quinta-feira, 1 de maio de 2025

QUADRAS AO DEUS DARÁ

Por Joaquim A. Rocha 





712


Cangaram-me no país,

Atrelaram-me à carroça;

Não consegui o que quis,

Dormi no mato, na choça.

 

713

 

Não sei se serei feliz

Nesta terra sem bom rumo;

Sou senhor do meu nariz,

Mas não há fogo sem fumo!

 

714

 

Fui bom aluno nas aulas,

Aprendi algumas coisas;

As escolas eram jaulas,

Cadernos, mesas e loisas!

 

715

 

Ai quem dera regressar

Àquelas aulas de latim;

Aprender o verbo amar,

Por ela gostar de mim!

 

716

 

Nasci pobre, e doente,

Filho de mãe imatura;

Fraco de corpo, de mente,

De fome, muita fartura!

 

717

 

Comi côdeas de pão,

Ainda não tinha dentes;

Eram sobras de um cão,

E de velhos já sofrentes.

 

718

 

Cresci como fera, lobo,

 Na rua, abandonado;

Filho do nada, do povo,

Da aventura, do vil fado!

 

719

 

Aos onze anos de idade

Era hábil engraxador;

Matei a fome, vaidade,

O sonho de ser condor!

 

720

 

Nada devo às finanças,

Paguei sempre meus impostos;

Outros enchem bolsa, panças,

Eu sou rico em desgostos!

 

721

 

Quando regressei da guerra

Não sabia o que fazer:

Se voltar prà minha terra

Para no seixo bater!...

 

722

 

Decidi-me por Lisboa,

A capital do país;

Comendo caldo, e broa,

Feita do pobre maís.

 

723

 

Trabalhei durante o dia,

Ia prà escola à noite;

Corpo e mente resistia,

Mas era forte o açoite!

 

724

 

Restaram-me os diplomas,

Bem guardados em canudos;

Aos setenta, as reformas,

Tornam-nos surdos e mudos!

 

725

 

Já fui pobre, remediado,

Rico não consegui ser;

Fui poeta não amado,

Por quem não gosta de ler!

 

726

 

Põe máscara protetora,

No teu rosto esquisito;

Torna-te dona, senhora,

Dum sorriso sem atrito!

 

727

 

Não tenho ideologias,

Sentimentos altruístas;

Vivo em sonhos, fantasias,

No mundo dos egoístas!

 

728

 

Não tenho a força do vento,

Das fortes ondas do mar;

Mas tenho no pensamento

Mil forças por resgatar!

 

729

 

Quem me dera ter morrido

Mesmo antes de nascer;

Não fora eu um vencido,

Por mil anos a sofrer!

 

730

 

Nem só dramas e tragédias

Existem nas minhas vidas;

Já vivi festas, comédias,

Verdadeiras e fingidas!

 

731

 

“Descansa em paz”, disse amigo,

Quando eu já estava morto;

Mais que ele disse não digo,

Ia em viagem, absorto!

 

732

 

Tenho amigos carecas,

Outros com muito cabelo;

São as chuvas, são as secas,

Ou a falta de desvelo.

 

733

 

Toda a gente come potas,

Sejam novas ou mui velhas;

Sejam ateias, mui devotas,

Sejam duras como telhas.

 

734

 

Dizem que sou um cow-boy,

Bandoleiro do oeste;

As coisas são como sói,

Conforme a roupa que veste.

 

735

 

Ao longe ouvi um grito,

Quem estaria a gritar?

Talvez o Tó, o Negrito,

Uma fera a despertar!


// continua...

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