quarta-feira, 21 de maio de 2025

POEMAS DO VENTO

Por Joaquim A. Rocha 





110

Tu és a guerra…

que a morte encerra,

que o amor destrói;

tu és a serra

que a alma aterra

e não te dói!

 

És anti vida,

árvore despida,

coisa sem cor;

não esquecida,

andas na vida

causando dor.

 

Vives de sangue,

e mesmo exangue

nunca mais morres;

vives para sempre,

na nossa mente,

nas veias corres!

 

Foge de nós,

dá-nos a voz

que nos roubaste;

torna-te ausente,

deixa esta gente

que não criaste.

 

Vai-te por fim,

vai-te de mim,

de todos nós;

queremos viver,

não mais sofrer:

vai-te, algoz!

 10/5/1980

 

111

 

ROSTOS DA CIDADE

 

 Cansados. Nos olhares ténues lembranças fulgentes. Esperam – dias! Esperam noites de duvidoso prazer. Rostos, sem rosto! Sombras de seres que vegetam e arrastam na vida a vida! Vegetarianos comendo carne humana: a sua! Vejo os rostos nas filas intermináveis do autocarro; vejo-os nos mercados e afins; nas feiras, nos cinemas e teatros; vejo-os, depois, a caminho da sepultura: não mudaram! Voltam outros, e o ciclo cumpre-se e repete-se. Rostos de rostos! Rostos desgostos. Máscaras sem máscara! Nada refletem. Tudo significam! No rosto, dos rostos sem rosto, os olhos olhando para dentro de si – olhando horizontes apenas esboçados; horizontes imaginados sem imaginação! Se alguém quisesse ler nestes rostos inexpressivos só poderia ler: resignação! Rostos em negativo de fotos jamais tiradas! Rostos macerados e sulcados por rios de sofrimento. Rostos poluídos por ambientes degradantes e degradados! Rostos de indiferença; rostos de iceberg; rostos paisagem árida; rostos de cera. // - Rostos da cidade, rostos morte, túmulo, mármore, granito, olhai e vejam: os rostos do campo; os rostos da vida (como aí o sangue circula); os rostos da natureza-mãe. Ouvi e respondei: ao murmúrio das ondas, ao chilrear das avezinhas, ao eco profundo das montanhas; à voz da vida; à voz da natureza!

  

112

 

ALUCINAÇÃO

 

Ainda por ti espero. A cama continua vazia.

Espero a minha vez. Nela gerámos

- eu e a tua imagem –

Um filho. Não lhe demos nome!

Aguardamos a tua sugestão.

E a cama continua vazia. À espera do teu corpo

e do teu sangue! À espera do teu tempo.

À espera do teu odor.

E o nosso filho vai crescendo. E a imagem de ti envelhecendo. E tu habitas outros leitos…

E dás leite dos teus peitos a outros filhos teus!

E o nosso vai crescendo, crescendo, sem mãe material! E a cama continua vazia.

É ainda a calma que predomina, Não já a calma que domina!

E a espera vai crescendo, e o filho minguando.

A calma vai decrescendo, a imagem vai-se apagando, o leito arrefecendo!

O nosso filho à fome vai morrendo! É ainda a imagem que predomina. E a calma vai-se gastando. É quase noite; tu sem apareceres!

A calma espera; a cama… O filho morre; a mãe ausente! Agora sei que o tempo não tem horas.

A imagem não é! Resta o vazio da cama. O vazio… O vazio do nada!

 

27/5/1979

 

113

 

AQUELA CASA

   

     Aquela casa: velha, seca, fria, distante... Isolada na serra desdentada, como rocha ali nascida! As suas telhas, outrora olhando a paisagem  com sobranceria, dormem, agora, naquele chão lamacento. Algumas, as mais resistentes, ainda restam; porém, mutiladas, como soldados após a grande guerra.

     Aquela casa! Da sua chaminé, agora lúgubre, moribunda, tinham saído carradas de fumo, lembrando uma fábrica a laborar vinte e quatro horas por dia.

     Aquela casa! Vazia, despida daquele conforto humano que a caraterizava, lembra o túmulo do viandante que pereceu na sua vitalícia viagem e foi sepultado ali, na montanha!

