domingo, 1 de setembro de 2024

QUADRAS AO DEUS DARÁ

Por Joaquim A. Rocha 



// continuação de 11/06/2024. 


492

 

Abriu-se a caixa de Pandora,

Dela saiu o bem e o mal;

O bem foi-se logo embora,

Restou semente letal.

 

493

 

Mata o vírus da chalaça,

Com pistola ou com faca;

Não pode ser com fumaça,

Nem com a dura matraca.

 

494

 

O bichinho não tem olhos,

Orienta-se pelo cheiro;

Na vida só há abrolhos,

Um parasita gaiteiro.

 

495

 

Se ele entrar no nariz,

Atira-lhe com pimenta;

Mata o bicho de raiz,

Com bagaço e água benta. 

 

496

 

Se ele entrar pela boca,

Cospe logo de seguida;

Fura-lhe as tripas c’a broca,

Dá-lhe banhos de amida.

 

497

 

Se ele entrar pelo tal,

Dá-lhe um tiro de canhão,

“Cheirinhos” de carnaval,

Desgostos de coração.

 

498

 

Se ele entrar p’los ouvidos

Bota-lhe azeite a ferver;

  E não ligues aos gemidos

Desse monstro a morrer.

 

499

 

Usa a máscara do Zorro,

O longo pau de Moisés;

Na cabeça usa gorro,

Veludo nos canapés.

 

500

 

Come muito, bebe bem,

E dorme o suficiente;

Ouve o senhor de Belém,

O tal amigo da gente.

 

501

 

Escuta o senhor da Costa,

Nosso anjo protetor;

Fala bem, não fala bosta,

É um deus, nosso senhor.

 

502

 

Protege-nos a todos nós,

Com ele estamos seguros;

Dentro da casca de noz,

De muralhas, altos muros. 

 

503

 

Estamos na vil prisão,

Por cem crimes de outrora;

Sem culpas não há perdão,

Sem noite não há aurora.

 

504

 

Que mal fizemos ao bicho

Para sofrermos assim?

Não somos os de rabicho,

Nem anjo… ou serafim.

 

505

 

Detestamos guerras frias,

As quentes, e até mornas;

Ajudamos obras pias,

Dormimos as belas sornas.

 

506

 

Foge de nós, parasita,

Vai para outros universos;

Não me dês cabo da guita,

Nem dos meus humildes versos.

 

507

 

Não toques no doce bicho,

Meu bichinho de estimação;

Brinca antes com o cochicho

Da menina Conceição.

 

508

 

Penso, logo sobrevivo,

Dizia o grão pensador.

Eu digo ao tal senhor:

Penso, logo estou tibo.

 

509

 

O burro da minha terra

Não pensa, mas existe;

O que ele quer é berra,

À boa palha não resiste.

 

510

 

O abade esfomeado

Diz à criada e amante:

Traz-me presunto fumado

E garrafa de espumante.

 

511

 

O bruto do marinheiro

Diz à sua namorada:

Traz linguiça do fumeiro,

Espumante da Bairrada.

 

512

 

O Aníbal lá da serra,

Pede à sua cozinheira:

Traz-me presunto da terra,

E bom vinho da Madeira.

 

513

 

O Serafim de Fiães

Só trata do seu umbigo:

Gosta de gatos e de cães

Mas não lhes dá o presigo.

 

514

 

A tia Maria Farruca

Era amiga dessa gente:

Da chirela e da cuca,

Até do ladro demente!

 

515

 

O Antoninho, coitado,

Tinha corpo de anão;

Bebia que nem soldado,

Comia que nem leão! 

 

516

 

Eu não quero dizer mal,

Daqueles que conheci;

É a grei de Portugal,

Com sangue de javali.

 

517

 

Eu não quero dizer mal

Da gente da minha terra;

Eu sou como eles, tal qual,

Lobo-do-mar e da serra.

 

518

 

Eu não posso dizer mal

Da malta da minha estirpe;

Não há outro povo igual,

Mas temo que me extirpe.

 

519

 

O destino, esse maldito,

Comeu-me o ócio e osso;

Ouve-se ao longe meu grito,

Do fundo do torpe poço.

 

520

 

Não me posso libertar,

Desta vil, atroz prisão;

Passo anos a hibernar

No meu sonho-ilusão.

