eram imensas; a gente do PAIGC não perderia uma oportunidade destas: conhecia perfeitamente a nossa posição no terreno e a nossa força. Graças aos deuses, nada aconteceu; fomos seguindo, seguindo, com muita precaução, até ao aquartelamento dos camaradas que nos solicitaram apoio. Agora, face àquele dântico espetáculo, compreendia por que não tínhamos sido visitados pelo negro inimigo. Os guerrilheiros concentraram todas as suas forças no ataque ao quartel, ora transformado em escombros! Um pandemónio: berros e mais berros, ordens e mais ordens. Os helicópteros chegavam e partiam com os atingidos e mortos, num deambular macabro. Os rostos dos nossos companheiros refletiam o medo, espelhavam o terror, a ânsia e a tragédia.

- Um massacre! É inadmissível! – exclama Henrique, irritado.

- Não, não estava certo! Aquele quartel, se assim se lhe podia chamar, no interior da floresta, à mercê de um belzebu astuto e calculista, granítico, e – de certa maneira – poderoso, apesar de à primeira vista não o parecer. Os “gajos” utilizavam, com mestria, os morteiros, talvez fornecidos pela União Soviética, através de Cuba. E possuíam canhões! E armas sofisticadas. Tudo!

- Sozinhos, não poderiam ter feito frente ao exército português – afirma Henrique, categoricamente.

- Também acho. Nós já suspeitávamos, tínhamos a bem dizer a certeza, que militares cubanos faziam parte das forças contrárias. Como Salazar, e os seus esbirros, estava longe da realidade! Ele pensava, cérebro envolto em naftalina, ainda na idade média do desenvolvimento intelectual, que os “turras” eram gente de pé descalço, tipo movimento da “Maria da Fonte”, e usavam ainda a tradicional catana. Pobre pacóvio de Santa Comba! Encerrado num gabinete, os seus grandes pés sempre enfiados naquelas botarras pretas, rodeado de velhas múmias conselheiras, bebendo o chã da sua Mariazinha, não podia, se calhar não queria, aperceber-se do que se passava nas colónias. Bastava que os diplomatas portugueses lhe dissessem: «Senhor Presidente do Conselho de Ministros, Portugal encontra-se completamente isolado, nenhuma nação se solidariza com a nossa causa, ninguém nos dá razão. Só nos resta ceder

- Pensa que o país estava numa situação dessas que descreveu?

- O PAIGC era apoiado por peritos, por especialistas, neste tipo de lutas. As armas que as nações apoiantes lhe forneciam mostravam ser de certo modo adequadas à região africana, e essa coincidência não era por mero acaso. Estas guerrilhas serviam de balão de ensaio às grandes potências para outras guerras mais importantes e rendíveis. Mas não falemos disso, pois trata-se de uma matéria complicada e eu, meu amigo, não tenho competência para a abordar com rigor e isenção. Naquele tempo os nossos terríveis adversários ainda não utilizavam a aviação, à exceção do helicóptero, nem carros de combate; no entanto, iam paulatinamente deitando abaixo os nossos aparelhos e destruindo as nossas viaturas: especialmente as de transporte! As suas emboscadas surtiam quase sempre o efeito pretendido, isto é, conseguiam matar um ou dois dos nossos homens, desmoralizar os restantes, e inutilizar toneladas de mantimentos!

- Uma tática infalível!

- Usavam a Rádio Internacional, nomeadamente da Argélia, para emitir propaganda política, nela surgindo frequentemente vozes de cidadãos portugueses conhecidos, opositores ao regime corporativista e colaboradores dos movimentos de libertação.

- Vozes, essas, que se ouvem em nossos dias na Assembleia da República!

- E ainda bem! Sinal de que há democracia. Depois da revolução, Portugal tornou-se um país onde todos os portugueses têm lugar.          

- De acordo – concordou Henrique – no entanto deviam pedir perdão aos ex-soldados, pois indiretamente prejudicaram-nos.

- Isso agora é secundaríssimo. Para mim, até me provarem o contrário, o grande culpado foi o santa-combense e os seus capangas. Não tiveram visão do futuro, estavam por demais agarrados ao passado. Não souberam distinguir o essencial do acessório. Mas permites que continue a minha história?

- Com certeza. Até agradeço.

- Pouco havia a fazer ali. Os “turras” deviam estar radiantes. Aquela ação tinha sido para eles um êxito completo, pleno: alguns mortos, muitos feridos por balas e estilhaços, o aquartelamento praticamente arrasado! Ao invés, as suas baixas, se as tiveram, deveriam ter sido ínfimas, a bem dizer, insignificantes. A conclusão lógica a tirar de tudo isto seria a de que esta pugna jamais poderia ser ganha de armas na mão. O inimigo não precisava de muita soldadesca: poucos, bem treinados, conhecedores do terreno, moralizados, chegavam e sobravam para um exército de cinquenta mil homens!

- Como iam longe as guerras clássicas! – comenta Henrique, lembrando-se dos filmes que já vira acerca desse tema.

- Na mata eram impossíveis, impraticáveis. Por outro lado, a ciência militar, o espantoso avanço tecnológico, tornou obsoletas essas guerras. Agora, e sobretudo no futuro, com a ajuda do computador, da robótica, as coisas já serão diferentes. Por este andar, a sofisticação atingirá o seu auge dentro de poucas décadas. Prosseguindo:

     Depois de nesse sombrio local termos estado cerca de um dia, patrulhando a mata em redor, regressámos a Teixeira Pinto na madrugada do dia seguinte. Escusado será dizer que durante a noite ninguém conseguiu dormir. Horas longas, quase eternas. A vista doía de tanto sono e tanto esforço para não lhe ceder, mas o medo, esse sentimento que corrói a alma e nos torna pigmeus, pequeninos, era mais forte do que Morfeu. Silêncios profundos, de vez, em quando, interrompidos pelos ruídos de animais notívagos, alimentavam ainda mais, se possível, a nossa ansiedade. Os mosquitos, desprotegidos como a gente estava, banqueteavam-se à vontade, sem etiqueta, sem pedir licença, enchendo a pança, ao contrário de nós que tínhamos uma lazeira dos diabos e nada para rilhar, nem uma migalha de alimento, nem uma côdea de pão de milho sequer para enganar a fome!

