ENTRE MORTOS E FERIDOS
(Dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
Por Joaquim A. Rocha
// continuação de 24/11/2022
4.º Capítulo
TREM-AUTO
Os dois amigos, numa conversa
amena, intercalada com olhares furtivos às moças que circulavam no passeio,
umas elegantes e outras menos, ainda não estávamos no tempo da obesidade,
bebendo umas “imperiais”, comendo uns amendoins ou tremoços, lá iam, paulatinamente,
queimando as etapas da narrativa. Ouçamo-los:
- O quartel de Lisboa, chamado Trem Auto, para onde me recambiaram de
Infantaria 6, estava instalado na Avenida de Berna, onde hoje existe, salvo
erro, uma Universidade. Nele faríamos o estágio durante algum tempo. Depois…
logo se veria! Não sei se por nos considerarem prontos ou profissionais (no bolso, novinha em folha, já repousava a
carta de condução), se por qualquer um outro motivo, o tratamento para com os
novíssimos condutores passou a ser bem diferente – para melhor. Nem queria
acreditar.
- Os lisboetas sabem receber bem – aproveitou a deixa Henrique, um alfacinha de
gema.
- É verdade. E tinham obrigação disso,
pois estávamos na capital do país. Mas escuta: eles tinham à nossa espera as
novas viaturas, as famosas «Berliets», carrões enormes (lá
dentro sentia-me uma formiguinha, um dos anões da Branca de Neve), a fim de nós as
experimentarmos. Providas de seis velocidades, bons amortecedores, arranque
perfeito, silenciosas… uma maravilha!
- Bastante sofisticadas para a época – observou o jovem, com alguma admiração.
- Efetivamente. Eu estava espantado com
tamanho avanço da tecnologia. Era mais fácil conduzir um carrão daqueles do que
uma viatura ligeira.
- E deixaram os exercícios físicos e
prática de tiro?
- Não completamente; continuamos, mas
menos tempo. Tiro, praticávamo-lo num descampado, no local onde agora se
encontra o Palácio da Justiça, na Rua Marquês de Fronteira, e também na Carregueira.
Em termos teóricos, caso fôssemos mobilizados, nós não iríamos para a guerra
como atiradores, mas sim como condutores auto; logo, as armas de fogo pouco
seriam utilizadas por estes especialistas, julgava a gente. No entanto… Mais
tarde dir-te-ei o que se passou na realidade.
Pelas manobras encetadas, pelo
cochichar da caserna, tudo nos levava a crer que o objetivo principal das
chefias militares era preparar-nos para a maldita guerra colonial. Aliás, em
Lisboa tomavam-se todas as decisões, por isso já estava tudo decidido a nosso
respeito.
- Do Trem Auto não tem grandes críticas
a fazer, pelos vistos.
- Bem, apesar de estar num quartel,
receber ordens, comer mal, embora melhor do que no Porto, não me posso queixar
muito. Uma boa notícia foi terem-nos aumentado o pré: passamos a ganhar 30$00
por mês, um escudo por dia! Andávamos nos carros de um lado para o outro,
conduzíamos «Berliets», Jipes, «Unimogs», etc. (quem mais conduzia era o monitor, um
verdadeiro apaixonado pela condução); corríamos a cidade de uma ponta à
outra; parávamos, antes de regressar ao pequeno quartel, para bebermos uma
cervejinha. Fazíamos uns serviços: guardas, faxinas, o normal, já estávamos habituados
a isso tudo.
- Rica vida! – ironizou Henrique.
- Não se pode dizer que fosse uma vida
insuportável. Por outro lado, como tinha irmãos em Lisboa e na Amadora, de vez,
em quando, visitava-os e lá comia e dormia. Mas vou contar-te uma historieta
que aconteceu comigo:
Certo dia, depois do jantar,
talvez fossem umas sete horas da tarde, no verão, como sabes, ainda é dia alto,
saindo como de costume com um camarada transmontano, o “Vila Real”, fomos abordados por duas estrangeiras, ainda novas, altas,
bonitas, elegantes, olhos azuis e cabelos loiros, ali para os lados do Parque
Eduardo VII. Pelo seu aspeto e sotaque pareciam nórdicas: suecas ou
norueguesas. Uma delas, toda-sorrisos, pergunta-nos qualquer coisa em inglês.
Com gestos teatrais, de duvidosa mímica, dei-lhe a entender que não sabíamos
falar essa língua. A outra, com um à-vontade surpreendente, insiste: «hablan espanhol?!» Armado em poliglota, respondo:
«Si, um poco.»
