POEMAS DO VENTO
Por Joaquim A. Rocha
122
A MAL BEM-AMADA
Mote
Para fazeres chachada
Fica ali quietinho;
cabeça chalada,
corpo mesquinho.
Glosa
Pois nessa plumada,
nessa «cosa loca»,
calo minha boca,
não faço a jogada!
Se queres canção,
bonita ou feia,
inventa-a então,
se tiveres veia.
Deste-me o mote
e querias canção;
toma lá o pote,
o caldo é de grão.
Mas não te enfartes
com sopa tão forte;
não percas o norte,
se é que já partes!
123
A CIÊNCIA DOS TRAÇOS
Se o traço for curto e delgado
podes estar descansado:
é um traço bem humorado!
Se o traço for grosso e comprido
estás perdido:
é um traço mordido!
Se for um belo traço
sorri: é um abraço!
Se for apenas um ponto
dá-lhe um desconto:
marca-te encontro!
Se tiveres, vários dias, traços
- grossos, compridos, salientes,
teme: nem abraços, nem mostrar de dentes:
são traços rangentes!
Se queres saborear um traço
repara nele com atenção:
fecha os olhos e imagina-te
montado num traço sovina
com asas de gavião:
estás no mundo da ilusão!
A cor vermelha num traço
significa paixão;
não é frio como o aço,
arde como o bagaço,
e aquece o coração!
A cor verde não tem garra,
dá ao traço pouca vida;
qualquer borracha o apaga:
é a dita cor sumida!
Das outras cores nem se fala,
não são cor: são fingimento;
adere ao traço vermelho,
ergue-lhe alto monumento!
Faz-te ama do fedelho,
em teu regaço o embala;
dá-lhe a comer escaravelho,
e gordura de cavala!
Ai lindos traços, tão lindos,
todos vos amam e adoram;
os Antónios, os Arlindos…
quando vos veem até coram!
1989
(A um chefe de Serviço, de apelido Rei,
que costumava pôr traços no livro de ponto quando os seus subordinados chegavam
atrasados).
124
ORFEU ESQUECE EURÍDICE
Há dias ia pelo meu caminho e encontrei Orfeu. Ia triste,
tocando sua flauta. Perguntei-lhe: Orfeu, por que vais tão triste?
Respondeu-me: «vou triste e vou alegre!» Fiquei admirado e disse-lhe: não
compreendo; no meu mundo ou se está triste ou alegre! Ele retorquiu: «esqueces
que eu sou um deus!» Nesse caso… disse eu. «Eu posso assumir os dois estados de
alma.» Esclarece-me, solicitei-lhe. «Vou-te contar tudo: como sabes, eu amava
Eurídice e até ao inferno a fui buscar…» Isso toda a gente sabe, ó divino
Orfeu. «Porém, o mafarrico – grão senhor das zonas subterrâneas – não me deixou
trazê-la.» A culpa foi tua, Orfeu. «Sim, é possível; esqueçamos isso…
esqueçamos, porque eu esqueci Eurídice.» Não acredito! «É verdade; enamorei-me
de Lígia.» Lígia, a mulher mais bela da Terra?! «Essa, mesmo; logo que a vi
todo o meu ser vibrou – Eurídice transformou-se no próprio esquecimento! Amo
Lígia como só um deus sabe amar.» Orfeu, como podes desejar Lígia, um anjo
humano?! «Desejo-a ardentemente, estremecidamente!» Eu disse-lhe: nunca
consentirei que Lígia suba ao monte Olimpo; defendê-la-ei. «Tu, pobre mortal! O
que poderás tu fazer para evitar tal coisa?» Eu gritei-lhe: Orfeu, lembra-te de
que os deuses deixaram de dar ordens aos mortais; os homens não vos invocam
mais; o vosso lugar é lá, longe, no Olimpo sagrado. Esquece Lígia – pedi-lhe,
emocionado. «Não posso esquecê-la» - gritou Orfeu, furibundo, colérico. / Então
eu, por compaixão, disse-lhe: Vamos fazer um pacto, como outrora faziam os deuses
e os humanos. E propus: eu serei o teu Homero e cantarei os teus amores com
Lígia; e tu, deus da solidão, dar-me-ás os teus cânticos que eu, e só eu, lhe
transmitirei. / O apaixonado, pensativo, concordou… Orfeu, o deus de mão longa,
de flauta nos beiços, começou a compor… Da sua flauta maravilhosa surgiram os
mais belos cânticos e toda a natureza viva se calou para ouvi-los! E agora
Lígia, na sua varanda de cristal, escuta, enlevada, os sons pungentes!
125
BALADA DOS PINTARROXOS
Na cerejeira mais alta
existia um lindo ninho;
lá dentro, arrumadinho,
seis ovos de passarinho,
coloridos e pequenos,
repousavam docemente;
os dias estavam amenos,
a primavera findava,
e o verão já espreitava;
cantava perto a cigarra,
a formiga mourejava,
a natureza sorria…
Eis então que certo dia
os seis ovos estalaram;
seis seres deles saíram.
Os seus papás acorreram
ao seu piar filial…
Foram buscar-lhes comida,
vieram logo em seguida,
rindo, rindo, tão alegres!
Mas os rapazes sabiam
que esse ninho existia
e não o queriam perder;
esperaram pacientes
que os passarinhos nascessem
que os bichitos crescessem
para em seguida os prender!
E antes deles voarem
(tendo os pais ido caçar)
o lindo ninho roubaram!
Para casa o levaram
e na gaiola os meteram.
