ENTRE MORTOS E FERIDOS
(Dois anos de guerra na Guiné-Bissau).
Por Joaquim A. Rocha
19.º Capítulo
CONTUBOEL
Mais uma tarde de domingo. As ruas
da Baixa lisboeta fervilhavam de gente; aproximava-se o natal e as lojas tentavam vender
o máximo possível. Os portugueses gostam de oferecer prendas nesta quadra do
ano, todos se reúnem na famosa ceia de família, e à meia-noite trocam as prendas
adquiridas, quantas vezes com que sacrifícios financeiros. É uma tradição
antiga e o povo não abdica dela. Claro que com o tempo irá desaparecer, como
tudo se extingue, mas não será para já. As ruas estavam iluminadas, a Câmara
Municipal fizera questão nisso, e à noite era um autêntico espetáculo. Milhares
de lâmpadas, de várias cores, proporcionavam uma visão de sonho, de irreal. Os
dois amigos mais uma vez se encontraram. O primeiro a chegar foi Cândido, mas
não esperou muito. Quando avistou Henrique disse-lhe:
- Boa tarde. Hoje está um dia cinzento,
não sei se preferes antes ir ao cinema, agora nesta época passam bons filmes.
- Não me importava nada de ir ver um
desses filmes bíblicos, mas prefiro ouvir a sua história africana. Quando a
acabar então sim, vamos ao cinema e ao teatro, agora estão boas peças em
cartaz. No Parque Mayer estão em cena umas revistas interessantes.
- Tudo bem! Tu mandas. Então escuta: em
Contuboel encontrei um rapaz dos meus lados. Chamava-se Jeremias e era ajudante
de cozinheiro. Tinha sensivelmente menos um ano de Guiné do que eu, um
periquito (alcunha dada aos novos por
causa da farda esverdeada), e não passara ainda pelos sucessos que atrás te
narrei. Contou-me que, tal como eu, não arranjara o dinheiro suficiente para o
engajador, que ainda tinha circulado por Espanha «somente a ver como as coisas decorriam, onde as modas paravam, quais as
probabilidades», mas depressa chegou à conclusão de que sozinho nunca conseguiria
chegar a França «é um país longínquo e
correm-se imensos riscos; cumprirei a minha sina», diz-me num tom lamuriento
e resignado. «Melgaço está cada vez mais
desértico» - lamenta-se. «Só velhos e
crianças lá continuam!» «E as belas raparigas
da nossa terra?» - perguntei-lhe. «Os
emigrantes levam-nas todas; até com quinze anos de idade já estão a casar!»
Foi ele, num gesto de solidariedade, que me deu a morada de uma garota sua
conhecida, a viver no sul de França com os pais, gente da primeira geração de
emigrantes.
Escrevi-lhe ainda nesse dia. Pedi-lhe a fotografia, e ela mandou-ma. Era
linda, menina de uma beleza serena, suave, comovedora, com feições nobres.
Fiquei logo pelo beicinho. Trocámos algumas missivas. Não passou disso, apesar
de lhe ter criado alguma afeição. Rematava sempre as suas cartas: «Desculpe o meu péssimo português.»
- E a guerra, acabara?! – pergunta Henrique com salpicos de ingenuidade.
- Dali, desse calmo e aprazível lugar,
partíamos, quase diariamente, para patrulhamentos em toda a zona junto à
fronteira do Senegal; levávamos a cabo ações de psicossocial, isto é,
tentávamos convencer os indígenas de que o governo era forçado a combater os
rebeldes, porque estes não acatavam a ordem e as leis portuguesas. «A guerra não se faz contra o povo»,
dizíamos-lhes.
- E conseguiram transmitir-lhes essa
mensagem?! – pergunta Henrique,
convencido de antemão de que a resposta seria negativa.
