QUADRAS AO DEUS DARÁ
Por Joaquim A. Rocha
// continuação de 11/06/2024.
492
Abriu-se
a caixa de Pandora,
Dela
saiu o bem e o mal;
O
bem foi-se logo embora,
Restou
semente letal.
493
Mata
o vírus da chalaça,
Com
pistola ou com faca;
Não
pode ser com fumaça,
Nem
com a dura matraca.
494
O
bichinho não tem olhos,
Orienta-se
pelo cheiro;
Na
vida só há abrolhos,
Um
parasita gaiteiro.
495
Se
ele entrar no nariz,
Atira-lhe
com pimenta;
Mata
o bicho de raiz,
Com
bagaço e água benta.
496
Se
ele entrar pela boca,
Cospe
logo de seguida;
Fura-lhe
as tripas c’a broca,
Dá-lhe
banhos de amida.
497
Se
ele entrar pelo tal,
Dá-lhe
um tiro de canhão,
“Cheirinhos”
de carnaval,
Desgostos
de coração.
498
Se
ele entrar p’los ouvidos
Bota-lhe
azeite a ferver;
E não ligues aos gemidos
Desse
monstro a morrer.
499
Usa
a máscara do Zorro,
O
longo pau de Moisés;
Na
cabeça usa gorro,
Veludo
nos canapés.
500
Come
muito, bebe bem,
E
dorme o suficiente;
Ouve
o senhor de Belém,
O
tal amigo da gente.
501
Escuta
o senhor da Costa,
Nosso
anjo protetor;
Fala
bem, não fala bosta,
É
um deus, nosso senhor.
502
Protege-nos
a todos nós,
Com
ele estamos seguros;
Dentro
da casca de noz,
De
muralhas, altos muros.
503
Estamos
na vil prisão,
Por
cem crimes de outrora;
Sem
culpas não há perdão,
Sem
noite não há aurora.
504
Que
mal fizemos ao bicho
Para
sofrermos assim?
Não
somos os de rabicho,
Nem
anjo… ou serafim.
505
Detestamos
guerras frias,
As
quentes, e até mornas;
Ajudamos
obras pias,
Dormimos
as belas sornas.
506
Foge
de nós, parasita,
Vai
para outros universos;
Não
me dês cabo da guita,
Nem
dos meus humildes versos.
507
Não
toques no doce bicho,
Meu
bichinho de estimação;
Brinca
antes com o cochicho
Da
menina Conceição.
508
Penso,
logo sobrevivo,
Dizia
o grão pensador.
Eu
digo ao tal senhor:
Penso,
logo estou tibo.
509
O
burro da minha terra
Não
pensa, mas existe;
O
que ele quer é berra,
À
boa palha não resiste.
510
O
abade esfomeado
Diz
à criada e amante:
Traz-me
presunto fumado
E
garrafa de espumante.
511
O
bruto do marinheiro
Diz
à sua namorada:
Traz
linguiça do fumeiro,
Espumante
da Bairrada.
512
O
Aníbal lá da serra,
Pede
à sua cozinheira:
Traz-me
presunto da terra,
E
bom vinho da Madeira.
513
O
Serafim de Fiães
Só
trata do seu umbigo:
Gosta
de gatos e de cães
Mas
não lhes dá o presigo.
514
A
tia Maria Farruca
Era
amiga dessa gente:
Da
chirela e da cuca,
Até
do ladro demente!
515
O
Antoninho, coitado,
Tinha
corpo de anão;
Bebia
que nem soldado,
Comia
que nem leão!
516
Eu
não quero dizer mal,
Daqueles
que conheci;
É
a grei de Portugal,
Com
sangue de javali.
517
Eu
não quero dizer mal
Da
gente da minha terra;
Eu
sou como eles, tal qual,
Lobo-do-mar
e da serra.
518
Eu
não posso dizer mal
Da
malta da minha estirpe;
Não
há outro povo igual,
Mas
temo que me extirpe.
519
O
destino, esse maldito,
Comeu-me
o ócio e osso;
Ouve-se
ao longe meu grito,
Do
fundo do torpe poço.
520
Não
me posso libertar,
Desta
vil, atroz prisão;
Passo
anos a hibernar
No
meu sonho-ilusão.