Eu lembrei-me das galegas, quando
atravessava o rio Minho para ir falar com elas, mas o galego e o espanhol (castelhano) são
diferentes, agora é que eu compreendia o que me tinham dito das línguas que se
falavam na Espanha: do catalão, do basco... De qualquer modo, a gente havia de se
entender. Então ela informa-nos que estavam no Hotel Ritz e que andavam por ali
a passear, a fim de conhecerem melhor Lisboa… e os muchachos lusos! Continua,
insinuando: «los chicos portugueses, nos agradam mucho!»)
O meu colega, impaciente, sugere:
«despacha as gajas, ou então vamos com
elas para o Hotel.» Encontrava-me em um dilema: tinha a perceção que elas
queriam mais do que conversar, andavam certamente à procura de novas e
empolgantes aventuras, mas eu, coitado de mim, não possuía nenhuma experiência
neste tipo de coisas, tímido e moralista, já me estava a apetecer fugir…
- Fugir?! – pergunta Henrique, horrorizado.
- Sim! Isso já me acontecera numa das
freguesias do meu concelho, teria eu uns dezoito anos de idade. A um domingo de
tarde, numa daquelas festas de aldeia, eu e um amigo, o Tónio, é agora
emigrante na França, “arranjamos”
duas moças bonitinhas, lavradeiras, e começamos a passear à volta da igreja,
como era hábito, pois o resto do espaço para a dita festa estava normalmente
ocupado pelos tendeiros, taberneiros, doceiras, etc. Eu e a cachopa separamo-nos
do outro casal e às tantas não tínhamos absolutamente nada para dizer um ao
outro. Beijá-la estava fora de questão, pois nesse tempo nem um olhar atrevido
seria permitido, quanto mais um beijo. Ela ainda me disse que tinha comido três
malgas de caldo ao almoço, com toucinho e broa, comia bem porque trabalhava muito,
levantava-se cedo para tratar do gado, tinha um pequeno rebanho, cabras e
ovelhas, eram caseiros, mas também possuíam uns campitos próprios. Eu ainda lhe
falei do último filme que tinha visto, com Mário Moreno, o Cantinflas, mas ela
nunca fora ao cinema, não lhe interessava essa conversa. Nem sequer Joselito e
Marisol lhe diziam alguma coisa! De que lhe havia de falar?! Disse-lhe então
que ia fazer uma necessidade, ali a um campo, e ainda hoje espera por mim!
- Isso não se faz a uma menina – reprova Henrique, quase zangado.
- Eu queria ver-te no meu lugar. O
nervosismo era tanto, que até suava!
- E quanto às suecas?
- Bem, eu permanecia indeciso, elas
certamente notaram. De repente, por artes mágicas, surge, pertíssimo de nós, um
táxi. Para ao nosso lado e o motorista pergunta-nos: «Querem levar as estrangeiras para Monsanto?»
Respondo-lhe, meio a rir, meio a
sério, inibido: «Nem dinheiro a gente tem
para mandar cantar um cego!»
O motorista, com cara de mafioso,
já acostumado a essas coisas, acusa-nos: «Saloios!
Não veem que elas é que pagam?!»
Exige, dono do mundo e arredores,
abruptamente: «Se não querem, deixem o campo
aberto para outros.»
De facto, e só agora me
apercebia, ali perto rondavam grupos de homens que nos olhavam com um certo
descaramento – alguma coisa se passava! A rapariga que falava espanhol solicita-nos:
«Vamos embora daqui.»
Fomos somente com elas até à
entrada do Hotel; antes de entrarem pediram-nos amavelmente que esperássemos –
já voltavam. Fiquei com a sensação que iam buscar dinheiro. Ainda não tinham
desaparecido por completo da nossa vista e já eu dizia ao meu colega: «Ó Vila Real, cavemos, antes que isto dê para
o torto!» Agradou-lhe a ideia. Respondeu-me: «Vamos, é comida boa demais para os nossos dentes!»
- E foram embora! É inacreditável!
- É verdade, fomos! Avenida da
Liberdade abaixo, até ao Rossio, vendo estátuas, montras, admirando as últimas
novidades da moda, piscando o olho e sorrindo aos manequins femininos, por
sinal muito bem concebidos – pareciam autênticos! Aquilo sim: regalava os
nossos olhos, não custava dinheiro, não provocava sarilhos, não corríamos
quaisquer perigos. Os prazeres viriam a seu tempo. Quando fôssemos livres e com
algum dinheiro no bolso pensaríamos nisso. Agora era época de hibernação.
