sábado, 15 de outubro de 2022

QUADRAS AO DEUS DARÁ 

Por Joaquim A. Roccha




// continuação de 29/09/2022.


151

 

A nódoa dessa toalha

É mais limpa porventura

Do que a alva mortalha

Que jaze na sepultura.

 

152

 

Já amei dez mil mulheres,

Ainda amava muito mais,

Se não te encontrasse a ti,

Nascida dos vendavais.

 

153

 

Adeus grandes oradores,

Vosso reino pereceu;

Éreis melros, ruissenhores,

Reis do mundo, reis do céu!

 

154

 

O palrar não adianta,

As obras sim é que contam;

O cantor sem voz, espanta,

Mulas bravas não se montam.


155

 

Que estranho o dia de hoje,

Parece dia de inverno;

Parou no tempo, não foge,

É prelúdio do inferno.

 

156

 

Quando era uma criança

Tinha gosto em bater;

Agora, com esta pança,

Levo tareia a valer.

 

157

 

Quando eu era um menino

Gostava bem de mentir;

E quando era caçado

Desatava logo a rir.

 

158

 

Quando eu era bambino,

Tão baixinho, enfezado,

Tinha a pele prò moreno,

O narizito melado.

 

159

 

Quando eu era rapaz

Mandavam-me aos recados:

Ao vinho, ao pão, ao talho,

Em troca de rebuçados.


160

 

Quando eu era criança

Gostava de dizer não;

Trazia-me dissabores,

Mas também satisfação.

 

161



Quando eu era “petit”

Tinha o gosto da leitura;

Lia Hergé e Salgari,

Romances de aventura.

 

162

 

A rapariga de agora

Pensa que o mundo se acaba:

A vida, sonho, devora,

É um vulcão sem a lava.

 

163

 

As raparigas de hoje

Beijam, beijam, sem parar;

Só param um bocadinho

Pra seu cigarro fumar.

 

164

 

O padre da minha aldeia

Gosta muito das patrícias;

Dá-lhes hóstias de manhã,

À noite faz-lhes carícias.


165

 

As mocinhas hodiernas

Já beijam como quem come;

Os seus beijos duram horas,

Até se esquecem da fome.

 

166

 

Quando eu era um fedelho

Tinha em casa uma zorra,

Uma cabra no cortelho,

Por trás da porta uma porra.

 

167

 

Quando eu era catraio

Tinha por cinto uma guita;

A calça de papagaio,

Uma camisa de chita.

 

168

 

A minha casa em Melgaço

Era o orgulho da gente;

Tinha vinho e bagaço,

Um pote de água quente.

 

169

 

A minha casa em Melgaço

Era o orgulho da malta;

Tinha porcos e galinhas,

Um galo… todo peralta.


170

 

A minha casa em Cevide

Parecia o reino animal:

Tinha ovelhas e coelhos,

Muitos porcos, um pombal.

 

171

 

O estudante de agora

Não gosta de estudar;

Passeia livros no braço

E no fim toca a chumbar.

 

172

 

Sei que não procedi bem

Ao dizer-te o que sentia;

Agora brincas comigo,

Sou teu escravo, Maria.

 

173

 

Tens nome bíblico, mana,

Um nome antigo e lindo;

Belos olhos de cigana,

Lábios sempre sorrindo.

 

174

 

Quando eu era rapazito

Gostava de futebol;

Fiz uma bola de trapos

Com restos de um lençol.


175

 

Quando eu era um catraio

Tinha pinta de bombeiro;

Salvava moças em Maio

E velhinhas em Janeiro.

 

176

 

Já tive dentes perfeitos

De esmalte, de marfim.

Agora já têm defeitos:

Passou o tempo por mim.

 

177

 

Quando eu era menino

Pagavam-me para eu rir;

Tinha um riso mui alegre,

Um jeito de divertir.

 

178

 

Andei sempre, neste mundo,

A reboque de alguém;

Quando comandava o barco

Não estava lá ninguém.

 

179

 

O meu telhado é de vidro,

Pedras, não posso atirar;

Não o quero ver partido,

Ver por ele chuva entrar.




// continua...

Sem comentários:

Enviar um comentário