QUADRAS AO DEUS DARÁ
Por Joaquim A. Roccha
151
A nódoa dessa toalha
É mais limpa porventura
Do que a alva mortalha
Que jaze na sepultura.
152
Já amei dez mil mulheres,
Ainda amava muito mais,
Se não te encontrasse a ti,
Nascida dos vendavais.
153
Adeus grandes oradores,
Vosso reino pereceu;
Éreis melros, ruissenhores,
Reis do mundo, reis do céu!
154
O palrar não adianta,
As obras sim é que contam;
O cantor sem voz, espanta,
Mulas bravas não se montam.
155
Que estranho o dia de hoje,
Parece dia de inverno;
Parou no tempo, não foge,
É prelúdio do inferno.
156
Quando era uma criança
Tinha gosto em bater;
Agora, com esta pança,
Levo tareia a valer.
157
Quando eu era um menino
Gostava bem de mentir;
E quando era caçado
Desatava logo a rir.
158
Quando eu era bambino,
Tão baixinho, enfezado,
Tinha a pele prò moreno,
O narizito melado.
159
Quando eu era rapaz
Mandavam-me aos recados:
Ao vinho, ao pão, ao talho,
Em troca de rebuçados.
160
Quando eu era criança
Gostava de dizer não;
Trazia-me dissabores,
Mas também satisfação.
161
Quando eu era “petit”
Tinha o gosto da leitura;
Lia Hergé e Salgari,
Romances de aventura.
162
A rapariga de agora
Pensa que o mundo se acaba:
A vida, sonho, devora,
É um vulcão sem a lava.
163
As raparigas de hoje
Beijam, beijam, sem parar;
Só param um bocadinho
Pra seu cigarro fumar.
164
O padre da minha aldeia
Gosta muito das patrícias;
Dá-lhes hóstias de manhã,
À noite faz-lhes carícias.
165
As mocinhas hodiernas
Já beijam como quem come;
Os seus beijos duram horas,
Até se esquecem da fome.
166
Quando eu era um fedelho
Tinha em casa uma zorra,
Uma cabra no cortelho,
Por trás da porta uma porra.
167
Quando eu era catraio
Tinha por cinto uma guita;
A calça de papagaio,
Uma camisa de chita.
168
A minha casa em Melgaço
Era o orgulho da gente;
Tinha vinho e bagaço,
Um pote de água quente.
169
A minha casa em Melgaço
Era o orgulho da malta;
Tinha porcos e galinhas,
Um galo… todo peralta.
170
A minha casa em Cevide
Parecia o reino animal:
Tinha ovelhas e coelhos,
Muitos porcos, um pombal.
171
O estudante de agora
Não gosta de estudar;
Passeia livros no braço
E no fim toca a chumbar.
172
Sei que não procedi bem
Ao dizer-te o que sentia;
Agora brincas comigo,
Sou teu escravo, Maria.
173
Tens nome bíblico, mana,
Um nome antigo e lindo;
Belos olhos de cigana,
Lábios sempre sorrindo.
174
Quando eu era rapazito
Gostava de futebol;
Fiz uma bola de trapos
Com restos de um lençol.
175
Quando eu era um catraio
Tinha pinta de bombeiro;
Salvava moças em Maio
E velhinhas em Janeiro.
176
Já tive dentes perfeitos
De esmalte, de marfim.
Agora já têm defeitos:
Passou o tempo por mim.
177
Quando eu era menino
Pagavam-me para eu rir;
Tinha um riso mui alegre,
Um jeito de divertir.
178
Andei sempre, neste mundo,
A reboque de alguém;
Quando comandava o barco
Não estava lá ninguém.
179
O meu telhado é de vidro,
Pedras, não posso atirar;
Não o quero ver partido,
Ver por ele chuva entrar.
// continua...
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