- Não me digam que não gastavam um tostão?!
- Nós não éramos turistas; esses sim,
podiam gastá-lo, ganhavam bem; ora nós, a auferir qualquer coisa como trinta
escudos por mês… Olha, gastávamo-lo no bar do quartel, a comer umas sandes e a beber
cerveja. Quase que nem sequer para isso dava! Nos primeiros quatro meses de
tropa deram-me três ou quatro escudos por mês, e sobre esse astronómico
vencimento ainda incidiam descontos!
- Miseráveis, unhas-de-fome! E em
África, pagavam bem?
- Claro que comparado com o que vencíamos
em Portugal significava um aumento enorme: de trinta escudos passamos a receber
quinhentos e cinquenta, isto é, dezoito escudos por dia! Na minha humilde
oficina tirava entre mil e oitocentos a dois mil escudos todos os meses,
qualquer coisa como sessenta escudos diários. Trabalhava muitas horas, mas com
gosto, e não corria perigo de vida…
- Não querendo ser indiscreto, que
profissão tinha na sua terra?
- Era alfaiate, trabalhava por conta
própria.
- Não me diga!
- Sim, desde os dezassete anos. O meu
patrão emigrara para França, fora à caça dos francos, e eu abri uma modesta
oficina nos baixos da casa onde morava.
- Nunca mais voltou a exercer essa
arte?
- Não. Até porque eu nunca cheguei a
ser um verdadeiro artista, apenas fui um remendão; mestres eram considerados
aqueles que sabiam preparar moldes, escolher o pano, cortar o tecido, fazer
fatos por medida. Esses, sim! Eu nunca passei de aprendiz, nunca fui além da
calça. Uma altura atrevi-me a fazer um casaco e o resultado foi catastrófico:
uma manga mais curta do que outra; os chumaços ficaram uma miséria! Nunca mais
o tentei. O que me valeu foi que o pano tinha sido barato, comprara-o na feira,
o prejuízo não se verificou elevado. Depois da disponibilidade, isto é, depois
de deixar o exército, fiquei em Lisboa, continuei a estudar à noite, e o pouco
que sabia da antiga profissão já esqueci, quase que nem um botão sei pregar!
- Também não exagere. Mas voltando à
sua vida militar. Apesar de crítico acérrimo, de só dizer mal, julgo que não
era tão ruim assim: tinha roupa de graça, calçado, comida, alojamento… Aprendeu
a dirigir um carro, conheceu terras…
- Já vejo que estás a brincar. Só pode.
Essa expressão irónica nunca te abandona, mesmo quando estás a falar de
assuntos sérios?!
- Desculpe a ironia, mas não resisto.
Tudo isto me parece ter acontecido na Idade Média, no tempo de Carlos Magno… ou
até antes, no período em que os lusitanos, comandados por Viriato, resistiam
heroicamente aos legionários de Roma.
- Se essas comparações absurdas te
divertem e te libertam a bílis, tudo bem! Também eu estou de acordo que não se
deve dramatizar o que não é passível de dramatização: o que lá vai, lá vai, e
águas passadas não movem moinhos! Deixa continuar o meu relato:
Um dia entrou, para o Trem-Auto, um jovem de etnia cigana. Ninguém sabia
de que quartel vinha. Ficamos todos com inexcedível curiosidade. Era a primeira
vez que a gente via um cigano fardado. Em tudo se assemelhava a nós, mas aquela
pele avermelhada, a pronúncia, tornava-o diferente. Uma raridade! Perguntamos a
um sargento a razão daquela presença, sabíamos que os zíngaros não cumpriam o
serviço militar, muito menos agora, que estávamos em guerra. Disse-nos que
viera voluntariamente, queria ver como era a tropa, romper com a tradição étnica.
- Aceitaram-no bem, espero.
- Certamente; ninguém ali era racista.
Nascera em Portugal, tinha nacionalidade portuguesa… Quanto a mim até tinham
obrigação de cumprir o serviço militar, por quê o privilégio?! Por outro lado,
esse tempo da tropa podiam aproveitá-lo para estudar, para adquirir
conhecimentos técnicos, enfim, tornarem-se cidadãos como os outros.
- E depois?!
- Não vais acreditar! Nessa noite ficou
aquartelado, mas de manhã, logo após o pequeno-almoço, pôs-se a andar. Com a farda
no corpo!