- É o sofrimento na sua máxima expressão! – diz o moço, com uma expressão melancólica, comovido até às lágrimas.

- Bem o podes afirmar! Finalmente, a aurora, radiante, surgiu no horizonte; novos odores, fragrâncias primaveris da floresta tropical, vieram desejar-nos os bons dias. Lembro-me de ter olhado, olhos semicerrados, para aquele amanhecer e monologar: “que linda é a África e como o ser humano a desrespeita, a conspurca!” Em Teixeira Pinto toda a gente se pelava por saber o que se passara. Nós, porém, fomos bastante lacónicos, parcos em pormenores; queríamos um banho, comer e dormir. Pedimos a todos os santinhos que não nos maçassem durante umas horas. Banho… nem pensar! Não havia água nas torneiras. Podíamos ir ao rio tomá-lo, mas estávamos demasiado fatigados para isso; por outro lado, corria-se alguns riscos – quem sabe se na outra margem uma arma mortífera nos espreitava?

- Também já era azar a mais! – comentou Henrique, resfolegando.

- Já estávamos habituados. Assim, comemos alguma coisa e em seguida fomos repousar o corpo e o espírito. Acordei sobressaltado. Sonhara com aqueles horrores, com corpos mutilados, com feras raivosas, da boca escorrendo-lhes sangue, a atacarem-nos traiçoeiramente. Para me distrair um pouco peguei em algumas cartas e li-as.

- Por falar nisso, e aproveitando a deixa: podia ler-me mais uma?

- Com certeza, terei todo o prazer nisso:

 

    Querido afilhado

 

            A continuação de boa saúde – esse é o meu desejo. Desculpe se há mais tempo não lhe respondi, sei que isso é imperdoável, mas a causa desse atraso é o seguinte: como queria que na próxima vez que escrevesse lhe mandasse a minha foto, estava à espera que viessem cedo de Lisboa, foram lá para revelar, mas até à data ainda não chegaram; portanto não se ponha a pensar coisas desnecessárias. Logo que elas cheguem mando-lhe uma, mas vai reparar que não sou nenhuma beleza dessas que aparecem nas revistas de modas.

         Então, afilhado, tem-se distraído alguma coisa? Aqui, nesta terra, é tudo muito bonito, mas só que no verão foge toda a gente para as praias e ao domingo é uma autêntica pasmaceira. Se calhar este ano também vou uns dias, estou a precisar muito, a minha pele é demasiado branquinha. Que me diz disso?

     No Minho litoral temos praias lindíssimas, com muito iodo, a água no entanto é um nadinha fria, quase gelada; há anos que é impossível tomar um bom banho! Conhece Ofir, Âncora ou Moledo? Segundo me disseram, em África existem muitas praias e boas, mas estão cheias de tubarões e de crocodilos – será verdade?! Não se arrisque.

         Por hoje nada mais, receba muitos abraços da madrinha muito amiga. E escreva-me depressa, sim?!

                                                                                                                                                                                                                                                                   Fernanda    

 

 

- Já lhe estava a pedir para a deixar ir à praia – brinca Henrique, folgazão. 

- Nem queiras saber como desabafei! Ora essa! Só me faltava esta; a falar-me de divertimento, de praias, a mim que nem sequer água tinha para tomar um duche! Achas isso agradável, decente?!

- Que quer o meu amigo? Que ela lhe contasse desgraças, lhe falasse dos inúmeros desastres que ocorriam por esse mundo fora, da fome que grassava em muitos países, das doenças sem cura?!

- Não queria isso, não; sofrimentos, tinha-os eu à porta, não precisava dos alheios, mas considero uma afronta ter-me perguntado se me divertia. Onde raio ela imaginou que eu estava? No Casino do Estoril, na Feira Popular, nas praias algarvias?

- Bem, bem! Parece que tomava o assunto muito a peito…

- Nem sequer respondo a essa subtileza. Adiante. Quatro da manhã. O alferes Barrelas, esguio como uma árvore em crescimento, um trinca espinhas, um dos mais irrequietos oficiais da Companhia, irrompe, em altos brados, pela nossa camarata e ordena: «A pé! Pensam que isto é um hotel de cinco estrelas? Ou julgam que estão em férias? Dentro de cinco minutos, quero-os todos formados

     Com o corpo ainda dorido, com os olhos teimosamente fechados, vesti-me, peguei na metralhadora e juntamente com os outros apresento-me na parada. Não me apetecia mesmo nadinha ir a essa operação. Não conhecia exatamente o meu peso, mas sentia-me fraco, débil, tísico! Saí da minha terra com cerca de sessenta quilos; se agora pesasse cinquenta já me podia dar por satisfeito! Manifestei ao meu alferes o receio de estar doente e a resposta não se fez esperar: «Isto aqui não é para medricas: um homem é um homem

- E o Cândido que lhe respondeu?

- Não adiantaria argumentar; no regresso, se regressasse, iria falar com o médico e logo se veria. Devido àquela dor intensa no peito, temia estar tuberculoso. Tanta gente morrera já com essa terrífica doença! Antes de partirmos para a nova aventura pelas matas o capitão Fontelas falou-nos: «Esta ação de hoje é apenas de rotina, quase um passeio! Vamos nas viaturas até um determinado sítio e depois seguimos a pé. Levem, de qualquer modo, munições e rações de combate para dois dias. Dirijam-se agora ao refeitório e tomem o pequeno-almoço. Dentro de meia hora quero-os todos prontos para arrancar.» Mais nada! Quem éramos nós, filhos de deuses mirrados, de campónios sem eira nem beira, de operários de segunda, de trolhas analfabetos, para tomarmos conhecimento prévio da operação? Simples peças de uma máquina mais ou menos bem montada, limitávamo-nos a cumprir ordens, a obedecer cegamente. Eles sabiam o que convinha fazer: quando e como. A nossa cabeça, a nossa inteligência, os nossos neurónios, ali não tinham qualquer utilidade, eram lixo! Só a presença física, resistência, capacidade de persuadir pelo número, pela força bruta, se levavam em conta.