 

521

 

Ai quem me dera fugir

Para o paraíso de Eva;

Onde Adão está a curtir,

E no inverno não neva.

 

522

 

Ver os olhos da serpente,

Olharem fixos pra mim;

Engolido qual semente,

Pela garganta sem fim. 

 

523

 

Lança o seu vil veneno

Sobre meu corpo indefeso;

Tal com um todo terreno

Nem osso sobrou ileso.

 

524

 

Quando acordo não sou eu,

Desapareceu minha cama;

Os sonhos são um pitéu

Para a doida que me trama.

 

525

 

Ai Ulisses, quem me dera,

Como tu andar perdido,

No verão ou primavera,

Neste oceano fingido.

 

526

 

Neste planeta doente,

Quase em vias de extinção;

Onde a saúde é ausente,

E o mal é forte e são.

 

527

 

Eu nasci pra levar coça,

Seja do Zé ou Manel;

Quando chove, usar croça,

Dormir num sujo bordel.

 

528

 

A sorte fugiu de mim,

Nunca quis nada comigo;

Talvez por ser arlequim,

E ter cara de postigo!

 

529

 

De que vale ser escriba,

De que vale ser doutor;

A sorte não me é amiga,

Não me quer dar seu amor.

 

530

 

Gostava de ser alguém,

Ser importante na vida;

Gastar mais do que um vintém,

Ser mosteiro, não ermida.

 

531

 

Mas os deuses e os santos

Não simpatizam comigo;

Nem sequer ouvem meus prantos,

Consideram-me inimigo.

 

532

 

Saudade, velha saudade,

Na alegria, nos reveses;

És nova apesar da idade,

Choro por ti certas vezes.

 

533

 

Vives comigo, saudade,

Dentro do meu coração;

Apesar da minha idade

E deste olhar sem paixão.

 

534

 

Não me queiras enganar,

Chamando-me rico e belo;

Sou ruína, ao luar,

Esperando o camartelo.

 

535

 

Ai quem me dera viver

Cinquenta ou cem mil anos;

Não ter nada pra esquecer,

Frustrações ou desenganos.

 

536

 

Rio Minho, rio Minho,

Porque és assim tão cruel?

Damos-te amor e carinho,

Tu dás-nos taças de fel.

 

537

 

Morrem mil em tuas águas,

Mais de cem todos os anos;

Enches corações de mágoas,

Provocas tristeza e danos.

 

538

 

Dizem que ando esquecido,

Não me lembro de ninguém;

Vou tomar um comprimido

À botica de Belém.

 

539

 

Meu cérebro adormecido,

Mais cansado que um oleiro,

Não sente o olhar de Dido,

Tão felino e matreiro.

 

540

 

Não venhas com veleidades,

Com tolices e mentiras;

Eu prefiro as verdades,

Mesmo rasgadas em tiras.

 

541

 

Dás-me beijos, mil abraços,

Mas sem calor, sem desejo;

Rompeste todos os laços,

Ficou no ar um bocejo!

 

542

 

Já morei na Mouraria,

Em uma rua antiga;

Na tasca noite era dia,

A guitarra era cantiga.

 

543

 

Gente boa e gente má

Cruzavam-se nessa rua;

Nas tascas vinho era chá

Os fados vinham da lua.

 

544

 

Ali perto, na capela,

Rezava-se à Senhora;

Era de barro, mas bela,

Cheia d’oiro da penhora.

 

545

 

Rezava-se um padre-nosso

Pelas almas d’outro mundo;

Há dias morrera um moço,

Todo roto, moribundo.

 

546

 

Era inda uma criança

Mas bebia qual labrego;

Usava bigode e trança,

Vestia roupa do prego.

 

547

 

Não resistira à fadiga,

Ao serviço da chulice;

Gamava Rita e amiga,

E até a Maria Alice!

 

548

 

Mouraria, que saudades,

Desses tempos de glória;

Entre mentiras, verdades,

Entre tragédia e paródia.

 

549

 

Vivia-se o dia-a-dia,

Sem sonhos, sem ambições;

O vinho tinto escorria

Por entre o mar de ilusões.

 

550

 

Mouraria, já estou velho,

Perdi a força e o jeito;

Dói-me barriga, artelho,

O pescoço e o peito.


// continua...

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