O FIM DE UM SONHO
Aurora
Germana casara nova, aos dezanove anos de idade. O seu namorado entrara há
pouco tempo na Universidade a fim de tirar o curso de jornalista. Apaixonara-se
loucamente por ele ainda não tinha completado os dezassete anos. Estudava na
escola secundária, mas não pretendia tirar curso superior. Queria um emprego de
escritório, talvez a Caixa Geral de Depósitos, uma Companhia de Seguros.
Gostaria de ser mãe de dois filhos, um casal, se possível. Um emprego sem
grandes responsabilidades permitir-lhe-ia arranjar tempo para tratar da casa,
do marido, e dos filhos. Se fosse doutora as coisas seriam diferentes. É certo
que ganharia mais, mas o dinheiro não é tudo na vida, pensava ela. O seu homem
era inteligente, seria com certeza um ótimo jornalista, não teria dificuldade
alguma em conseguir um lugar num desses grandes jornais nacionais. Era um homem
alto, bem-parecido, com um espírito alegre e folgazão, nada tímido, canté, não
tinha quaisquer dúvidas, seria um dos melhores na sua profissão. O pouco que
ela ganhasse ajudava a suportar todas as despesas. Não era uma mulher de
grandes luxos, mas gostava de andar bem vestida. Ia, de quando, em quando, ao
salão de cabeleireiro, mas esses gastos estavam cem por cento controlados. O Rodolfo,
como se chamava o seu marido, membro de uma família remediada, também não estava
habituado a despesas exageradas. O seu defeito maior era ser fumador. O tabaco
e ele eram inseparáveis. Chegava a fumar dois maços por dia! Ela dizia-lhe
constantemente:
- Amor, tu assim matas-te. Os pulmões ficam doentes e depois… E outra
coisa: os teus dentes, os mais bonitos do mundo, estão a ficar amarelos, o
esmalte está a abandoná-los. Qualquer
dia ficas com dentes de velho!
Ele não ligava a essas coisas tão
mesquinhas, tão insignificantes. Era demasiado novo para pensar em doenças,
quanto mais na morte. A vida sorria-lhe. Era casado com a mulher mais formosa
do planeta, dizia ele, tinha dois filhos lindíssimos, perfeitos, a Patrícia e o
Cândido, um trabalho bem remunerado, amigos sem conta; que mais ele desejava?
Os leitores gostavam imenso do que ele escrevia, as suas crónicas eram lidas
por milhares de pessoas. Possuía tudo de que precisava para se sentir feliz. As
crianças iam crescendo, na escola eram considerados os melhores alunos,
inteligentes e perspicazes.
A vida sorria a ambos. Ele até recebera
convites para trabalhar na rádio e na televisão. Um dia, quem sabe, talvez
aceitasse, pensava ele. Os portugueses só conheciam os seus textos. Se
aceitasse os convites, passariam a conhece-lo fisicamente e à sua voz, grave e
bem timbrada. A fama já lhe batera à porta, mas ainda não era o suficiente;
queria mais, muito mais. A sua esposa trabalhava no escritório de uma grande
empresa; o ordenado não era grande, mas chegava. Recebia catorze meses por ano,
subsídio de férias e de natal. Os colegas olhavam para ela com respeito, mas
esse olhar escondia um desejo oculto, guardado a sete chaves no cofre de
Pandora. Invejavam Rodolfo, um felizardo, famoso, bem pago, e com uma mulher
daquelas! É certo que nem todos os humanos alcançam esse patamar de felicidade.
A natureza, ou as forças divinas, ou ambas, vão distribuindo o bom e o mau por
todos os seres vivos, mas a alguns, poucos, é-lhes dado a melhor parte, a fatia
mais substancial, a sorte está quase sempre do seu lado. A inteligência, a
capacidade de trabalho, a robustez física, a beleza, a simpatia, reúnem-se
nesse ser, como se fosse filho de um deus poderoso. Outros, coitados, nascem
com cérebros pequenos, atrofiados, fisicamente tortos, com os olhos doentes à
nascença, tornando-se indesejáveis à sociedade, devido à sua deformidade.
Fazem-se promessas a santos, aguarda-se o milagre, mas este nunca chega.