- Em um regime autoritário queria certamente uma democracia militar! – ataca Henrique, com alguma ironia.

- É uma força de expressão – eu sei que não era possível. Continuando: entrámos nas camionetas e rolou-se cerca de uma hora na estrada Teixeira Pinto a Cacheu. Parámos. Os carros voltaram para trás e nós, depois de descermos, dirigimo-nos a pé ao posto de vigilância, Bachile, que se encontrava a uns cinquenta metros da estrada. Nesse posto permaneciam quinze homens, pertencentes a um batalhão mais antigo do que nós na Guiné, cujo comando estava em Teixeira Pinto como o nosso. Um desses homens, o cozinheiro, acabaria por morrer da maneira mais estúpida que se possa conceber. Como a sua especialidade o retinha entre muros, um dia, possivelmente bem bebido (o vinho que nós bebíamos era misturado com água para sobrar para eles), ofereceu-se para acompanhar os colegas em uma operação. O comandante disse-lhe que não, ele era necessário no posto para confecionar a comida aos seus camaradas, pois quando regressassem viriam esfomeados, não estava habituado àqueles caminhos, àqueles esforços, arrepender-se-ia se fosse.

- Resultou, a sugestão, o conselho?

- Qual quê! Nada o demoveu. Quis ir à viva força. «Só uma vez!» - implorou ele ao oficial.          

- Até parece que a velha loba esfaimada o chamava!

- Não voltou vivo, não! As balas de “Satã” trespassaram o seu voluntarioso coração e o seu corpo agigantado. «O destino: ninguém lhe pode escapar!» Epitáfio derradeiro sobre uma alma a caminho do além, da estrela mãe, ou da lousa fria.

- Soube, porventura, quais eram os objetivos dessa saída?

- Um dos objetivos principais da nossa ida seria, pelos vistos, rendê-los. Outro objetivo, fazer uma breve batida pelos arredores, a fim de verificar se os “turras” andavam por perto. A zona resplandecia de beleza. Algumas habitações, embora modestas, indicavam-nos que ali não havia problemas de maior. O que mais me chamou a atenção foi a existência de uma árvore gigantesca que, sem quaisquer exageros, nem vinte homens juntos a conseguiriam abraçar. A sua sombra cobria uma vastíssima área.

- Sabe o seu nome?

- Infelizmente não tenho a certeza; não possuo quaisquer conhecimentos de botânica. Apenas distingo o carvalho, o castanheiro, pinheiro bravo e manso, eucalipto, e pouco mais: árvores que crescem no Alto Minho. No entanto, disseram-me tratar-se do poilão, ou poilão-forro; os seus frutos dão uma espécie de lã, chamada sumaúma, a qual, depois de bem lavada, utilizam para encher almofadas e colchões.

- Interessante – comenta Henrique.     

- A população residente começava o seu dia de trabalho pastando o gado, cultivando o arroz, colhendo a mancarra, ou amendoim, fabricando o óleo de palma. Não falavam a língua de Camões! Como noutro local te disse, a maioria dos habitantes da Guiné-Bissau não dominava a nossa língua no ano de 1966; a exceção ia para os negros que viviam na capital da província e para alguns chefes locais que a aprendiam, embora pessimamente; assim, podiam ser elos de ligação entre o seu povo e a administração portuguesa.

- Quer dizer que não havia escolas do ensino elementar espalhadas pelo mato! – surpreende-se o jovem.

- Já o disse antes. O governo português nunca se importou muito com isso; as escolas primárias – poucas – estavam localizadas nas vilas mais importantes e nas cidades. Escola secundária só havia uma na capital! Ensino superior nem o cheiro!

- E era assim que os lusos queriam conquistar a simpatia dos africanos! – espicaçou Henrique, admirado, e com alguma dificuldade em crer em tudo aquilo que escutava.

- Até posso estar errado, mas duvido que a população em geral soubesse que a Guiné pertencia a um país europeu, de seu nome Portugal. Para eles isso não fazia sentido; nós estávamos a ocupar militarmente o seu território. Ali tinham nascido, ali cresciam e morriam. Aquele era o seu chão e não viesse este ou aquele dizer-lhes o contrário. Língua, possuíam a sua, secular, e não precisavam de nenhuma outra. Não lhes fossem também dizer como se criava o gado, como se plantava o arroz nos terrenos alagadiços, como se fazia óleo, vinho de palma e aguardente. Amavam a sua cultura, a sua religião, os seus mitos e tradições; a sua arte, as suas cerimónias fúnebres, seus rituais, e quiçá a cor da pele! Não, ali não era mesmo poiso de branco; este só na cidade, longe da selva, longe da natureza imaculada.

 - O meu amigo Cândido perde-se em considerações, desliza pelo tempo e pelo espaço… Eu gostaria de saber como as coisas lhe correram.

- Desculpa. As palavras são como as cerejas: vêm em cachos! Pois bem: partimos então para o patrulhamento. Andámos, andámos, sob sol, sob calor abrasador. A água do cantil depressa se esgotou, apesar do enorme controlo que exercíamos sobre ela. Os lábios começavam a ficar gretados. As águas dos pântanos, dos lagos nascidos das chuvas, não serviam para beber. Mesmo assim, o enfermeiro dizia-nos que enchêssemos os cantis, pois misturaria na água um comprimido que já trazia consigo para esse efeito. Não sei que raio tinha a pastilha, só sei que de imediato tornava claro aquele líquido sujo e nojento! Contudo, a água ficava com um sabor esquisito.

- Era tudo contrariedades!

