ENTRE MORTOS E FERIDOS
(romance histórico)
Por Joaquim A. Rocha
// continuação de 14/05/2023.
9.º Capítulo
O EMBARQUE
Eram três horas da tarde. Henrique,
sentado na esplanada, espera o seu grande amigo Cândido. Sabe que a história
ainda está no princípio e a parte mais importante, passada em África, ainda
está por contar. Quer saber tudo em pormenor.
Os
ex-combatentes não publicaram, até essa altura, absolutamente nada sobre a
guerra colonial, uns por não saberem escrever, outros, quem sabe, por não
quererem falar de coisas tristes, de acontecimentos que os marcaram negativamente
para toda a vida. Era um privilégio ouvir da boca de um ex-soldado uma narração
completa sobre essa satânica guerra que tantos mortos e feridos provocara.
Por fim chega o nosso Cândido. O amigo,
depois de o cumprimentar efusivamente, dispara à queima-roupa:
- Ainda se lembra do dia da partida?
- Recordo-me tão bem! Como se todos os
cronómetros do planeta tivessem parado! Ali, naquele infausto dia, naquele
local. Vinte de Janeiro de 1966. Cais do Conde de Óbidos. Ainda era manhã cedo;
o barco estava à nossa espera… Chamava-se Uíge e era gigantesco, semelhante à
goela de um monstro que nos queria devorar. Esperava os “mártires da pátria”. Eu, que odiava toda e qualquer violência,
encontrava-me naquele sítio no papel de belígero para tomar parte ativa na
contenda! Para ir lutar contra indivíduos que defendiam a autonomia e a
independência das suas nações, tal como os portugueses o fizeram no tempo de D.
Afonso Henriques, Dom João I e Dom João IV.
Henrique, que bebia sofregamente
todas as palavras do amigo, interrompe-o a fim de lhe colocar a seguinte questão:
- E no princípio do século XIX, aquando
das Invasões Francesas, os portugueses não lutaram, também, pela sua independência?
Cândido meditou um pouco sobre o
assunto, não desejava dar uma resposta precipitada, a História era uma coisa
muito séria, merecia todo o respeito. Por fim disse:
- Sim, é verdade. Governava então a
França o célebre Napoleão Bonaparte, que andava às turras com a Inglaterra,
país nosso aliado desde o tempo de Fernando I. O imperador francês deu ordens a
Portugal para não permitir que os barcos ingleses entrassem em portos lusos,
mas o regente (futuro D. João VI), que se encontrava
no Brasil (a Corte deslocara-se para lá pouco
tempo antes das invasões francesas) não acatou tal ordem. Bonaparte manda
invadir por três vezes Portugal, mas com a ajuda dos ingleses lá nos livramos
de tal gente.
Henrique ouviu tudo com atenção,
mas não concordava com uma coisa:
- Há quem afirme que a ida da Corte
para o Brasil se justifica plenamente!
Cândido, democrata por excelência,
não contesta essa ideia:
- É polémica essa asserção; é certo que
a rainha D. Maria I estava muito débil, já não decidia nada, e o seu filho, futuro
rei, não era, segundo dizem, homem de grandes rasgos. Se têm ficado
prisioneiros dos franceses não seria bom para eles, nobreza, mas para o país
certamente seria melhor, pois os franceses teriam desenvolvido Portugal, ao
contrário dos reis portugueses que pouco ou nada fizeram. Na primeira metade do
século XIX não havia indústria, nem transportes, o comércio era insignificante,
o analfabetismo rondava os 90%.
Henrique, tudo escutava. Gostava
de História, sobretudo a de Portugal. Para alimentar a conversa, atirou com
mais uma acha para a fogueira:
- E as colónias? Tão ricas, e não
produziam nada?
