A ADVERSIDADE POR MADRASTA
Por José Alfredo Cerdeira
I
Terra
agreste, salpicada de penhascos, coberta de codessos, urzes e giestas, capaz de
negar ao homem o pão que semeou e regou com o suor do seu rosto curtido por
muitos trabalhos, enregelado por muitas neves e por imensas geadas no inverno,
e ressequido no estio pelo muito calor, terra que se recusa a germinar o milho,
a alimentar a vinha, a lourejar o trigo, a vicejar a hortaliça, a produzir o
feijão. Em suma: terra inóspita é aquela que rodeia os píncaros da serra da Peneda,
onde as estações do ano se resumem a um longo e frio inverno e a um passageiro
mas quente verão. Os seus habitantes granjeiam alguns palmos de terra, entre os
pedregulhos, à míngua de terras aráveis que lhe proporcionem o sustento para si
e para os seus. As únicas culturas que ganham pé em tais paragens são a do
centeio e a da batata. Os terrenos mais pesados, nas baixas, aproveitam-nos
para os fenos, base de alimentação dos animais, durante o tempo invernoso. Em
contrapartida, tais sítios acoitam lobos, são um paraíso para os coelhos,
oferecem pouso às perdizes, acolhem as raposas. São terras fustigadas por
ventos impiedosos que, na força da invernia, bramem por montes e vales,
arrepiando o mais afoito com o seu som lúgubre. A neve cobre com o seu manto
imaculado toda a extensão que a vista abarca, coagindo os naturais a procurar o
aconchego das lareiras, obrigando os animais a permanecerem nas cortes, paredes-meias
com as habitações, no intuito de facilitar o seu tratamento, sem necessidade de
se exporem à intempérie.
«Cada
terra tem seu uso, cada roca tem seu fuso», lá reza o adágio popular.
Naturalmente, certos espíritos menos afeitos à vida campestre, aqueles que se
vangloriam de viver em zonas ditas civilizadas e desenvolvidas, não aceitarão
de boa mente, julgando mesmo inverosímil a existência de terras como aquela a
que nos referimos, mormente em pleno século vinte, o século dos computadores,
dos grandes avanços da ciência. Acham-se superiores aos seus habitantes,
olvidando, no entanto, que eles gozam de liberdade de movimentos e de
desassombro de espírito, não se confinando entre as quatro paredes dos exíguos
apartamentos, quantas vezes compartilhados, com vista a fazer face às despesas
e colmatar o escasso orçamento familiar. Tais arautos da civilização vivem
emparedados em autênticas colmeias iluminadas por janelas mal orientadas,
cozinhando em espaços que mal permitem que duas pessoas se cruzem, dormindo em
cubículos onde mal cabe uma mobília decente, gabando-se da sala de jantar com
uns exíguos quinze a vinte metros quadrados. Coitados! Sentem-se superiores a
quem optou por viver no campo. Esquecem-se, todavia, que estes têm o horizonte
como fronteira e toda a luz do sol como fonte de iluminação! Facto concreto é
que as terras acima citadas lá estão à disposição de quem as quiser visitar. E
asseguro-vos que valerá a pena a viagem, mesmo levando em linha de conta o
incómodo do itinerário. Se outros atractivos não existissem, somente o respirar
o ar puro recompensar-vos-ia da despesa e da maçada. Podem crer que paisagens
deslumbrantes não faltarão, também, a justificar a visita.
Os naturais desta terra seguem ainda os
usos e costumes de antanho, que os seus ancestrais praticavam, desprezando
hábitos modernos, apesar de lenta mas porfiadamente principiarem a ser
implantados, sobretudo entre as camadas mais jovens. Os mais idosos, na década
de cinquenta, e ainda mais na década de sessenta, emigraram para França, em
busca de salários dignos, com a mira de amealharem um pecúlio que os livrasse
da miséria, especialmente na velhice. Era vê-los, aos rebanhos, guiados por
passadores desprovidos de escrúpulos, que enriqueceram à custa da miséria
alheia, calcorreando carreiros de montanha ou encafuados dentro da caixa de uma
camioneta de carga, misturados com as parcas bagagens, aos solavancos, mal
comidos, cabeceando de sono, tiritando de frio no inverno, ou transpirando no
verão. Houve alturas em que se não vislumbrava um único homem válido, por toda
aquela corda de freguesias. Consta, até, que estando inscritos nos cadernos de
recenseamento militar cerca de quatro dezenas de mancebos, nem um só compareceu
às inspeções, por todos se encontrarem emigrados.