- É verdade. Estávamos a chegar ao nosso destino. De súbito, o capitão mandou-nos parar: «As armas em posição de fogo; bazucas aqui para a frente; a dois passos de nós há uma tabanca que tem dado abrigo e alimento aos turras; vamos destruí-la completamente. Os tipos podem oferecer resistência; cada pelotão vai tentando rodeá-la; quando eu disser, começam a disparar.» Saímos da floresta e entrámos numa clareira. O capim rivalizava connosco em tamanho. O calor da tarde tornava-se insuportável. Não me lembro bem em que mês do ano se estava – talvez Junho – mas isso também não era importante, pois na Guiné há temperaturas elevadas durante todo o ano. Aproximámo-nos do local, o mais perto possível. Da tabanca chegavam, impercetíveis, os murmúrios de algumas vozes masculinas e femininas. “Estranhas vozes e estranha gente”, disse para com os meus botões. Chegado a este ponto, meu caro amigo Henrique, apetece-me sonhar. Imaginar-me em Melgaço, ouvir as vozes amigas dos meus conterrâneos, convidando-me: «Vem beber uma malga de vinho da última colheita e comer um pedaço de pão com presunto – este é do especial

- Fantasias! Saudades! A vontade de rever a sua família, a sua casa, o rio Minho. Tudo! – atalha o rapaz, na esperança de apaziguar o ânimo exaltado do amigo.

- Talvez! O primeiro tiro: pum! A seguir as bazucadas, com o seu som aterrorizador – armas e pessoal em movimento acelerado. As labaredas irrompem tenebrosas e belas, os gritos lancinantes destroçavam o coração do mais empedernido. As cubatas, feitas de barro amassado e cobertas de capim, não resistiram às granadas das bazucas e às chamas: uma a uma, foram tombando como tordos sob o fogo do exímio caçador. Os moradores, com os seus parcos haveres, fugiam o mais rapidamente possível em direção à mata cerrada, que distava dali uns bons cem metros. Avançámos mais. Contra nós, pelo menos fiquei com essa impressão, ninguém disparou! Dentro das habitações, das poucas que restaram, não se vislumbrava vivalma. «Ainda bem» - congratulei-me, aliviado. Esperava ardentemente, juro-te, que não se encontrassem corpos carbonizados, esturricados: seria um horror para mim.

- Foi uma razia! – indaga Henrique, numa tentativa de adivinhar o que se passou.                

- Podes crer! E quando já se pensava estar tudo resolvido, tudo acabado, eis que surge uma velha mulher, alta, esguia, de um negro muito negro, quase nua, gritando como uma louca. Na cabeça, oval, sustentava uma cabaça e na mão direita tinha um objeto de barro. Barafustava, gesticulava, e ninguém – nem mesmo os nossos guias – compreendiam essa língua tão exótica! A mulher pousou as coisas no solo e com os olhos vermelhos de raiva e com gestos de fera ferida pronunciava frases terríveis contra nós, mesmo sem as entendermos! Então, um dos alferes da Companhia, não me recordo qual deles, agarrou-lhe no braço direito e disse-lhe, num tom de voz seco, que não admitia réplica, acompanhando as palavras com olhares convincentes: «Vai-te embora! Ninguém aqui te quer fazer mal. E parte enquanto é tempo. Quando nós estivermos longe, tu voltas para reconstruir a tua palhota

- E ela… – foi-se embora?!

- A velha, mistura de leão e tigre, assanhada, sem ter percebido uma única palavra do que ouvira, liberta-se do roubador de liberdades e vidas, do incendiário cruel, e tenta vingar a afronta, atirando-se com desespero ao oficial. Este, colhido de surpresa, não esperando o forte impacto, cai. Um furriel, vendo que a situação teria de ter um fim rápido e eficaz, um desfecho digno de um exército dominador, agarra a irreverente mulher e atira-a com ímpeto a metros de distância. Sem sequer lhe dar tempo de se erguer, sobre aquele corpo indefeso, antigo, numa fúria jamais vista, olhos fora das órbitas, qual exterminador bíblico, deus sanguinário destruindo Sodoma e Gomorra, imaginando-se numa guerra entre dois mundos, descarrega todo o arsenal da sua G-3. Quase duas dezenas de balas puseram fim a um espírito livre e selvagem.

- Inqualificável! Matar uma mulher indefesa! Isso não se faz! Nada o justifica! – diz Henrique, com alguma tristeza.

- Para mim, aquela valente não morreu em vão. Pode ter sido loucura ou ingenuidade, um ato irrefletido; pode ter sido também ato assumido, um sacrifício ao deus da honra e da liberdade. Sinceramente não sei.

- Você ficou chocado. Que fizeram ao corpo – enterraram-no? – pergunta o jovem, na esperança vã de obter uma resposta positiva.

- Não! Quem iria perder tempo com isso? Seria devorado por animais, por aves de rapina, por abutres, ou enterrado depois pelos seus parentes. Esta cena, que para os meus companheiros não teve um significado especial, fazendo parte da rotina da guerra, comoveu-me até às lágrimas, feriu a minha sensibilidade e marcou profundamente o meu caráter; a partir daí, posso afirmá-lo, houve de facto uma alteração no rumo da minha vida. Aquela imagem esquelética, aqueles olhos de trovão, os seus gestos de guerreira, gravaram-se para sempre no meu cérebro, no meu espírito, no subsolo da minha alma. Às vezes vale a pena morrer!

- Depois desse acontecimento pavoroso, retiraram?

- Sim. Já não estávamos ali a fazer nada. O capitão mandou retirar imediatamente. A morte da heroína, o calor intenso, a falta de água, estavam a produzir em mim o seu efeito nefasto e demolidor. Comecei a sentir algo estranho, a ter visões. Uma nuvem pairava sobre a minha cabeça e libertava uma chuva miudinha que os meus ressequidos lábios saboreavam com prazer. Que rica água: fresca e pura como a das nascentes; saborosa como uma limonada em pleno verão. Porém, uma cotovelada viril veio interromper esta visão irreal e maravilhosa. O meu camarada de especialidade, o Beja, diz-me: «Eh, pá! Estás a ficar branco, como a cal; que se passa? Aguenta, que agora já estamos de volta.» Aos vinte e um, vinte e dois anos de idade, os milagres de resistência acontecem. Soube, a partir desse inesquecível dia, que o ser humano é mais rijo do que aparenta. Se me tivessem contado todas estas peripécias, sem eu as ter amargamente vivido, dificilmente nelas acreditaria: dias sem ingerir qualquer alimento, sem descansar, sem beber, calcorreando matas e pantanais, trilhos e mais trilhos tenebrosos, sob um sol escaldante, enfrentando perigos visíveis e ocultos, eram razão mais do que suficiente para derrubar ciclopes homéricos ou Aquiles de frágil calcanhar. Nós, rapazes portugueses deficientemente treinados e pessimamente alimentados ali estávamos, como olímpicos imortais!