Cândido, depois de ponderar a
resposta, afirma categoricamente:
- Há um lapso na História de Portugal
que carece de emenda: os portugueses do século XV não foram, em princípio,
conquistar ou descobrir terras, pois a que tinham chegava bem para a população
dessa altura, bastante reduzida, mas sim procurar, através dos oceanos, as
fontes, as origens, dos artigos necessários ao consumo da nobreza e da alta
burguesia, as famosas especiarias, a fim de deixarem, desse modo, de estar
dependentes dos mercados venezianos e de outros, que os compravam ao oriente e
os vendiam na Europa a preços exorbitantes. Além disso, iam alargando o mercado
para os nossos próprios produtos.
- E dilatar a fé… acrescenta Henrique.
- A fé? Por detrás dela há sempre
razões económicas e financeiras, não te esqueças. O infante Dom Henrique, Dom
João II, Dom Manuel I, tentaram conciliar ambas. Por outro lado, os mandões da
igreja católica eram quase todos nobres, filhos do rei ou do duque, enfim,
poderosos. Não te lembras que depois da morte de D. Sebastião foram buscar o
cardeal para ser rei?!
- É verdade. Havia uma grande ligação
entre a Igreja e o Estado. A 1.ª República acabou com essa promiscuidade, mas
Salazar voltou a pôr tudo como dantes.
- Amigo Rique: quando os portugueses
chegaram a África, à Ásia, à América, a todo o lado, essas regiões já estavam
habitadas, salvo as ilhas de Cabo Verde que, devido às suas condições
climatéricas e à sua pequena dimensão, não atraíam quem quer que fosse para aí
viver: ninguém as cobiçava.
E empolgado prossegue:
Em
quase todas as regiões contactadas pelos portugueses havia um mínimo de
organização: tinham um Estado, embora rudimentar e tribal (como esquecer Gungunhana, imperador dos vátuas? Os portugueses obrigaram
o desgraçado a colocar-se de joelhos e depois trouxeram-no para Portugal, tendo
morrido, já no século XX, nos Açores), formavam, ou constituíam, uma nação.
É certo que muitos se guerreavam entre si, alimentavam ódios milenários, mas o
que se vê hoje no mundo dito civilizado?
Henrique estava arrebatado com a conversa.
Como repto, lançou a pergunta:
- Pensa que esses povos se
identificaram com os portugueses?
Cândido parece ter ficado
desarmado perante aquela pergunta. No entanto, e senhor de um pensamento consistente,
respondeu:
- O que me perguntas é pertinente, mas
quanto a mim esses povos aceitaram bem os lusos como comerciantes e não como
dominadores. Resistiram quando os nossos quiseram ir além do que permitia a
hospitalidade. Meu caro amigo: lê, se ainda não o fizeste, o maravilhoso livro
de Fernão Mendes Pinto, com o título «Peregrinação».
Nele se descreve, com certa minúcia, o deambular dos nossos antepassados por
terras da Ásia, e como eles foram vistos por essas gentes de costumes e
mentalidades tão diferentes dos nossos.
Henrique respirou fundo. O tema da
conversa interessava-o imenso. Na escola não aprendera assim a História. Mas
quem teria razão?! Faz um reparo:
- Quanto a Fernão Mendes Pinto já li
alguns excertos do livro e na escola disseram-me que metade do que escreveu é
mentira. No entanto, vou tentar ler a obra completa e depois já falaremos dela.
- Nem tudo que ele escreveu,
corresponderá à verdade; contudo, ele participou em muitas aventuras, percorreu
muitas terras, conviveu com gente de outras latitudes e com culturas e
religiões diferentes da sua. Mas, com toda esta conversa, ia-me esquecendo de
te contar o que de facto aconteceu aquando do meu embarque para a Guiné-Bissau.
- Conte, conte por favor.
- Foi assim: antes do embarque, que
ocorreu mais ou menos ao meio-dia, houve um grande desfile e depois disso
ouviu-se um longo e fastidioso discurso, proferido por um oficial de alta
patente. Duvido que os familiares dos soldados, ou os próprios, prestassem
atenção àquilo (eu nem sequer sei de que ele
falava); o que ouviam (e eu ouvi)
era o bater forte de corações despedaçados; as lágrimas caindo estrepitosamente
no chão; os gritos de mães, esposas, irmãos. O distinto militar não discursava
para ninguém – representava o apagado papel de pobre declamador sem público!
