sábado, 4 de outubro de 2025





POEMAS DO VENTO

Por Joaquim A. Rocha 




122

 

A MAL BEM-AMADA

 

Mote

 

Para fazeres chachada

Fica ali quietinho;

cabeça chalada,

corpo mesquinho.

 

Glosa

 

Pois nessa plumada,

nessa «cosa loca»,

calo minha boca,

não faço a jogada!

 

Se queres canção,

bonita ou feia,

inventa-a então,

se tiveres veia.

 

Deste-me o mote

e querias canção;

toma lá o pote,

o caldo é de grão.

 

Mas não te enfartes

com sopa tão forte;

não percas o norte,

se é que já partes!

 

123

 

A CIÊNCIA DOS TRAÇOS

 

Se o traço for curto e delgado

podes estar descansado:

é um traço bem humorado!

 

Se o traço for grosso e comprido

estás perdido:

é um traço mordido!

 

Se for um belo traço

sorri: é um abraço!

 

Se for apenas um ponto

dá-lhe um desconto:

marca-te encontro!

 

Se tiveres, vários dias, traços

- grossos, compridos, salientes,

teme: nem abraços, nem mostrar de dentes:

são traços rangentes!

 

Se queres saborear um traço

repara nele com atenção:

fecha os olhos e imagina-te

montado num traço sovina

com asas de gavião:

estás no mundo da ilusão!

 

A cor vermelha num traço

significa paixão;

não é frio como o aço,

arde como o bagaço,

e aquece o coração!

 

A cor verde não tem garra,

dá ao traço pouca vida;

qualquer borracha o apaga:

é a dita cor sumida!

 

Das outras cores nem se fala,

não são cor: são fingimento;

adere ao traço vermelho,

ergue-lhe alto monumento!

 

Faz-te ama do fedelho,

em teu regaço o embala;

dá-lhe a comer escaravelho,

e gordura de cavala!

 

Ai lindos traços, tão lindos,

todos vos amam e adoram;

os Antónios, os Arlindos…

quando vos veem até coram!

 

1989

 

(A um chefe de Serviço, de apelido Rei, que costumava pôr traços no livro de ponto quando os seus subordinados chegavam atrasados).

 

124

 

ORFEU ESQUECE EURÍDICE

 

Há dias ia pelo meu caminho e encontrei Orfeu. Ia triste, tocando sua flauta. Perguntei-lhe: Orfeu, por que vais tão triste? Respondeu-me: «vou triste e vou alegre!» Fiquei admirado e disse-lhe: não compreendo; no meu mundo ou se está triste ou alegre! Ele retorquiu: «esqueces que eu sou um deus!» Nesse caso… disse eu. «Eu posso assumir os dois estados de alma.» Esclarece-me, solicitei-lhe. «Vou-te contar tudo: como sabes, eu amava Eurídice e até ao inferno a fui buscar…» Isso toda a gente sabe, ó divino Orfeu. «Porém, o mafarrico – grão senhor das zonas subterrâneas – não me deixou trazê-la.» A culpa foi tua, Orfeu. «Sim, é possível; esqueçamos isso… esqueçamos, porque eu esqueci Eurídice.» Não acredito! «É verdade; enamorei-me de Lígia.» Lígia, a mulher mais bela da Terra?! «Essa, mesmo; logo que a vi todo o meu ser vibrou – Eurídice transformou-se no próprio esquecimento! Amo Lígia como só um deus sabe amar.» Orfeu, como podes desejar Lígia, um anjo humano?! «Desejo-a ardentemente, estremecidamente!» Eu disse-lhe: nunca consentirei que Lígia suba ao monte Olimpo; defendê-la-ei. «Tu, pobre mortal! O que poderás tu fazer para evitar tal coisa?» Eu gritei-lhe: Orfeu, lembra-te de que os deuses deixaram de dar ordens aos mortais; os homens não vos invocam mais; o vosso lugar é lá, longe, no Olimpo sagrado. Esquece Lígia – pedi-lhe, emocionado. «Não posso esquecê-la» - gritou Orfeu, furibundo, colérico. / Então eu, por compaixão, disse-lhe: Vamos fazer um pacto, como outrora faziam os deuses e os humanos. E propus: eu serei o teu Homero e cantarei os teus amores com Lígia; e tu, deus da solidão, dar-me-ás os teus cânticos que eu, e só eu, lhe transmitirei. / O apaixonado, pensativo, concordou… Orfeu, o deus de mão longa, de flauta nos beiços, começou a compor… Da sua flauta maravilhosa surgiram os mais belos cânticos e toda a natureza viva se calou para ouvi-los! E agora Lígia, na sua varanda de cristal, escuta, enlevada, os sons pungentes!  


 125

 

BALADA DOS PINTARROXOS

 

Na cerejeira mais alta

existia um lindo ninho;

lá dentro, arrumadinho,

seis ovos de passarinho,

coloridos e pequenos,

repousavam docemente;

os dias estavam amenos,

a primavera findava,

e o verão já espreitava;

cantava perto a cigarra,

a formiga mourejava,

a natureza sorria…

Eis então que certo dia

os seis ovos estalaram;

seis seres deles saíram.

Os seus papás acorreram

ao seu piar filial…

Foram buscar-lhes comida,

vieram logo em seguida,

rindo, rindo, tão alegres!

Mas os rapazes sabiam

que esse ninho existia

e não o queriam perder;

esperaram pacientes

que os passarinhos nascessem

que os bichitos crescessem

para em seguida os prender!

E antes deles voarem

(tendo os pais ido caçar)

o lindo ninho roubaram!

Para casa o levaram

e na gaiola os meteram.