A Rodolfo é comunicado que recebeu mais um
prémio de jornalismo. Para ele é importante, não o rejeita, mas é apenas mais
um. Há anos que andava no mundo jornalístico, já escrevera milhares de artigos.
Estava quase com cinquenta anos de idade. O tabaco (tal como a esposa lhe
dissera, e também vários médicos), arruinara-lhe a saúde. Dentes naturais já
eram somente meia dúzia; e esses, amarelados, queimados pelo calor do lume. A
mulher raramente o beijava, tinha nojo da sua boca. Fumava diariamente três
maços de cigarros! Os amigos pediam-lhe:
- «Larga o cigarro; deixa de
fumar, homem; assim não vais durar muito.» Ele respondia quase sempre a
mesma coisa:
- «Deixem-me em paz; o vício é meu, sou eu que o pago, e se vier a morte,
que interessa, já vivi o suficiente.»
Mais uns aninhos passaram. Estávamos no
verão de 2019. Depois de uma consulta ao seu médico de família, depois de uns
exames rigorosos, umas análises ao sangue, etc., eis que chega a notícia:
diagnosticado um cancro nos pulmões. Uma notícia há muito esperada. Ninguém se
espantou. Todos aqueles que o conheciam, colegas, amigos, família, já
calculavam que isso viria a acontecer. A próstata também estava de rastos:
grande como um tomate gigante, pesando mais de duzentos gramas. Foi internado
num dos melhores hospitais do país. Os médicos especialistas, apesar de
duvidarem da sua cura, tentaram tudo para o salvar. Foi operado pelos melhores
cirurgiões, aguentou-se durante algum tempo, por momentos recuperava a antiga
lucidez, a sua esposa visitava-o diariamente, reprovava-o com o olhar, mas as
palavras saíam da sua boca doces como o mel, meigas, um sorriso triste,
tentando conter as lágrimas, que teimavam inundar todo o espaço
circundante.
O dia chegou. Um simples telefonema
transmitiu a notícia: Rodolfo morrera. Fizera havia pouco tempo cinquenta e
três anos de idade. Aurora Germana libertou do seu já frágil corpo toda a
angústia, frustração, até ódio acumulado contra os santos e deuses que não
quiseram ouvir as suas comovidas preces. E agora? Com cinquenta anos de idade,
ainda bonita, mas cansada de tanto sofrimento, com dois filhos, o rapaz já licenciado,
casado, pai de uma menina, a rapariga com alguns problemas, devido a desgostos
de amor, enfim, um mundo de causas e efeitos que ela tentava gerir da melhor
maneira, mas para os quais não estava psicologicamente preparada. Fez-se um
funeral de primeira, o corpo do defunto foi sepultado em campa rasa, a seu
pedido, vá-se lá saber porquê, ela, no início, ia ao jardim dos mortos todos os
santos dias colocar flores na campa, iluminar aqueles dois metros quadrados,
como se ele precisasse de luz para viajar pelo espaço sideral, por esse
universo sem limites, conduzindo o seu veículo imaginário, através de uma
estrada irreal e infinda.
Tornou-se um tanto ou quanto azeda, de uma
amargura insuportável. A sua filha, já cansada de ouvir todos os dias aqueles
choros, reclamações contra todos e tudo, diz à mãe que vai viver sozinha. Quer
apenas uma mensalidade que lhe permita pagar as despesas da renda, alimentação,
etc. Logo que termine o curso vai trabalhar, ganhar o seu ordenado, a fim de
não precisar do dinheiro da progenitora. Assim aconteceu. Patrícia deixou a
casa onde vivera aqueles anos todos, o seu lindo quarto, a sua casa de banho,
com um espelho gigante, no qual diariamente admirava, tal como Narciso, o seu
belo e escultural corpo. Graças às aulas de psicologia e de filosofia, tudo
aceitava de boamente, apesar de saber que dificilmente teria aquelas
instalações luxuosas na sua futura casa. A recompensa, porém, saltava à vista:
viver sozinha, sem aturar quem quer que fosse, sobretudo a sua mãe, a resvalar
paulatinamente para o fanatismo, a raiva contra este mundo prenhe de
contradições. O seu pai suicidara-se lentamente, ao longo dos anos; o seu irmão
casara, tinha a sua vida, os seus próprios problemas; ela agora, tomando esta
difícil decisão, tornaria a sua vida mais suportável. Havia de encontrar um jovem
que gostasse dela, que a fizesse feliz, quem sabe?