As senhoritas do Movimento Nacional Feminino por lá andavam, como
abutres agoirando, pressagiando a desgraça, distribuindo sorrisos cínicos e de
circunstância e alguns maços de tabaco aos meus parceiros de armas, cujo vício
já carregavam, infelizmente, desde adolescentes!
Uma banda militar tocou o hino nacional: «heróis do mar…», e o barco a afastar-se, a afastar-se… Nossos
olhos, embaciados pelas lágrimas, procuravam sofregamente os rostos queridos
dos familiares e amigos, das namoradas… Nunca mais voltaríamos a vê-los, pensávamos!
Henrique estava profundamente emocionado.
O que ouvia não era uma pequena história romanceada. Aquilo acontecera! Ao seu
amigo e aos outros, a milhares de jovens portugueses. Após um prolongado
silêncio, por fim reagiu:
- O que importa é que o Cândido voltou,
e com saúde.
- Com saúde… nem por isso! Fiquei sem
alguns dentes, com problemas de estômago, com… Enfim! Não vale a pena falar
disso. Vou-te ler um soneto que escrevi recentemente sobre a partida, a que dei
o título A Caminho da Guerra.
Naquele triste vinte de Janeiro,
Com correntes fortes, amordaçado,
Cabisbaixo, o peito destroçado,
Parte sofrendo o fraco guerrilheiro.
Manhã fria, manhã de nevoeiro,
Desenha a silhueta do soldado:
Estatura média, adelgaçado,
Um andar pacato, olhar ordeiro.
Sobe, a chorar, os degraus do paquete,
Do bolso das calças um branco lenço
Agita num gesto de despedida;
Com a mão esquerda brande o barrete.
Depois, já no navio, perde o senso…
E cai sobre a intermitente vida!
*
10.º Capítulo
A VIAGEM
A parte da narrativa relacionada
com a guerra vai agora começar. Viajantes forçados, transportados como animais
de carga, ações de empresas falidas, ei-los a caminho das matas africanas.
Cândido, como sempre, usando um discurso didático, esclarece:
- Meu caríssimo amigo: quem nunca viajou
de barco há de pensar certamente que é um prazer. Isso acontece somente quando
se viaja em paquetes de luxo, com todas as comodidades, poucos passageiros e
muitos serviçais, em águas calmas, com constantes idas a terra. Mas viajar em um
navio para quinhentas pessoas, e lá dentro serem transportadas quase duas mil,
sem quaisquer confortos…
- Estou a ver… E quanto tempo durou a
viagem?
- Cerca de seis dias, e seis noites:
uma vida! Seis dias de tortura: má disposição, enjoos, vómitos. Ao sairmos a
barra, e mal penetramos no Atlântico, este, talvez por não gostar da nossa
intromissão – ou relembrando épocas passadas – quis aniquilar-nos, provar que
era o mais forte. Atirou com raiva incontida o navio ao ar e bateu-lhe rijo com
ondas de muitos metros de altura!
- Assustou-se…
- Eu, que pela primeira vez navegava,
não tendo em conta aquelas passagens na batela no rio Minho, poucos metros de
largura e com águas calmíssimas, senti um horrendo calafrio: afinal o meu fim –
pensei – estava mais próximo do que
previra. Seria o mar, o imenso mar, e não a terra, o meu leito de morte! Uma
sepultura marítima, como os marinheiros de outros tempos tiveram. E lembrei-me
então de Ulisses, seus homens a serem engolidos pelas profundas águas, pelos
deuses em fúria: «Enquanto olhávamos para
Caríbdes com receio da morte, Cila arrebatou-me da nau côncava seis
companheiros, os melhores de braços e os mais valentes. Ao volver os olhos para
a nau ligeira – e para os meus companheiros – só então percebi os pés e os
braços dos que tinham sido arrebatados…»
Henrique, tudo ouvia, fascinado,
mas comovidíssimo. «Como era possível, tudo aquilo, ter acontecido? As pessoas
não são gado», pensava. Arriscou uma pergunta, cuja resposta já fora dada, mas
que lhe escapara devido a uma pequena desatenção:
- E o navio, quantas pessoas levava?