- Foram logo atrás dele?
- Nem penses. O assunto ficou
encerrado, por ordem superior. E ninguém falou mais nisso.
Mas há outro caso também curioso:
um filho do proprietário de uma grande companhia de transportes, que possuía
uma, ou mais agências de viagens, era nosso camarada. Como não tinha estudos, apenas
a 4.ª classe da instrução primária, e não quis emigrar, teve de vestir a farda
de soldado raso. Acontece que entrava e saía da unidade militar com a maior displicência
e facilidade! Umas vezes fardado, outras vezes à paisana. Não comia no quartel,
não fazia serviços, nada! Nós estávamos de boca aberta!
- Que tropa fandanga! Assim até dava
gosto…
- Pudera! Rico e importante, fazia o
que queria. Mas espera: ao cabo de uns dias desapareceu, tal como o gitano.
Perguntando nós o que se tinha passado, fomos informados de que já passara à
disponibilidade – cumprira dois ou três meses! Provavelmente nem um tiro dera!
- Afinal, o rigor no tempo de Salazar é
um mito!
- Isto é só aquilo a que assisti. Não
fazemos sequer ideia do que se passou na realidade. A podridão alastra em
qualquer regime; onde houver humanos há corrupção, há vítimas e privilegiados. Quem
tinha dinheiro não permitia que os filhos fossem para a guerra – íamos nós, os
pobres, a tal carne para canhão. Daqueles que morreram e ficaram mutilados quantos
eram filhos de ricos?
- Nenhum! – afirmou Henrique, perentoriamente.
- Podes ter a certeza... Até podia
haver um caso isolado, a exceção à regra, um jovem família, fascista, que se
alistara por ideologia, para defender a “pátria sagrada”, ou empurrado pela
família, militarista, mas que eu saiba não.
*
Dois meses passam depressa quando
as coisas correm mais ou menos de feição. Certo dia chamam Cândido à Secretaria e o amanuense diz-lhe
que tinha sido destacado para a Academia Militar, na Rua Gomes Freire, Lisboa, a
fim de prestar serviços de condutor. Teria de levar os cadetes para os seus
exercícios em Sintra, e arredores, bem como para outros lados; seria, quando a
escala assim o determinasse, condutor dia, isto é, nesse dia estaria ao dispor
da Academia para ir aonde fosse necessário.
***
5.º Capítulo
ACADEMIA MILITAR
O número de carros começava a
aumentar na cidade, a poluição crescia proporcionalmente, Lisboa alterava,
impavidamente, a sua fisionomia. Alguns estabelecimentos comerciais encerravam
mais cedo por causa dos assaltos, a noite começava a ser perigosa. Os dois amigos
encontram-se de novo e encetam longa conversa:
- O trabalho na Academia Militar não
matava ninguém, chegava a aborrecer-me de fazer tão pouco, e o comer não era
mau de todo.
- Seria sinal de que já se estava a
habituar ao rancho?
- Talvez não; a comida era de facto
melhor, embora não fosse boa. Os cozinheiros não eram militares.
- Sendo assim!...
- Na Academia trabalhava, como
empregado civil, o marido da minha irmã, de seu nome Rodolfo. Era rijo como um
touro bravo. Nunca vira ninguém com tanta força. Levantava um saco de cem
quilos de batata com a mesma facilidade com que eu levanto dez quilos! Viera da
província de Trás-os-Montes para Lisboa, com as mãos cheias de calos,
provocados pela enxada, cumprir o serviço militar, e por cá foi ficando depois
daquele concluído. Quando podia chamava-me e perguntava se eu queria comer
alguma coisa, visto que amiúde os seus chefes lhe pediam para ajudar na
cozinha. Raríssimas vezes aceitei – nunca fui comilão.
- Podia ter aproveitado.
- Pois podia! Dizia-me ele,
constantemente: «Dou aos outros, que não
me são nada, por que não hei de dar ao meu cunhado?!» Mas eu, não sei por quê,
não queria, não aceitava.
- Orgulho?
- Quem sabe… talvez. Há coisas que não
têm explicação, essa é uma delas. Eu julgo que era mais vergonha, embora uma
coisa e outra pudessem existir em mim. Sabes: é a personalidade de cada um de
nós. Somos todos diferentes, apesar de termos muitíssimas caraterísticas em comum.
Por outro lado, herdamos traços dos nossos antepassados – pais, avós…
- Por falar nisso, nunca me falou do
seu pai!