Os pais dos pobres petizes
quando ao ninho regressaram
e os filhos não encontraram
ficaram muito infelizes…
Procuraram, procuraram,
chamando-os pelos nomes seus
e olhando para os céus
quase como numa prece;
percorreram toda a zona,
os olhos cheios de água,
no peito uma grande mágoa,
o cérebro num turbilhão;
numa das suas batidas
ouvem os filhos piar;
aproximam-se velozes,
aflitos, roucas as vozes,
dizendo-lhes comovidos:
«meus filhos, queridos filhos,
quem vos meteu na prisão?!
Foi gente sem coração,
sem sentimentos humanos;
não ides vós í ficar,
não devereis alegrar
quem tão mal a todos fez.»
E foram, com rapidez,
colher sementes letais
e, em nobres rituais,
fúnebres danças dançaram;
os “bebés”, obedientes,
apesar de descontentes,
as sementes engoliram
e no chão duro caíram.
A bicharada expressou
a sua profunda dor,
a sua imensa tristeza…
E os miúdos, repesos,
assistindo a este fim,
juraram solenemente
nunca mais serem ruins
serem do mal combatentes.
E juntando suas mãos
prometeram com paixão
lutar pela natureza.
Os bichos, agradecidos,
sentindo-se protegidos,
pela manhã vão cantar,
juntinho à sua
janela,
a mais bonita canção,
a mais pura, mais singela,
de genuína verdade:
a canção da liberdade!
16/6/1992
126
UM OSSO DURO DE ROER
(1993)
Fui ao Algarve buscar
a cor que o sol nos dá;
mas vejam bem, tive azar,
e ia ficando por lá!
Eu conto-vos minha estória
(fácil ela é de contar);
não tem brilho, nem glória,
não faz rir, nem faz chorar!
Foi num certo restaurante
(tanto luxo, brada aos céus)
com empregados impantes,
aonde tudo aconteceu.
Estava mortinho de fome,
o que eu queria era comer.
Diz meu pai: come, come,
até a barriga encher.
Atirei-me às costeletas
(porco, boi ou javali)
para mim eram chupetas
com doce de chantilly.
Que carne tão saborosa,
nunca comera igual;
minha garganta gulosa
parecia fundo canal.
Num ápice comia a carne,
os ossos limpos ficavam;
nem os heróis de Marne
petiscos tão bons manjavam!
Mas as rosas têm espinhos,
os prazeres, limitações;
grandes perigos são os vinhos
se fora das refeições.
O acaso, ou o destino,
quis-me pregar a partida;
talvez por eu ser menino
e ter d’aprender a vida.
Mas vamos lá ao que interessa
(ou seja, ao que aconteceu);
embora não haja pressa,
pois a vítima fui eu.
Como dizia ao princípio,
a estória simples é;
mas há sempre um precipício
lá longe, ou aqui ao pé.
É por isso que vos conto
esta estória irrelevante;
conto-a ponto por ponto,
não fosse eu inda estudante.
Pressinto que vão gostar
desta estória sem valor;
passada lá nos Algarves,
sob um intenso calor.
Foi um osso gigantesco
que se entalou na garganta:
feio, duro e grotesco,
que até os doutos espanta!
Não sei como aconteceu:
eu nem quero acreditar;
talvez tivesse Morfeu
intervindo neste azar.
Pois o sono lento vinha
apoderar-se de mi;
e só a fome mesquinha
me aguentava já ali.
Queria berrar, não podia,
queria chorar, não chorei;
dentro de mim resistia
a honra dos dezasseis.
Levaram-me ao hospital,
médicos eram ausentes;
uma urgência? Não faz mal:
que se danem os doentes!
Esperei, desesperado,
o meu pai fez uma cena;
por causa do desgraçado
que a garganta me empena.
Uma injeção de morfina
(ou lá de que raio era)
furou minha pele fina,
transformou-me em mansa
fera!
Por fim, o cirurgião,
espreita para a dolorosa
e disse-me: «tu não és cão,
dá esse osso à raposa.»
Pobre da minha goela,
que ficou tão maltratada;
quando olho para a panela
só nela vejo ossada!
Papo papinhas de bebé,
leitinho frio ou morno;
que saudades, Salomé,
da comidinha do forno!
127
MOURARIA
Já morei na Mouraria
na rua do Terreirinho;
num prédio muito velhinho,
cai não cai, mas não caía!
Hóspede duma beiroa,
natural de Vila Chã,
mulher simples e boa,
como agora já não há.
Tinha um quarto pequenino,
com cama a condizer;
era quarto de menino,
de menino a crescer.
Era nas águas furtadas,
mesmo junto do telhado;
vinham as chuvas zangadas
ficava todo molhado.
Havia uma tasca ao lado,
daquelas de antigamente;
onde se cantava o fado
e se bebia aguardente.
Era uma tasca bairrista,
de tosco e velho balcão;
que suportava o fadista,
o tal fadista gingão.
Cantava lá um mocinho,
tinha voz de rouxinol;
davam-lhe um copo de vinho
parecia um raio de sol.
Hoje é nome conhecido,
até tem discos gravados;
mas à tasca, agradecido,
vai cantar um ou dois fados.
Não cobra nem um tostão,
só quer goela molhada;
daquele vinho rascão,
feitinho à martelada.
Quando me lembro, entristeço,
já tanto tempo passou;
e quanta coisa eu esqueço,
não aquilo que se amou!
Não vou lá e que saudade,
tanta vida a recordar;
ali, na velha cidade,
onde eu estive a morar.
Talvez um dia, um dia,
eu volte àquele lugar;
quase assim em romaria,
minha promessa pagar.
1993
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