- Meu caro amigo, o Uíge fora
construído para transportar cerca de quinhentas almas, como mais atrás te disse;
como o governo precisava urgentemente de colocar soldados em África, naquela
viagem o barco transportava cerca de duas mil criaturas! Vidas flutuando ao
sabor das ondas e do destino.
- Aposto que não iam lá dentro oficiais
de alta patente…
- Acertaste em cheio. O oficial mais
graduado a bordo era capitão. Os oficiais com patente superior eram transportados
por via aérea: mais cómodo, muito mais segurança, mais rápido. Não queriam
correr riscos, nem misturar-se com a ralé. Lusos, todos; mas uns mais do que
outros! Como estava longe o tempo em que os generais acompanhavam as suas
tropas: Júlio César, Aníbal, Carlos Magno, Napoleão… Nos tempos hodiernos
refugiam-se em gabinetes atapetados e daí, através de sistemas modernos e
sofisticados, complexos, computadores, transmitem as suas ordens, inventam as
suas estratégias: puros jogos de guerra moderna!
- Não teme que esses comentários, esse
seu modo de pensar, o comprometam? Nunca se sabe o dia de amanhã.
- Não estamos nós num país livre? A
ditadura já acabou e espero que em minha vida a não volte a sentir. Sabes, Henrique,
que é quase impossível indivíduos com as minhas caraterísticas sobreviverem num
regime ditatorial – simplesmente sufocamos.
- Calculo. Eu apenas lhe senti o efeito
pela rama. De qualquer modo tenha cuidado. Comigo está à vontade, pode confiar
cegamente, mas nem todos são seus amigos como eu – há muita maldade no mundo.
- A quem o dizes. Eu sou prudente,
embora por vezes me exceda nas minhas apreciações; mas não posso com injustiças…
- Sugiro-lhe que continue a sua
narrativa, embora goste de ouvir as suas divagações.
- Faço-te a vontade. Escuta, então: nos
dois primeiros dias da viagem não consegui ingerir qualquer espécie de alimento
– o meu delicado estômago não permitia; depois, lentamente, fui-me adaptando ao
baloiçar ininterrupto, pendular, da embarcação. Outros camaradas não o
conseguiram. Logo que chegámos perto de Bissau tiveram de ser conduzidos para o
hospital militar (infelizmente não havia
outro em todo o território, dando-nos de imediato a ideia do que era a
província, ou colónia, da Guiné, com o que poderíamos futuramente contar).
- E durante o trajeto passou-se algo de
importante, um episódio que mereça destaque?
- Talvez! A bordo ia um mercenário,
isto é, um soldado voluntário que já tinha feito campanhas em Angola e
Moçambique! Comparado connosco parecia um ancião, devia ter à volta de trinta
anos de idade. Penso que ele iria mais pela aventura do que pelo dinheiro,
visto que o exército português pagava muito mal aos seus soldados.
- A não ser que se tratasse de uma
exceção ou de um agente da PIDE!
Olhando para a cara do amigo, incrédulo,
diz-lhe: Admira-se? Olhe que é uma conclusão plausível; segundo me
disseram, eles infiltravam-se em todo o lado, nada lhes escapando.
- É possível; mas ele contou-nos que
tivera um grande desgosto de amor; a namorada trocou-o por um emigrante e foi
com ele para França. Desejava a morte, pois a sua vida era um autêntico
calvário, e por isso procurava-a nas matas africanas. Como não pertencia à
minha Companhia só nos encontrámos no mato uma única vez e devido ao seu
comportamento, pouco consentâneo com o momento que se estava a viver, logo
fiquei com a impressão de que não regulava bem da cabeça.