- É verdade, nunca te falei dele… mas
crê-me, nada há para dizer a esse respeito. Partiu, teria eu três meses de
vida. Emigrou para as Américas, segundo me contou a minha mãe. Deve ter
arranjado por lá outra mulher, rodeou-se de fedelhos, ou então morreu, mas não
de saudades certamente.
- Lamento.
- Nem sequer o conheci. A minha mãe
também pouco me falava dele. Ficou apenas uma fotografia, um pedaço de papel. O
tempo, tudo faz esquecer. Não se pode ter saudades daquilo que não se viveu, do
que não se amou.
Henrique compreendeu. Em Cândido existia
uma mágoa profunda, algo de inexplicável, uma ferida nunca fechada, talvez um
segredo. Não insistiria.
- Desviou-se do assunto! – lembrou Henrique.
- Pois desviei. Falava da Academia
Militar. Sabes que a condução em Lisboa jamais se tornou fácil para mim. Não me
sentia com competência bastante para guiar naquelas ruas movimentadas e com
aqueles polícias sinaleiros sempre a fazer sinais, pareciam autênticos robôs!
Questão de medo, de caráter: sei eu lá! Os jipes, tudo bem, mas as outras viaturas…
- Para se conduzir bem é necessário concentração.
A sua mente andava agitada. E agora já não tinha o instrutor ao lado.
- Pois não. Era eu o máximo responsável
pela condução. Certo dia, na subida da Rua Joaquim António de Aguiar, a caminho
de Sintra, com vários cadetes dentro, um a meu lado e os restantes nos bancos
de trás, o motor deixou de funcionar. Acelera, não acelera, estava a ver que
não conseguia sair dali! Os carros, na minha retaguarda, começavam a buzinar
ininterruptamente, pessoas ansiosas, olhando para os relógios de pulso, enervando-me
ainda mais, se possível. «Com os diabos!»
- resmunguei entre dentes. «Sou um autêntico
zero à esquerda a conduzir, não sei como me vou livrar desta!»
O meu Cireneu, quem me socorreu
naquela aflição, foi um dos cadetes. Pede-me, com esmerada educação e ao mesmo
tempo com autoridade: «Você está muito
nervoso, passe para o meu lado, eu guio.»
Obedeci prontamente – queria sair
dali, ultrapassar aquela ridícula situação.
- Sentia-se humilhado! – comentou, com semblante triste, Henrique.
- Eu sentia-me mais frustrado. Não
gostava que traçassem o meu destino. A tropa não era nenhuma etapa da minha
vida – estava ali contrariado. Eu até poderia um dia aprender a conduzir,
comprar um carro, mas assim não – eu não nascera para escravo, para obedecer...
- E para mandar?! – atira Henrique, como um repto.
- Nem para isso, meu amigo. A minha
filosofia de vida resume-se a muito pouco: todos somos iguais, homens e
mulheres, e devemos viver em liberdade e responsabilidade; cada um de nós dá à
sociedade o melhor de si e recebe aquilo de que necessita. Para sermos felizes
não precisamos de muito. Todos devíamos ter direito à instrução, ao
conhecimento, e depois cada um escolhe, mediante as suas potencialidades, a sua
profissão.
- Há profissões melhores do que outras…
- Aparentemente é assim. Um mineiro
pode queixar-se de levar uma vida dura, pouco saudável; mas se ele gostar dessa
atividade, só quer uma coisa – boas condições de trabalho, além de ótima
remuneração, que lhe permita viver bem, sem sobressaltos. Os pescadores, por
exemplo, arriscam a vida no mar, mas vai dizer-lhes para abandonarem essa faina!
Não querem, gostam daquilo que fazem, sentem-se livres como as aves do céu e
também úteis à sociedade. Contudo, quanto a mim, devem ser bem pagos e dar-lhes
a oportunidade de se instruírem. Um barco pode estar bem equipado, ter uma
pequena biblioteca, música, etc. E por aí, fora. Todos os mesteres são dignos
desde que as pessoas que os desempenham o sejam.
- Até certo ponto estou de acordo, mas
isso é utópico.
- A utopia só o é enquanto não se torna
realidade. Não era utópico desejar a República? Pois em 5 de Outubro de 1910
uns quantos republicanos conseguiram-no! Não penses que foi fácil, muitos
obstáculos surgiram, mas por fim a vitória surgiu radiosa.
- Não durou muito! – contrapõe Henrique.