Para nos podermos situar no tempo, convém
ter em linha de conta que quanto se relata ocorreu nas primeiras décadas do
século vinte.
O povo desta zona ufana-se de ser
simples, trabalhador e, acima de tudo, respeitador da palavra empenhada. Nesta
terra, a palavra dada como garantia vale um testamento. Regozija-se pelas
maravilhas da natureza que o rodeia, elevando um pensamento ao Criador
agradecendo a oferta gratuita de cenários tão deslumbrantes. Não se deleita a
apreciar montes e vales por antever locais ideais para a rodagem de um filme,
por calcular serem causa da inspiração para criar um quadro, nem, tão pouco,
por julgar ser propício à iluminação do espírito de algum poeta e, muito menos,
por achar ser local magnífico para construir uma pousada de muitas estrelas,
por consequência, cara. Não sente avareza ao espraiar a vista pelos cenários
deslumbrantes que o cercam. Admira as coisas tal qual elas se apresentam e não
como elas se conseguem. Vive a seu modo, pouco o preocupando a evolução da
moda, as cotações da bolsa, as dificuldades das empresas, a carestia da vida, a
inflação galopante, tudo, enfim, quanto inquieta um citadino. Importa-se, isso
sim, com o bom ou mau tempo, com uma rês doente ou tresmalhada, com uma galinha
que põe os ovos em lugar desconhecido. Em seu entender, as almas do outro mundo
detém maior poder que todas as bombas atómicas, que todos os foguetões que
possam cruzar os oceanos, que todos os aviões supersónicos que roncam nos céus,
que todos os satélites artificiais que brilham no firmamento. Ao olhar um avião
riscar o azul do céu, crê ser um engenho feito pelo homem, se todavia lhe
disserem que naquela cruz prateada viajam dezenas, senão centenas de pessoas,
fica de pé atrás, crendo apenas se verificar por si próprio, como São Tomé.
Tive oportunidade de assistir a uma situação que demonstra o pensar
dessa gente, quando uma dessas pessoas foi obrigada a deslocar-se a Lisboa e
pediu para que a levassem ao aeroporto a fim de assistir à chegada de um avião.
Ao aterrar um aparelho, aguardou que abrissem as portas e contou até trinta o
número de pessoas que dele saíam. Dando-se por satisfeita, abandonou o local,
dizendo:
- Já posso afirmar que o avião transporta
muita gente. Eu verifiquei, pessoalmente.
Em tempos recuados, grandes soutos,
carvalhais e pinhais ganhavam pé desde o leito do rio Minho até a meia encosta
da serra. Actualmente, os soutos desapareceram quase na totalidade, os
carvalhais estão reduzidos a um punhado de árvores carcomidas pela passagem dos
anos, restando os pinhais, conquanto, ciclicamente, os fogos se encarreguem de
os consumir. Verdade seja dita, os serviços florestais empenharam-se no plantio
de grandes extensões com arvoredo diverso, que em muito hão-de contribuir para
a reflorestação de toda a região e, como se infere, para o enriquecimento da
zona, se porventura o flagelo dos fogos não acabar por destruir o trabalho do
esforço de anos, como desgraçadamente tem acontecido por esse país fora, sem
que ninguém tome medidas eficazes ou elabore legislação que desmotive certos
interesses menos confessos. Obviamente, fogos acidentais sempre existiram e
existirão. Precisam ser erradicados os atiçados por mão criminosa. Paninhos
quentes, tão em voga neste país de brandos costumes, nada resolverão como,
aliás, se tem constatado.
Será, pois, neste ambiente peculiar que se
desenrolarão os factos que seguidamente narraremos. // continua...
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