- Mas o que é que ele fez para o
impressionar assim tanto?!
- Bem! Andava alegre, descontraído,
cantava, queria que fôssemos com ele à caça, afastando-nos do acampamento,
correndo riscos inúteis, até parecia que se encontrava nas serras do continente!
- Devia estar mesmo doido. A cachopa
deixou-o de rastos!
- Estava, de certeza! Vou-te contar
outro episódio interessante: no navio, e pertencendo à minha Companhia,
encontrava-se um fadista já com alguma fama, natural do Porto, chamado Luís
Rocha. Logo arranjaram uma guitarra e ele cantou uns fados. Cantava bem, mas
parece que após o regresso se tornou alcoólico, ou qualquer coisa do género,
devido a um tremendo desgosto de amor. Como simpatizou comigo, contou-me que
namorara uma cantora, também no início de carreira, e que agora é famosa, mas
quando ele foi para a Guiné já ela tinha outro. Não suportou a rejeição, é o
diabo! As mulheres são volúveis e os homens sofrem as consequências.
- Nem todas serão, mas eu acerca disso
não me posso pronunciar, tenho pouca experiência, e a que possuo ainda não dá
para tecer grandes considerações sobre tão melindroso assunto. Uma coisa é
certa: ninguém deve casar com uma pessoa de quem não gosta.
- Tens razão. Eu ainda continuo
solteiro, mas já namorei com algumas raparigas. Não é fácil entendermo-nos.
- Desembarcaram no porto de Bissau?
- Não, não desembarcámos aí, mas sim
muito longe. Quem nos dera que isso tivesse acontecido. Lanchas da marinha,
semelhantes a ferry-boat, esperavam a Companhia. Descemos do Uíge para as
lanchas e depois seguimos rumo a Bolama, antiga capital da Guiné. Pelo caminho
os marinheiros ofereceram-nos pão de trigo e centeio (casqueiro) com chouriço e um pouco de vinho tinto, que saboreamos
com um certo prazer.
11.º Capítulo
BOLAMA
Desta vez o reencontro entre os
dois amigos demorou mais do que o previsto. O trabalho e os estudos não permitiam
grandes folgas. Henrique, contudo, estava ansioso por ouvir o relato daquela
aventura que foi a guerra colonial. Logo que lhes foi possível encontraram-se.
Ainda Cândido não aquecera o lugar, já o amigo lhe perguntava:
- Como se sentiu ao pisar terras
africanas? Teve receio?
- Nessa ilha, de uma beleza
paradisíaca, não havia quaisquer confrontos armados. No entanto, já aí se
respirava uma atmosfera de guerra. Barcos chegavam e partiam com contingentes
para o “mato”, para o barulho, como
na altura se dizia. Os rostos desses jovens, mas já experientes beligerantes,
denunciavam fadiga; porém nos seus olhos, apesar de tudo, ainda se vislumbrava
uma chama de esperança. Lembro-me de ter perguntado a um marinheiro, com aspeto
de patriarca – grisalho, longas patilhas, bigode farfalhudo e pera pontiaguda –
se a guerra iria ou não durar muito. Sorriu, com aquele sorriso de quem sabe muito
da vida e dos homens, e sentenciou em tom solene: «Talvez os teus filhos e netos, se os vieres a ter, cá venham batê-las!»
Na sua rudeza, o marujo experimentado, cheio de tarimba, falava como um
oráculo! Este tipo de conflito, mais tarde eu pude verificar isso mesmo, não
tem um tempo determinado para a sua duração: aguenta até a causa que lhe deu
origem desaparecer. São deveras complexas estas lutas de libertação. Os grupos,
ou o grupo, que combatem são geralmente apoiados por este ou aquele país, por
este ou por aquele movimento internacional, pela própria população. Aparecem
armas, surgem apoios em alimentos, fardas, instrução. Os generais afetos ao
poder pensam que determinada zona está controlada; pode estar, mas logo surge
outra zona, não muito longe daquela, com problemas insolúveis. E assim sucessivamente.