521
Ai
quem me dera fugir
Para
o paraíso de Eva;
Onde
Adão está a curtir,
E
no inverno não neva.
522
Ver
os olhos da serpente,
Olharem
fixos pra mim;
Engolido
qual semente,
Pela
garganta sem fim.
523
Lança
o seu vil veneno
Sobre
meu corpo indefeso;
Tal
com um todo terreno
Nem
osso sobrou ileso.
524
Quando
acordo não sou eu,
Desapareceu
minha cama;
Os
sonhos são um pitéu
Para
a doida que me trama.
525
Ai
Ulisses, quem me dera,
Como
tu andar perdido,
No
verão ou primavera,
Neste
oceano fingido.
526
Neste
planeta doente,
Quase
em vias de extinção;
Onde
a saúde é ausente,
E
o mal é forte e são.
527
Eu
nasci pra levar coça,
Seja
do Zé ou Manel;
Quando
chove, usar croça,
Dormir
num sujo bordel.
528
A
sorte fugiu de mim,
Nunca
quis nada comigo;
Talvez
por ser arlequim,
E
ter cara de postigo!
529
De
que vale ser escriba,
De
que vale ser doutor;
A
sorte não me é amiga,
Não
me quer dar seu amor.
530
Gostava
de ser alguém,
Ser
importante na vida;
Gastar
mais do que um vintém,
Ser
mosteiro, não ermida.
531
Mas
os deuses e os santos
Não
simpatizam comigo;
Nem
sequer ouvem meus prantos,
Consideram-me
inimigo.
532
Saudade,
velha saudade,
Na
alegria, nos reveses;
És
nova apesar da idade,
Choro
por ti certas vezes.
533
Vives
comigo, saudade,
Dentro
do meu coração;
Apesar
da minha idade
E
deste olhar sem paixão.
534
Não
me queiras enganar,
Chamando-me
rico e belo;
Sou
ruína, ao luar,
Esperando
o camartelo.
535
Ai
quem me dera viver
Cinquenta
ou cem mil anos;
Não
ter nada pra esquecer,
Frustrações
ou desenganos.
536
Rio
Minho, rio Minho,
Porque
és assim tão cruel?
Damos-te
amor e carinho,
Tu
dás-nos taças de fel.
537
Morrem
mil em tuas águas,
Mais
de cem todos os anos;
Enches
corações de mágoas,
Provocas
tristeza e danos.
538
Dizem
que ando esquecido,
Não
me lembro de ninguém;
Vou
tomar um comprimido
À
botica de Belém.
539
Meu
cérebro adormecido,
Mais
cansado que um oleiro,
Não
sente o olhar de Dido,
Tão
felino e matreiro.
540
Não
venhas com veleidades,
Com
tolices e mentiras;
Eu
prefiro as verdades,
Mesmo
rasgadas em tiras.
541
Dás-me
beijos, mil abraços,
Mas
sem calor, sem desejo;
Rompeste
todos os laços,
Ficou
no ar um bocejo!
542
Já
morei na Mouraria,
Em
uma rua antiga;
Na
tasca noite era dia,
A
guitarra era cantiga.
543
Gente
boa e gente má
Cruzavam-se
nessa rua;
Nas
tascas vinho era chá
Os
fados vinham da lua.
544
Ali
perto, na capela,
Rezava-se
à Senhora;
Era
de barro, mas bela,
Cheia
d’oiro da penhora.
545
Rezava-se
um padre-nosso
Pelas
almas d’outro mundo;
Há
dias morrera um moço,
Todo
roto, moribundo.
546
Era
inda uma criança
Mas
bebia qual labrego;
Usava
bigode e trança,
Vestia
roupa do prego.
547
Não
resistira à fadiga,
Ao
serviço da chulice;
Gamava
Rita e amiga,
E
até a Maria Alice!
548
Mouraria,
que saudades,
Desses
tempos de glória;
Entre
mentiras, verdades,
Entre
tragédia e paródia.
549
Vivia-se
o dia-a-dia,
Sem
sonhos, sem ambições;
O
vinho tinto escorria
Por
entre o mar de ilusões.
550
Mouraria,
já estou velho,
Perdi
a força e o jeito;
Dói-me
barriga, artelho,
O
pescoço e o peito.
// continua...
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