     Junto à sua campa irreal, humilde, improvisada, pequeno morro de terra, vê-se uma estranha cruz de metal, tombada, cheia de ferrugem, e uma grosseira tábua de madeira, onde se lê com dificuldade: «Aqui jaz um desconhecido

     Na parede dessa casa, ora abandonada, vou escrever: «Aqui jaz a minha casa

  

    27/2/1980

 

114

 

JANELA IMAGINÁRIA

 

     É manhã. Fresca manhã de Abril. Agradável. Pela minha memória perpassam imagens, umas passadas, outras quase presentes. Estou calmo. De repente, porém, tudo se altera. Na rua, que avisto da janela onde me encontro, algo se passa. Pessoas apressadas dirigem-se para um mesmo lugar. Desastre, penso! E, de facto, passados alguns minutos, oiço a caraterística sirene do 112.

     Silencioso e estupefacto assisto àquela macabra cena, onde viaturas e corpos construíram estranha aguarela, tendo o vermelho como cor predominante.

     Não houve, da minha parte, qualquer espécie de reação! Quieto e solene, limitei-me a registar, como habitante de um outro mundo, o espetáculo grandioso, no qual os figurantes detinham o papel principal.

     Da ambulância foram retiradas as macas e nelas colocado o que restava desses corpos antes cheios de vida e ação.

     O fantástico e o irreal sobrepuseram-se à crua realidade. A visão surge e se move no ecrã da inconsciência. É um filme sem argumento, sem realizador - apenas atores representando o papel de outros atores.

     Alguns polícias marcam o solo e fazem medições. A assistência comenta, até à exaustão, o sucedido. Fala-se de mortos, de muitos mortos, mais, sem dúvida, do que aqueles que pereceram.

     Depois tudo volta ao normal. Fica apenas o espaço, o odor do óleo espalhado, sangue coalhado.

     Fiquei horas na janela! Algo de fascinante e aterrador ali me prendia. Nem a fome, nem a sede, me lembravam. Era o fascínio da morte. A sua proximidade e a sua ânsia de vida.

     As paisagens, que da janela normalmente avisto, não nasceram nesse dia! Tinham, coniventes, ficado para além das duras serras. Estava só, na minha janela!

 

Março de 1980

 

115

 

A CIDADE

  

      Para mim, que vivi imensos anos na província, a cidade foi como que o descobrir do mundo! As palavras liberdade, civilização, cultura, estavam ausentes do meu parco vocabulário. Eu era livre e não me apercebia; eu era civilizado e esse estatuto foi-me, mais tarde, retirado.

     Por quê? Porque a cidade tem a sua civilização! Tem as suas regras, as suas refinadas etiquetas. E eu, no meio desse labirinto de preconceitos, para mim estranhos, vi-me, de repente, mergulhado nas trevas do saber.

     Chamei-lhe nomes – feios, alguns – mas, com o decorrer dos anos, fui sendo cativado pelo sabor dos seus mil e um encantos: pelas luzes, pelas maravilhosas montras, pelas gentes apressadas. Senti-me alguém no meio dessa multidão compacta. Senti-me protegido.

     Agora a minha liberdade, pressentia-o, era total – eu passava despercebido!

      Não me chocava o buzinar forte dos automóveis; não me poluía os pulmões esse ar expelido por sujas chaminés de fábricas; não me enojava o quente cheiro dos óleos queimados.

     Estava ali na cidade, onde a natureza não é chamada a participar. O Homem tinha vencido: construíra a cidade! A sua cidade. Irreal? Fantasmagórica? Talvez. Mas, a cidade total. A cidade auto suficiente.

     E, quando lembro o outro eu, é apenas para confrontar as duas vidas: uma dependente da natureza; a outra, dependente do humano, das suas realizações.

 

12/3/1980 

 

116

 

ILHA MALDITA

 

 Aquela ilha era possuída pelo demo: pequena, rugosa, violenta! Batida pelas furiosas ondas, parecia desaparecer a cada momento, a cada instante. A vida ali não existia! Tudo nela fazia lembrar a morte e o terror. Parecia monstro marinho, desterrado pelos deuses, e acossado, sem tréguas, pelas bátegas ousadas e combativas. A tudo resistia o feio pedregulho: nem o mar, com a sua universal força, o abatia; nem o tempo, implacável, o consumia! Perdido no imenso oceano, e no oceano dos séculos, permanece!

Um dia, não sei quando, vou até lá, passar as minhas férias! Talvez sozinho…

 

Abril de 1980 


// continua...

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