Henrique, desejando intervir,
pergunta:
- Pensa que era possível não haver mais
guerras?!
- Possível, sim; e desejável também.
Mas não é provável que isso venha a acontecer em breve, embora correspondesse
ao anseio da maioria esmagadora da humanidade. Quanto a mim, todas as guerras
são alimentadas por homens com cérebros bélicos, e enquanto estes existirem
elas existirão também.
Era uma resposta razoável, mas
insuficiente, pensou o rapaz. Por isso, perguntou-lhe:
- Como se definiria ideologicamente?
- Referes-te ao tempo presente, é
óbvio. Bem, eu considero-me eclético, isto é, aproveito tudo que de bom têm os
outros, rejeitando, se puder, tudo aquilo que acho errado. Exemplificando: já
me pediram para me inscrever em um partido político. Eu perguntei-lhes: «Concordam com a existência de Forças Armadas
nos países?» A resposta, já eu a sabia de antemão:
«Sim, concordamos.» «Então
– disse-lhes – não posso filiar-me no vosso Partido.» Ficaram irritados comigo: «Mas isso é uma utopia, onde se viu um país
sem Forças Armadas, sem defesa, à mercê de qualquer bando que aparecesse por aí…»
- Ficou sem argumentos… - disse o amigo, convencido, também ele, de
que tudo não passava de um devaneio.
- Pelo contrário. Respondi-lhes: «está provado que as guerras são prejudiciais
à humanidade; só meia dúzia de capitalistas e generais sem escrúpulos ganha com
elas; se elas acabarem é um bem e não um mal.»
- Radicalismo puro. Acha o meu amigo que
no caso de se extinguirem as Forças Armadas terminam as guerras?!
- Exatamente. Então não tens reparado
que são sempre os militares e os donos das fábricas de armamento a pressionar
os políticos para estes declararem os conflitos armados?
- Hitler, Mussolini… - recordou Henrique.
- Esses monstros, embora civis, tinham
espírito militarista. Não te apercebeste por acaso que usavam sempre farda? E
não eram quaisquer fardas – feitas de ótimo tecido e à medida dos seus
deformados corpos. E julgas que os grandes industriais de armamento não estavam
por detrás disso tudo?
- Salazar nunca vestiu uma farda, penso
eu, e no entanto provocou a chamada guerra colonial! - ripostou o moço, na ânsia de alimentar a fogueira da polémica.
- Historicamente talvez não seja
correta essa afirmação. A guerra foi-lhe imposta. Entrou nela, mas algo contrafeito.
Foi obrigado a isso. Nunca se sentiu bem nesse papel. Se ele gostasse dessas
coisas, teria entrado na Segunda Grande Guerra. Por outro lado, não queria
cometer os mesmos erros que cometeram os republicanos na 1.ª República. Era um
ditador, mas dentro de casa; não um guerreiro, no campo de batalha. As Forças
Armadas no seu regime nunca brilharam; bem pelo contrário, muitas vezes foram
por ele enxovalhadas! O único militar que respeitou, de certo modo, foi o
marechal Carmona. Por gratidão. Devia-lhe favores. Não sabes por acaso que o
almirante Américo Tomás foi um joguete nas suas mãos? E que o general Craveiro
Lopes lhe virou as costas, já farto de obedecer, não comungando provavelmente
os seus ideais? O grande erro de Salazar, quanto a mim, foi não se ter sentado
à mesa a fim de conversar com os políticos africanos: Agostinho Neto, etc.
Ter-se-ia evitado a luta armada.
Henrique estava a ficar cansado de tanta
verborreia. «Que diabo: isto não
fazia parte da narrativa» – pensava
ele. // Cândido, ótimo observador,
notou o aborrecimento do amigo e diz:
- Com toda essa conversa da treta ia-me
esquecendo do essencial. Desculpa. Quanto ao marinheiro… Depois de ele falar eu
fiquei pensativo. Para quê ripostar se tinha ficado esclarecido? Teria,
doravante, de arranjar calo, um pouco de coragem e paciência para suportar os
tempos árduos que se avizinhavam.