- Parece tudo um sonho; estou abismado com tanta resistência – confessa Henrique.

 

*

                                               

- O regresso a Teixeira Pinto tornou-se lento e penoso. Tivemos sempre a nítida sensação de estarmos a ser perseguidos. Não me lembro quantos quilómetros já tínhamos percorrido a pé. Talvez qualquer coisa como quarenta! Nem valia a pena pensar nisso. A caminho, em frente. Havia mais de uma hora que deixáramos a povoação em chamas e uma virago africana a ser devorada pelos abutres e toda a espécie de carnívoros necrófagos! O silêncio da floresta anunciava borrasca. A emboscada estava mesmo a rebentar. Não seria de prever outra coisa! A “costureirinha” dos paigecês, com o seu matraquear caraterístico, produzindo um som semelhante ao da máquina de costura, cantava a sua canção fúnebre. Atirei-me ao solo com a rapidez do raio, aproveitei o tronco grosso de uma árvore e ripostei às balas do inimigo. O nosso capitão, verdadeira personagem dos filmes de guerra, indiferente às balas, andava de um lado e de outro, dando instruções, empolgando os seus guerreiros: «Carregar! Sem dó nem piedade. A eles! Morte aos turras!» Ouviam-se palavrões, obscenidades que fariam corar uma prostituta. O tiroteio não durou mais do que meia hora. Os guineenses não deviam ser muitos e só pretendiam perturbar, desgastar a tropa portuguesa. Permaneci deitado mais algum tempo. Só tinha consumido um carregador. Depois daquele barulho indescritível, resta o silêncio novamente. Até o bater do coração se ouve! O comandante, aparentemente calmo, mandou avançar: «Vão atentos, o inimigo pode atacar-nos de novo   

- Houve feridos? – pergunta Henrique, com comiseração.

- Felizmente não houve quaisquer baixas a lamentar. No entanto, o nosso furriel Grande, ao tentar levantar-se, cai ao chão desmaiado. Um contratempo. O capitão, habituado a lidar com a fraqueza humana, acostumado também a resolver todos os problemas e dificuldades que iam surgindo, com um sentido prático, sem tergiversações, vai ao pé dele e dá-lhe duas valentes bofetadas: «Acorde furriel, deixe as suas misérias e debilidades para outra ocasião. Este não é propriamente o lugar nem o momento certo para este tipo de exibições

- A terapêutica surtiu efeito?! – pergunta Henrique, com ironia.

- Por mais incrível que isso pareça, o furriel entreabriu os olhos e, com a ajuda dos seus homens, levantou-se a custo. O enfermeiro deu-lhe qualquer coisa a cheirar e, amparado, sem qualquer carga, lá foi indo.

- Lá diz o ditado: «os gigantes também tombam

- Podes não acreditar, mas este novo acontecimento também mexeu imenso comigo. Um dia ancho de lições! Como que é que um homem, muito mais alto e forte do que eu, com outro treino, com uma alimentação mil vezes melhor do que a minha, vergava assim?! Eu, franganito, cinco réis de gente, o “lingrinhas”, ou “esquilo”, como o alferes Briosa sempre me chamou, aguentava, embora sofrendo, todo este diabólico percurso. Ainda hoje, passados tantos anos, reflito nisso.

- De facto, você é um homem de têmpera! – elogia Henrique, num sorriso aberto e franco, mostrando uns dentes perfeitos e bem escovados.

- Nem por isso! Hoje já estou um pouco em baixo, os anos não perdoam. Na Guiné-Bissau suportei mil sofrimentos porque tinha aquela idade, caso contrário teria sucumbido. Eu não sou Hércules, nem sequer Ulisses! E David também não poderia ser, porque não tenho a sua pontaria! Até parece que estou a ver o gigante Golias a tombar depois de receber uma pedrada em cheio, naquela testa enorme!

     Mas prosseguindo: continuámos a andar; uma hora depois, mais ou menos, ouvimos vozes. Escondemo-nos e vimos um grupo de mulheres, com cestos à cabeça, andar apressado. Logo que se aproximaram, alguns dos meus companheiros saltaram-lhes ao caminho como qualquer Zé do Telhado, ou Tomás das Quingostas, e um dos oficiais mandou-as parar e deu-lhes ordem de prisão, como se elas tivessem acabado de assaltar uma agência bancária em Lisboa!

- Do primeiro já ouvi falar, até já li um livro, e vi um filme, sobre a sua vida; mas quem foi esse Tomás das Quingostas? Nunca ouvira antes pronunciar o nome de tal criatura!

- Era um chefe de malfeitores. Nasceu no lugar das Quingostas, em São Paio de Melgaço, no ano de 1808. A sua quadrilha esteve ao serviço, durante a guerra civil, provocada pela desavença entre os dois irmãos D. Pedro e D. Miguel, de quem lhes pagava melhor. Depois de 1834, quando terminou a dita guerra, dizia-se miguelista, mas era para receber dinheiro dos absolutistas e dos carlistas espanhóis. Logo que os liberais (mais concretamente o visconde das Antas) o promoveram a comandante da guarda volante do Alto Minho, força paramilitar, muito duvidosa, começou logo a perseguir aqueles que até aí tinha apoiado. Era um verdadeiro camaleão.  

- Um bandido age de acordo com as suas conveniências! – corrobora o jovem Henrique.

- Exatamente! O Tomás e a sua quadrilha percorreram os montes de Castro Laboreiro, as serras da Peneda e do Gerês, o Soajo, os concelhos limítrofes ao seu, sobretudo Valadares, indo até à Galiza, assaltando quintas e casas senhoriais, ricos e remediados, traficando soldados para as hostes carlistas, enfim, causando o terror e o caos numa vasta zona, pilhando e matando diversas pessoas que por azar se cruzaram no seu caminho.

- Um valentão! E ninguém lhes dava caça? – pergunta Henrique, incrédulo com aquilo que ia ouvindo.