Os pais dos pobres petizes

quando ao ninho regressaram

e os filhos não encontraram

ficaram muito infelizes…

Procuraram, procuraram,

chamando-os pelos nomes seus

e olhando para os céus

quase como numa prece;

percorreram toda a zona,

os olhos cheios de água,

no peito uma grande mágoa,

o cérebro num turbilhão;

numa das suas batidas

ouvem os filhos piar;

aproximam-se velozes,

aflitos, roucas as vozes,

dizendo-lhes comovidos:

«meus filhos, queridos filhos,

quem vos meteu na prisão?!

Foi gente sem coração,

sem sentimentos humanos;

não ides vós í ficar,

não devereis alegrar

quem tão mal a todos fez.»

E foram, com rapidez,

colher sementes letais

e, em nobres rituais,

fúnebres danças dançaram;

os “bebés”, obedientes,

apesar de descontentes,

as sementes engoliram

e no chão duro caíram.

A bicharada expressou

a sua profunda dor,

a sua imensa tristeza…

E os miúdos, repesos,

assistindo a este fim,

juraram solenemente

nunca mais serem ruins

serem do mal combatentes.

E juntando suas mãos

prometeram com paixão

lutar pela natureza.

Os bichos, agradecidos,

sentindo-se protegidos,

pela manhã vão cantar,

 juntinho à sua janela,

a mais bonita canção,

a mais pura, mais singela, 

de genuína verdade:

a canção da liberdade!

  

16/6/1992

  

126

 

UM OSSO DURO DE ROER

(1993)

 

Fui ao Algarve buscar

a cor que o sol nos dá;

mas vejam bem, tive azar,

e ia ficando por lá!

 

Eu conto-vos minha estória

(fácil ela é de contar);

não tem brilho, nem glória,

não faz rir, nem faz chorar!

 

Foi num certo restaurante

(tanto luxo, brada aos céus)

com empregados impantes,

aonde tudo aconteceu.

 

Estava mortinho de fome,

o que eu queria era comer.

Diz meu pai: come, come,

até a barriga encher.

 

Atirei-me às costeletas

(porco, boi ou javali)

para mim eram chupetas

com doce de chantilly.

 

Que carne tão saborosa,

nunca comera igual;

minha garganta gulosa

parecia fundo canal.

 

Num ápice comia a carne,

os ossos limpos ficavam;

nem os heróis de Marne

petiscos tão bons manjavam!

 

Mas as rosas têm espinhos,

os prazeres, limitações;

grandes perigos são os vinhos

se fora das refeições.

 

O acaso, ou o destino,

quis-me pregar a partida;

talvez por eu ser menino

e ter d’aprender a vida.

 

Mas vamos lá ao que interessa

(ou seja, ao que aconteceu);

embora não haja pressa,

pois a vítima fui eu.

 

Como dizia ao princípio,

a estória simples é;

mas há sempre um precipício

lá longe, ou aqui ao pé.

 

É por isso que vos conto

esta estória irrelevante;

conto-a ponto por ponto,

não fosse eu inda estudante.

 

Pressinto que vão gostar

desta estória sem valor;

passada lá nos Algarves,

sob um intenso calor.

 

Foi um osso gigantesco

que se entalou na garganta:

feio, duro e grotesco,

que até os doutos espanta!

 

Não sei como aconteceu:

eu nem quero acreditar;

talvez tivesse Morfeu

intervindo neste azar.

 

Pois o sono lento vinha

apoderar-se de mi;

e só a fome mesquinha

me aguentava já ali.

 

Queria berrar, não podia,

queria chorar, não chorei;

dentro de mim resistia

a honra dos dezasseis.

 

Levaram-me ao hospital,

médicos eram ausentes;

uma urgência? Não faz mal:

que se danem os doentes!

 

Esperei, desesperado,

o meu pai fez uma cena;

por causa do desgraçado

que a garganta me empena.

 

Uma injeção de morfina

(ou lá de que raio era)

furou minha pele fina,

 transformou-me em mansa fera!

 

Por fim, o cirurgião,

espreita para a dolorosa

e disse-me: «tu não és cão,

dá esse osso à raposa.»

 

Pobre da minha goela,

que ficou tão maltratada;

quando olho para a panela

só nela vejo ossada!

 

Papo papinhas de bebé,

leitinho frio ou morno;

que saudades, Salomé,

da comidinha do forno!

 

127

 

MOURARIA

 

Já morei na Mouraria

na rua do Terreirinho;

num prédio muito velhinho,

cai não cai, mas não caía!

 

Hóspede duma beiroa,

natural de Vila Chã,

mulher simples e boa,

como agora já não há.

 

Tinha um quarto pequenino,

com cama a condizer;

era quarto de menino,

de menino a crescer.

 

Era nas águas furtadas,

mesmo junto do telhado;

vinham as chuvas zangadas

ficava todo molhado.

 

Havia uma tasca ao lado,

daquelas de antigamente;

onde se cantava o fado

e se bebia aguardente.

 

Era uma tasca bairrista,

de tosco e velho balcão;

que suportava o fadista,

 o tal fadista gingão.

Cantava lá um mocinho,

tinha voz de rouxinol;

davam-lhe um copo de vinho

parecia um raio de sol.

 

Hoje é nome conhecido,

até tem discos gravados;

mas à tasca, agradecido,

vai cantar um ou dois fados.

 

Não cobra nem um tostão,

só quer goela molhada;

daquele vinho rascão,

feitinho à martelada.

 

Quando me lembro, entristeço,

já tanto tempo passou;

e quanta coisa eu esqueço,

não aquilo que se amou!

 

Não vou lá e que saudade,

tanta vida a recordar;

ali, na velha cidade,

onde eu estive a morar.

 

Talvez um dia, um dia,

eu volte àquele lugar;

quase assim em romaria,

minha promessa pagar.

 

1993

 


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