Os nossos camuflados verdes, do pouco uso, contrastavam com os
amarelados, gastos, da tropa “velha”;
a nossa pele, alva, parecia pertencer a bonecos de neve, comparada com a pele
escura, queimada, dos que se encontravam em África havia já algum tempo. Ao
contrário do que seria de esperar, os veteranos não riam do nosso aspeto, não
riam dos maçaricos (assim chamados por a
farda ainda manter a cor da pequena ave de nome maçarico verde); eles sabiam
o que nos esperava e isso não podia de modo algum inspirar motivo para
regozijo. Por outro lado, nós íamos substituir alguns deles, que assim poderiam
regressar à sua amada terra, ao seu querido lar, abraçar filhos que
possivelmente ainda não conheciam e esposas que deixaram banhadas em lágrimas!
Nessa pequeníssima cidade, Bolama, quase terra de brancos nessa altura,
havia um hotel, não sei de quantas estrelas. Nunca lá entrei. Por fora tinha
bom aspeto. Enquanto houve guerra colonial esteve ao serviço das nossas Forças Armadas
– era um pequeno quartel-general. Ali na zona estivemos algum tempo a exercitar
o nosso instinto guerreador. Durante esse tempo, e a partir desse ponto,
levámos a cabo algumas ações, com Companhias de Caçadores já bastante castigadas
pela guerra. Iniciava-se, dessa maneira, a nossa odisseia e o nosso batismo de
fogo.
Mas, para desanuviar um pouco o
ambiente de guerra, vou-te contar um episódio engraçado no qual eu fui o
principal ator. Certo dia o cozinheiro adoeceu e o seu ajudante ainda não
chegara da metrópole – chegaria precisamente no dia seguinte. O comandante
mandou reunir a Companhia e expôs o assunto: «hoje não temos jantar, o cozinheiro está de cama; se houver aí alguém
que saiba cozinhar que o diga – não é preciso grande requinte, umas batatas com
atum já serve.»
Todos ficaram calados. Eu, contudo, não podia ficar indiferente àquele
silêncio. Lembrando-me que já cozinhara algumas vezes, mas para pouquíssimas
pessoas, levantei a mão e disse: «eu faço
o jantar.» Suponho que até bateram palmas! O pior foi depois. Quantos
quilos de batatas eu iria colocar na panela? E a água – que quantidade? E o
sal? Quanto ao atum era fácil, se fossem latas pequenas, uma por cabeça, mas se
fossem grandes? Entrei em pânico.
Bem:
pôs-se a panela gigante ao lume, quase cheia de água, descascaram-se as batatas
e puseram-se a ferver. Às tantas a água já deitava por fora, num borbulhar
infernal. Para mexer aquilo, com a enorme colher de pau, era necessária a força
de um gigante. Deitei alguma água fora e fui buscar o sal. Aqui é que o
desastre se completou. Atirei-lhe com uns punhados lá para dentro, à sorte, ao
calha, ultrapassaria o quilograma!
Quando as batatas já estavam cozidas, chamei o pessoal e comecei a
distribui-las. Um ajudante improvisado misturava o atum. Logo que começaram a
comer desatam aos gritos: «isto é
intragável, está salgado que nem uma pilha…»
O tenente chegou esbaforido e
disse: «Acalmem-se – comam apenas o atum
com pão. Um dia não são dias.»
As coisas serenaram, alguns até compreenderam a situação, mas a vergonha
foi muita.
Henrique, que já estava calado havia algum
tempo, riu-se com gosto, e depois interroga:
- E quanto ao clima? Dizem que era
terrível!