- O país estava de rastos por essa altura, tanto financeira como economicamente, mas a rainha D. Maria II deu ordens à tropa para o perseguirem e prendê-lo; no caso dele não se render, deveria ser abatido. E foi o que aconteceu. Em finais de Janeiro de 1839 o Tomás das Quingostas foi preso; mas quando os soldados da soberana o levavam para a cadeia de Melgaço ele tentou fugir. Os militares apontaram-lhe as armas e mataram-no! Isto é o que conta a lenda, mas quanto a mim ele morreu numa emboscada preparada minuciosamente por um tal major Frazão, enviado pelo governo para acabar com o salteador e a sua quadrilha. Assim acabou o maior bandido do Alto Minho. E sem cabeça!

- Sem cabeça?! Como foi isso? – pergunta, admiradíssimo, Henrique.

- A razão foi a seguinte: ele tinha de ser enterrado na freguesia onde morrera – neste caso coincidia com a freguesia onde nascera. Tudo bem! Mas como é que os soldados iriam provar aos seus superiores que tinham abatido o chefe de uma grande quadrilha de bandoleiros?

- Só levando-lhes a cabeça do moinante!

- Exatamente. O resto do corpo foi enterrado perto do sítio onde fora fuzilado, por detrás de uma capela – o padre não permitiu que ele fosse sepultado no seu interior, visto que era um fora da lei e, segundo consta, um herege.

- Interessante. Há tantos episódios da História de Portugal por divulgar!

- É verdade. E agora, prosseguindo a minha narrativa: as mulheres africanas, assustadas, fugiram. Como atletas de alta competição, como genuínos galgos, espumando pela boca, alguns magalas correram atrás delas. Apanharam três: duas novas e uma mais idosa. Os oficiais tentaram falar-lhes; mas o diálogo, devido sobretudo ao idioma e ao nervosismo, não foi possível. Chamaram um dos guias, mas este disse desconhecer aquele dialeto. Desse modo, e receando serem elas portadoras de mensagens para os paigecês, levámo-las connosco. Chegámos finalmente ao local de onde tínhamos partido, ou seja Bachile. Através da rádio pediu-se ao quartel de Teixeira Pinto que mandasse as viaturas a fim de nos transportarem até lá. As criaturas foram atiradas de qualquer maneira para o chão do alpendre e quase esquecidas. Algum tempo passou. Enquanto esperava, tentei dormir um pouco. Mas, eis senão quando um magano, depois de um repouso reparador e algum alimento ingerido, lembra aos outros que «mulher, mesmo negra, nasceu para dar prazer ao macho, e aquelas ali vinham mesmo a calhar!» Outro, que com certeza já o tinha pensado, mas não tivera a ousadia de propor tal infâmia, disse então: «E por que não?! O nosso comandante, juntamente com todos os alferes (à exceção do alferes Briosa, que é camarada, e está neste momento a dormir como um justo), seguiu para Teixeira Pinto num jipe. Os sargentos e furriéis não se metem nestas coisas. Elas estão, pois, à nossa mercê. Quem começa?!»

- Eu não acredito naquilo que estou a ouvir! – grita Henrique, num gesto de repugnância, chamando a atenção das pessoas ali próximas.

- Escuta: logo de imediato um deles, com uma desfaçatez exibicionista, despe as calças, aproxima-se de uma das jovens e bruscamente puxa-lhe o pano (tanga), que cobria as suas partes genitais. Os demais, ao verem esta erótica cena, excitaram-se e não se fizeram rogados. Velha e novas alimentaram os apetites carnais desses pequenos energúmenos, desses excrementos aberrantes.

- E as mulheres, como reagiram? – pergunta o jovem, espumando de raiva, mas mais comedido.

- De nada lhes valeu chorar, implorar; de nada lhes valeu gritar; de nada lhes valeu resistir! Indignado com tal procedimento, invoquei a sua condição de gente civilizada, de cristãos convictos, de divulgadores de ideais humanistas, samaritanos. Pregava no deserto.

- O ser humano, quando atinge a bestialidade, já não é ser humano, é um bicho! – diz Henrique, colérico.

- Tens toda a razão. Peguei na G-3, mas logo mão serena, e certamente comungando comigo o mesmo sentimento de repúdio, segurou com firmeza o meu braço e disse-me: «Que pretendes fazer, louco? Queres matar os teus companheiros?!» Refleti durante algum tempo, e respondi-lhe: «Faz sentido aquilo que me dizes; contudo vou avisar o alferes Briosa.» Bati à porta do quarto aonde ele se encontrava a dormir, e logo a porta se abriu. Informei-o: «Meu alferes, está a passar-se uma coisa horrível ali fora.» O alferes, tudo ouviu com paciência e compreensão, observando: «Ó “Esquilo”, tu és um autêntico anjinho! Não vês que os homens estiveram sob pressão este tempo todo, não são nenhuns santos, alguns deles já são casados, aos meses que vivem na mais pura abstinência, e vai daí aproveitaram a ocasião. Tens muito ainda para ver ao longo da tua comissão na Guiné. Guerra é guerra. Em todos os tempos, em todos os lugares, ela gera cenas semelhantes ou piores do que estas. Que pensas que fizeram os exércitos gregos, os romanos, os persas? E também na 1.ª Grande Guerra (1914-1918) e 2.ª Guerra Mundial, esta última começou em 1939 e acabou somente em 1945, como sabes, quantas coisas erradas se fizeram! Até a bomba atómica os americanos utilizaram, destruindo cidades, e matando e ferindo milhares de japoneses! Todos, sem exceção, cometeram excessos, crimes abomináveis. Este, comparado com os deles, é um crime menor. Se não queres ver, afasta-te – deixa-os em paz. A vida em ambiente conflituoso é isto também

- O alferes agiu com prudência, mas sem dignidade – não eram suas filhas nem irmãs! – comenta o jovem.

- De nada valeram os meus argumentos, que a seus olhos mais pareciam sofismas! Que fizeram de mal aquelas senhoras? Que vilanias, que crimes, tinham elas cometido?! Que infrações, que regras tinham elas violado? Num Estado de Direito estes raciocínios poderiam ter algum peso; ali, na selva africana, em tempo de conflito armado, as teses que predominavam eram as da força das armas. Os remorsos, se um dia rebentarem como ervas daninhas no prado verdejante, serão aromatizados pelo tempo e pela distância. Além disso, os preconceitos de raça e cor eram ao tempo muito vincados.