- É verdade, não durou muito, apenas
dezasseis anos. A igreja católica, apoiada pelos monárquicos, e também alguns
pseudo-republicanos, tudo fizeram para a derrubar. Paiva Couceiro, refugiado em
Espanha, invadiu o país pelo norte, mas saiu-lhe o tiro pela culatra. No entanto,
a minha história não é essa.
- Fiquei com curiosidade: no regresso
levou a viatura para a Academia?
- Sim, com alguma facilidade. Acalmei,
os cadetes fizeram por esquecer o triste episódio, e tudo correu bem. Nunca
ouviste dizer que «para baixo todos os
santos ajudam?!»
- Ainda bem, senão seria traumático
para si.
- Ainda procurei mudar de
especialidade. Argumentei que era baixo, mal chegava aos pedais, enfim, que não
queria continuar a conduzir.
- E eles?
- Esperei pela resposta. Nunca me foi
dada!
Com altos e baixos, asneiras e proezas, alguns reveses, os dias morriam
um a um; dias que ia abatendo no meu canhenho. O tempo, no seu rolar lento e
imperturbável, começava a ganhar volume. Dez, onze meses (contava desde Janeiro), é muita hora para
um soldado que anda na tropa por obrigação, como se estivesse no presídio.
Comecei a criar ilusões e a fazer perguntas, interrogações, a mim próprio: «Ter-se-iam esquecido de mim, porventura?! já
não irei para a guerra colonial?!»
- Porém…
- Pura ilusão! Sonho infantil!
Finalmente chegara o momento da terrível notícia, aquela que nos destroça, nos
fulmina. É como subir ao cadafalso, ao patíbulo, para nos separarem a cabeça do
resto do corpo! O amanuense avisou-me de que o 1.º sargento me esperava na Secretaria.
Era um homem aparentemente simpático, mas cruel. Nem sequer rodeou a questão.
Não queria perder tempo: «Arruma a
trouxa, foste mobilizado para a província da Guiné-Bissau; tiveste pouca sorte,
seria muito melhor Angola, ou mesmo Moçambique. Paciência, alguém teria de ir
para lá.»
- Teve azar… - lamentou sinceramente
Henrique.
- Já não faltava muito para completar
um ano de serviço militar. Tive, de facto, pouca sorte. Não me podia esquecer
de que representava um simples número, e os números jogam-se, não se esquecem!
- Como reagiu?
- Perdi completamente o apetite;
esperneei de raiva. A Guiné-Bissau apavorava qualquer um: o clima, a guerra, as
doenças, feriam, matavam, dizimavam, diziam os que de lá vinham! Um camarada de
caserna, fervoroso católico, aconselhou-me a fazer uma promessa à Senhora de
Fátima e aos dois pastorinhos que morreram logo a seguir a 1917, primos da
Lúcia. «Vais ver que te protegem»,
garantiu-me.
Eu, desiludido com tudo,
descrente, digo-lhe: «Não adianta, morre
quem tem de morrer!» Ele não ficou nada convencido com a minha precipitada
resposta: «Não é bem assim – olha que
conheço muitos que se salvaram oferecendo promessas aos santos da sua devoção.»
E mencionou uma caterva de santinhos, com os seus milagres.
Eu, que não estava interessado na
conversa, rematei: «Sopraram, para as
suas bandas, ventos benfazejos; do meu lado apanhei com os tufões!»
- Ele estava a tentar somente ajudá-lo,
não devia ter sido tão severo – reprova
Henrique.
- Hoje estou arrependido, mas na
ocasião, danado como estava, não refleti o suficiente e fui antipático com o
camarada. Há momentos na nossa vida em que a ajuda, ou pseudo ajuda, dos outros
nos parece ofensiva. Eu fui mobilizado e logo para a pior frente de guerra.
- Se você não fosse iria outro…
- Isso é verdade, eles teriam de
preencher as vagas; mas logo eu, que não gostava minimamente da tropa, muito
menos da guerra. Quem a provocou que a combatesse; que fosse o Salazar e os
seus ministros, os secretários de Estado, e podiam levar com eles as suas
amantes…, a famelga completa.
- Não adianta protestar, manda quem
pode; sempre foi assim e assim continuará a ser.
- Talvez não: a inteligência e a
cultura do cidadão comum levá-lo-á a rejeitar a violência, é uma questão de
tempo. O cérebro evolui.
- Otimista! – ironiza Henrique, convencido de que as coisas não mudam do pé para a
mão. – As mudanças levam anos, ou séculos, a concretizarem-se – remata ele. //
continua...
Sem comentários:
Enviar um comentário