- O clima da ex-colónia não podia ser
pior. O ar, quente e húmido; as melgas existiam em tanta quantidade que se
tornava inútil e frustrante combatê-las! Graças aos leves e transparentes
mosquiteiros podíamos dormir umas horas, porque dormir durante esse período era
de facto um verdadeiro privilégio, um luxo. Já sei que me vais perguntar: “os negros também eram atacados pelas
temíveis melgas?” Respondo-te desde já: não, não eram, por mais incrível
que isso pareça!
- E há alguma explicação para que tal
facto acontecesse?! – pergunta o jovem,
algo incrédulo, convencido talvez de que o amigo já confundia a realidade com a
fábula.
- Ao princípio, embora esse “milagre” me tivesse chamado a atenção,
não o entendia. Pensava que existiria uma espécie de pacto de boa vizinhança
entre eles, ou então estávamos perante uma trégua, mais ou menos prolongada,
depois de uma luta de séculos!
- Mas não era nada disso, suponho eu!
- Pudera! Mais tarde, bem mais tarde,
soube tratar-se de um fenómeno natural. Os africanos negros possuem umas glândulas
que exalam um odor especial, cheiro esse que consegue afastar da sua beira
esses horripilantes bichinhos!
Henrique estava maravilhado com essas
explicações. Exterioriza:
- A natureza é, sem um grão de dúvida,
quase perfeita!
- Vê lá tu: tão desprotegidos em termos
de habitação e de vestuário, de assistência médica, os indígenas não teriam
certamente quaisquer possibilidades de resistir àqueles “vampiros” ousados e nojentos. Mas além desse cheiro caraterístico,
eles ainda se servem do fumo e do fogo para afastar potenciais perigos de feras
e de outros inimigos naturais. A fogueira (espécie
de fogo sagrado) acompanha-os praticamente toda a vida. Têm isso em comum
com os povos primitivos e com os ciganos nómadas.
- Estiveram muito tempo em Bolama?
- Um mês, talvez mês e meio; já não me recordo
exatamente. Daí, e após peripécias várias, entre elas a operação que levou ao
hospital dezenas de camaradas...
- O que aconteceu? Foram atacados?
- Sim, mas pelas abelhas. Eu conto-te a
impertinência das grandes produtoras de cera e mel, cujas armas, os ferrões,
são tão temíveis como uma metralhadora: saímos de Bolama, ainda o sol não
nascera, atravessando um pantanal imenso, e, afoitos, embrenhámo-nos na mata
chamada de São João; às tantas, quase num golpe de magia, aparecem-nos milhares
e milhares de abelhas, um enxame inteiro, sedentas de vingança, com o seu
subtil ferrão em riste! Desordenadamente, fugimos, largámos as armas e munições,
gritámos e até houve quem chorasse como autênticas crianças abandonadas. Os
nossos camaradas radiotelegrafistas chamaram os helicópteros logo que isso lhes
foi possível, e os mais atingidos foram evacuados para o hospital militar de
Bissau.
- Dramático! – comenta Henrique.
- Não há, nem poderá jamais haver
palavras que consigam descrever esta louca situação. Uma coisa é combater
contra seres humanos armados, embora escondidos e conhecedores do terreno;
outra coisa bem diferente é lutar contra ousados animais minúsculos, e
aparentemente inofensivos, que apenas tentam defender desesperadamente as suas
colmeias. Para nós, confesso, foi assaz humilhante. Até houve depois quem
dissesse que tinha sido manobra do inimigo!
- O Cândido acredita nessa balela?
- Não acredito em tal: abelhas
adestradas? A não ser que elas fossem nacionalistas, estivessem ao serviço da
guerrilha!
- Nunca se sabe! – riu-se com vontade o rapaz.
- Brinca, brinca; mas nós, desgraçados,
é que sofremos na pele esse ataque. Nem a mascote nos valeu!
- O que era a vossa mascote? Um macaco?
A resposta ficou no ar, pois o
tempo escoou-se. Ambos se levantaram da mesa do Café e despediram-se amigavelmente.
// continua...
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