- Malditos! Se existir o inferno, mais cedo ou mais tarde irão lá parar – exclama Henrique, numa voz teatral, profunda, ameaçadora.

 

*

 

     As cansadas e barulhentas viaturas por fim chegaram. Os soldados, sexualmente satisfeitos, sorridentes, quase felizes, saltaram com extrema agilidade para o seu interior. Praticamente esquecidos da operação, dos sofrimentos a que o seu corpo e o seu espírito tinham sido sujeitos, falam agora daquele ato machista que julgam, pobres idiotas, dignificá-los! Dentro da viatura o tema da conversa é apenas um: sexo! «Quantas deste, ó Santarém?» O outro responde, a rir: «Eu sei lá! Algumas três!» O Coimbra, com imensa mágoa, lamenta-se: «Eu só consegui dar duas!» Logo a seguir outra voz: «Pois eu, se não fôssemos já embora, ainda dava mais uma ou duas; de coisinha nunca me farto!» Era o Famalicão, explodindo de ironia. O Braga, aborrecido consigo mesmo, por ter dormido enquanto os outros fornicavam, comenta: «Caramba! Pelo que ouço, vocês emprenharam as gajas!» Logo, o pérfido Lamego, zomba: «Qual de nós será o pai das crianças?!» Todinho o percurso até ao quartel, nesta conversa vil! Não podia mais. Vomitava raiva! Finalmente chegámos à Vila de Teixeira Pinto. «Que bom!» - disse eu baixinho, respirando de alívio.

- Na verdade, esse crime não tem perdão – explode Henrique. – Nem o facto de estarem em guerra o justifica!

- Monstruoso! Hediondo! Somente os homens de Gengiscão se podem comparar com eles.

- Quando chegaram ao quartel, desta vez havia água nas torneiras?

- Não me fales disso; o soldado não contava, não valia um tostão furado, um pataco dos antigos; era escumalha, lixo humano. Haver ou não haver água para nós tomarmos um banho repousante era indiferente para os superiores. Desde que eles a tivessem… Acontece que obras públicas não existiam – tudo estava paralisado. Alguma coisa que se fizesse na então província da Guiné-Bissau era realizada pela tropa! As ruas de Teixeira Pinto eram de terra batida; não existia Câmara Municipal, nem Juntas de Freguesia, nada!

- Isso revela uma certa mentalidade. Contou tudo aquilo que aconteceu ao seu capitão?

- Contar-lhe?! Ele nem sequer me ouviria! E se os meus colegas viessem a saber que falara sobre o assunto com o comandante da Companhia, considerar-me-iam traidor, renegado, e vingar-se-iam de mim certamente. Isso estava fora de questão. O melhor era tentar esquecer aquilo que se passou. Sozinho não podia mudar o mundo. Os seres humanos são pior do que as feras em certas circunstâncias, e este e outros crimes repetir-se-ão através dos séculos. Ninguém tenha dúvida disso!

 

*

 

     As operações, batidas, missões, patrulhamentos, ações, como lhe queiram chamar, ou então arranjem outro nome para o sofrimento, para a dor, física e espiritual, sucederam-se com poucas interrupções. Ainda me encontrava em Teixeira Pinto quando decidi, ou me autorizaram, ir à consulta do médico militar. Estava escanzelado. Pesava somente quarenta e sete quilos! O clínico, depois de me auscultar, fez, ou mandou fazer, análises e chegou à conclusão de que eu tinha o estômago cheio de bichinhos (micróbios) que devoravam tudo aquilo que eu ingerisse. Receitou-me uns medicamentos e lá fui aguentando. Mas antes de abandonar o seu consultório, aconselhou-me: «Quando chegares à Metrópole vai ao hospital e trata-te como deve ser.» Agradeci a sua sábia sugestão; faltava um ano para eu regressar. Que eram doze meses na vida de um ser humano? Doente, ou com saúde, o soldado tinha de estar ali, a combater pela Pátria e pelo Chefe. No fim da campanha teria a sua medalha e o louvor hipócrita. Depois, já como civil, recuperaria, ou não, das mazelas arranjadas na guerra. Tudo à sua custa! Mas isso não tirava o sono aos governantes. Quanto aos dentes – já tinha dois apodrecidos – teria de me deslocar a Bissau a fim de os extrair, único sítio onde havia “dentista”. Entretanto aconteceu nessa recatada e bonita vila, um dos episódios mais cruéis de toda a campanha: na prisão do quartel encontrava-se um prisioneiro idoso, com uma barbicha algo ridícula, mas importante para ele. Não se sabia bem por que razão o homem se achava detido. Era difícil escutar da sua boca uma única palavra. Tinha sido feito prisioneiro numas das batidas que se levavam a cabo periodicamente nas redondezas do aquartelamento.

- Até faz lembrar as rusgas na baixa lisboeta para apanhar as prostitutas! – interveio Henrique, com o intuito de desanuviar um pouco a tensão.

- Brinca, brinca, maroto, que o teu brincar tem graça! Agora a sério: nessas missões tudo que viesse à rede era peixe – novos e velhos, homens ou mulheres, excluindo as crianças, tudo servia! Após um breve, ou prolongado, interrogatório grotesco, mandavam-se embora ou matavam-se na primeira oportunidade. O velho, certo dia, aparece estendido, sem vida, no pavimento da sua cela improvisada. Ainda mostrava os sinais da violência junto à barbicha, agora quase toda ela arrancada!

     Quem teria sido, quem… Os indícios escasseavam, provas… inexistentes! A sentinela, nada viu, nada escutou, não desconfiava de ninguém. Mas eis que um dia, no bar dos soldados, o Bragança se descai. O álcool, esse amigo da verdade, passou-lhe uma rasteira: tinha sido ele! Como se divertira! «Arranquei-lhe pelo a pelo!» - conta, eufórico e importante. «Os turras não merecem compaixão, por sua causa é que nós aqui nos encontramos!» - berra para todos o ouvirem bem.

- É óbvio que o prenderam e castigaram?! – interpreta Henrique.