Aurora Germana, agora sozinha em casa,
naquele casarão, com duas grandes salas, seis quartos de dormir, um grande
quintal e bonito jardim, deixou de ir todos os dias ao cemitério; ia apenas
duas ou três vezes por semana. Junto à campa, onde o retrato do marido defunto
sobressaía, resmungava sempre:
- «Malandro, arruinaste a tua e a minha vida; tão bem que a gente vivia,
não nos faltava nada, criamos os filhos na maior fartura e conforto. Tu
destruíste tudo, até a minha vontade de viver. Que me interessa ter aquela enorme
casa, todo o conforto do mundo, se não te tenho a ti a meu lado? Agora até a
nossa filha me deixou; não suporta a minha presença, a minha tristeza, a minha
resmunguice permanente, o meu mau humor. E tudo por tua causa, por causa do teu
maldito vício. Se pudéssemos voltar atrás eu não permitiria que tu fumasses. E
logo agora que estavas a terminar o teu segundo romance, quanto a mim melhor,
muito melhor do que o primeiro. Podias ter sido um grande escritor, ser famoso
como Eça de Queirós ou Camilo Castelo Branco; mas não, preferiste o maldito
prazer, o assassino maior desta sociedade. E depois vinha a sede, mas não
bebias água, não, eram litros de cerveja diariamente, deformando o teu belo
corpo. Tolo! Tolo é que tu és, o que foste. Rejeitaste a saúde, fugiste dela,
por causa do maldito vício. E agora? Estás aí, a ser devorado por milhões de
bichos!»
Após este discurso, retirava-se para casa,
deitava-se na cama e adormecia. Tinha sonhos terríveis: monstros assaltavam-lhe
a casa, matavam-na, cortavam-na aos pedaços, que metiam em sacos pretos e mal
cheirosos.
No natal de 2019 não há festa em sua casa. O filho tentou levá-la para a sua vivenda durante uns dias, mas ela recusou veementemente. Festejar o quê? O nascimento de um deus que não a soube proteger; de um céu que não atendeu as suas preces, tão sentidas, tão verdadeiras, tão banhadas em lágrimas. Os santos esqueceram-na; tantas esmolas em dinheiro ela deu aos padres católicos para rezarem pelo seu doente marido. Provavelmente não o fizeram, dinheiro é dinheiro, não fala! Estava a ficar descrente. As religiões proliferam por todo o planeta, os seus arautos prometem milagres, Jesus Cristo ressuscitou os mortos, transformou água em vinho, curou a vista de cegos, os povos acreditam em todas essas manifestações divinas, vão a Lurdes, a Fátima, etc., a pé, de carro, de avião, solicitam a cura dos seus doentes, queimam velas, dão dinheiro, tudo aquilo que têm, mas infelizmente nada acontece. Os padres das variadíssimas religiões, nas suas homilias, pregam a paz, a concórdia, mas sabe-se que, salvo raríssimas exceções, todas essas palavras não passam de um conjunto de sons, buscando eco na montanha rochosa, onde os catos crescem desmesuradamente. São trechos de peças de teatro, ensaiadas, preparadas com todo o rigor da arte teatral. A sua principal fonte é a bíblia, ou outros livros de cariz religioso, escritos por várias mãos ao longo de séculos. A fantasia predomina nesses textos. Alguns, muito bem elaborados, contam belas histórias, semelhantes às da mitologia grega, romana, etc. Adão e Eva, Sansão e Dalila, Jesus e Madalena, Tristão e Isolda, comovem-nos, mexem com os nossos sentimentos, tornam-nos crianças, num mundo adulto, semeado de crimes e de paixões violentas. Cervantes tinha razão quando criou a figura de Dom Quixote: um sonhador, cujos sonhos desejava transformar em realidade. Serviu-se de um idiota, Sancho Pança, para o ajudar a vencer os seus inimigos, moinhos de vento e afins. Dulcineia, uma humilde camponesa, era a sua princesa, a Julieta do Romeu. Dom Quixote ficou doido porque leu demasiados livros de cavalaria; nós, povos deste planeta chamado Terra, estamos a ficar tontos porque ouvimos demasiados sermões e palestras inflamadas, tudo oco e sem sentido. // continua…
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