- Por mais incrível e surpreendente que isso nos pareça, nem preso nem castigado! Por matar um presumível colaborador da guerrilha? «Caramba! Merecia era uma medalha!» - comentavam entusiasmados os seus incontáveis admiradores.

- O seu colega revelou-se um grande canalha, um patife! Merecia um severo puxão de orelhas, um castigo exemplar.

- Mas espera! Em contraste com este episódio, passou-se este outro: juntámo-nos uns quantos soldados e, a pé, fomos conhecer melhor os arredores de Teixeira Pinto. Seguimos por uma humilde estrada de terra batida, G-3 ao ombro, e de repente avistámos um campo de ananaseiros. Aquele cheirinho agradável indicava-nos que o fruto já estava bom para comer. Um dos camaradas sugeriu: «Como não se encontra por perto o dono, vamos colher um ou dois ananases; ninguém vai dar por nada – são tantos

     Embora com uma certa relutância, acompanhei os outros e tirei apenas um. Não era um grande apreciador desse fruto – gostava mais de pêssegos ou peras. Frutinha da minha terra minhota.

     O proprietário, um negro de olhos de águia, tudo observou sem ser visto por nós. Assim, quando regressámos ao quartel já lá tínhamos a queixa. Chamados ao comandante, ouvimos uma admoestação daquelas que jamais se olvidam: «Devem respeitar a propriedade alheia; o dono dos ananases é amigo e antigo cooperante da tropa portuguesa. Isto que não volte mais a acontecer; não quero larápios na minha Companhia. Agora vão pagar com língua de palmo o que comeram. Cada um de vocês desembolsará a importância de vinte escudos

- Não considero o castigo exagerado; penso até que foi leve.   

- Amigo Henrique: com esse dinheiro compravam-se três cervejas das maiores, mais ou menos o que se bebia diariamente quando não se saía do quartel, e comiam-se umas sandes de queijo, chouriço ou presunto, isto no bar é claro. O ananás que furtei, quando muito, valeria cinco escudos!

- E pagaram?

- Que remédio! Com língua de palmo. Esse dinheiro seria descontado no pré. Hoje penso que não foi totalmente errada essa sentença, só custava contudo verificar que os critérios para a aplicação da pena eram completamente arbitrários.

- Vejo que a justiça militar nessa altura andava muito por baixo!

- Escuta o caso seguinte, emblemático de tudo o que atrás disse. Ouve e dá-me a tua opinião: o soldado que assassinou o velhote da barbicha, vendo que ficara impune, e ainda por cima o crime lhe trouxera certa fama, começou a pensar em outra patifaria digna dele, do seu “prestígio”. Havia perto do nosso quartel uma bajuda (rapariga virgem), engraçada, com quinze, dezasseis anos. A moça via a tropa como amiga e por isso dava conversa aos soldados. Nunca lhe passara certamente pela mente receber de nós qualquer tipo de maldade. Porém, o Bragança, já a tinha fisgado. Um dia disse aos camaradas que o acompanhavam: «Hei de comê-la, hei de partir katota com ela! Não sei ainda como, mas isso vai acontecer de certeza absoluta

     O Sintra, gozão, mas ao mesmo tempo ponderado, observou: «Vê lá no que te metes, olha que o capitão não gosta que se abuse dos pretos, nossos amigos; a bajuda vai fazer queixa de ti, denunciar-te, e é o fim do mundo; eu não arriscava

     «Se fizer queixa, rebento-lhe com os miolos!» - reagiu a sinistra criatura, de punhos cerrados.

     «Tretas! De qualquer modo eu nada sei: não ouvi nada!» - apressa-se a dizer o Sintra.

     Passado escassos dias, o Bragança apareceu triunfante – conseguira a proeza! Era deveras um herói! «Como o tinha conseguido?!» – perguntaram-lhe, achando o ato incredível.

     «Ah! Ah! querem saber? Pois ouçam: falei com a miúda e perguntei-lhe se alguma vez provara vinho do Porto – que se tratava de uma bebida doce, própria para senhoras; as europeias bebiam daquilo todos os dias. Respondeu-me que não, que nem sequer sabia o que era, nunca tinha visto nem bebido. Enfim, ficou combinado oferecer-lhe uma garrafa, do bom, para ela provar. Dirigi-me ao bar da cantina e comprei uma botelha, do mais barato que havia! Depois fui ter com ela, abri a dita e passei-lha para as mãos. Até lambeu os beiços! Dei-lhe mais. Bebeu, como quem bebe água! Às tantas, quando vi que já estava meio tonta, levei-a para o capim. De morte, meus amigos, de morte! Nunca tinha manjado nada semelhante. Um autêntico pitéu

     «Eh, pá! Tu, violaste a gaja! Estás tramado» - disse com certo receio, e alguns ciúmes, um dos seus amigos. «Não sejas parvo» - retorquiu o Bragança. «Para eu ser castigado teria de ser muita gente; não vês os putos mulatos que pululam por aí? Alguém os fez, não?! Vocês são cegos! Não veem entrar nos quartos dos oficiais, e não só, as raparigas negras

          O Sintra, poeta ao jeito de António Aleixo, e para acabar com aquela conversa perigosa, improvisou:

 

A katota da bajuda

é fresca como um limão;

como a pera, é carnuda…

é bela… como um pavão!

              

 «Muito bem!» - disseram todos em uníssono. «Muito bem

- Desta vez foi severamente castigado? – perguntou Henrique, esperançado em ouvir um sim.

- Qual quê! O violador tinha novamente razão. Parece que foi chamado ao comandante, mas o que disseram entre si ninguém o sabe. O certo é que ficou mais uma vez impune!

- Quase inacreditável o que me acaba de contar. Estou fulo, irritado. Como é possível que esse malandro, esse sabujo, não tenha sido severamente punido?! Como?!

- A tropa, meu caro Henrique, a tropa, tudo explica. Ali a lei era outra. Os oficiais castigavam ou perdoavam conforme as suas conveniências. Eram os senhores da guerra! Passados uns dias destacaram o meu pelotão para Cacheu, uma “cidade” minúscula, sem luz elétrica, sem água canalizada, sem comércio, sem estabelecimentos de ensino, sem qualquer tipo de distração. // continua...

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