- Quem falava sempre era um oficial,
nós, os soldados rasos, permanecíamos calados que nem gente muda! Numa dessas
ações psicológicas, tendo ido libertar águas atrás de uma árvore, vi fugirem da
tabanca, sorrateiramente, dois latagões negros. Fiquei indeciso: disparo, não
disparo? Na dúvida, optei por não disparar.
- Podiam ser dois homens da guerrilha;
devia, talvez, tê-los mandado parar.
- E se não fossem? E se não parassem?
Teria de agir, teria de matá-los. Não sou nenhum assassino!
- Então por que fugiram eles? Não acha
esquisita essa atitude?
- No lugar deles provavelmente faria o
mesmo; os nossos superiores, quando desconfiavam de alguém, sobretudo de homens
jovens, davam-lhes ordem de prisão, independentemente de pertencerem, ou não,
ao PAIGC. Depois se veria se a decisão tinha sido acertada. Às vezes já era
tarde de mais para estes desgraçados! Mas deixemos isso… Falava-se em recentes
combates com os guerrilheiros, para os lados de Pirada, mas eu tive a sorte de
não assistir a nenhum – estava saturadíssimo de tiros e de confusão, o que eu
queria era paz e sossego. Os habitantes da região passavam de um lado para o
outro da fronteira com a maior das naturalidades; nós, nada podíamos fazer,
pertenciam à mesma etnia, falavam a mesma língua (o francês e o português para eles não passavam de duas línguas estrangeiras),
e além disso possuíam terrenos de cultivo em ambos os países. Faziam-me lembrar
aqueles povos serranos do Alto Minho, que têm propriedades na Galiza,
circulando à vontade entre a Espanha e Portugal, quando, claro, os dois países
estão de boas relações.
- Para eles as fronteiras são
simbólicas. E a sua especialidade?!
- Apesar de ser condutor, andando
aqueles meses ao volante, não conduzia qualquer tipo de viatura, visto estas
não chegarem para as encomendas. O capitão escolheu quatro ou cinco, ao seu
exclusivo critério, ou aconselhado pelos alferes, e os restantes continuaram a
ser atiradores e a não receberem o prémio a que tinham direito.
- Mais uma brutal injustiça, amigo
Cândido, mais uma brutal injustiça!
- Tens razão. E olha que o dinheiro do
prémio, não obstante ser pouco significativo, cem, ou duzentos escudos por mês,
dava um grande jeito.
- Pensa que alguém se abotoava com
ele?!
- Não sei concretamente, falava-se
nisso, mas como deves calcular nós não tínhamos acesso às contas, à escrita; o
cabo amanuense era o único da nossa classe afeto à contabilidade; mas esse era
astuto, «rato», um privilegiado, a
nada aludia, por conseguinte, tudo que nós disséssemos a esse respeito,
reverteria contra nós próprios. Por muito menos, colegas nossos, de outras Companhias,
tiveram de cumprir outra comissão de serviço numa das três frentes de guerra!
- Isso foi cruel, desumano! – explode, irado, Henrique.
- Também acho. E, como é evidente, não
ficariam na cidade, mas sim bem no interior da colónia, nos locais onde
sibilavam as balas e o troar dos canhões. Mas deixa-me continuar, se não perco
o fio à meada. Existia em Contuboel um campo de futebol, de pequenas dimensões
e de terra dura. Como ele me fazia lembrar
o do Monte de Prado, onde tantas vezes competira! Que estremes saudades daquele
tempo, dos meus patrícios: «Hoje
vamos jogar contra os de Cristóval, vens?» Ia sempre. Por vezes tínhamos de levar uma enxada para arrancar os
torrões que já o cobriam, surgidos durante os meses de inverno, bastante rigoroso,
mas com que satisfação nós o fazíamos! Levávamos também umas sandes e um
garrafão de vinho de cinco litros, do
verdinho, para matar a fome e a sede. No mini estádio de Contuboel
disputámos alguns jogos, bastante renhidos, embora eu evitasse participar,
devido à pouca resistência física. Iria levar algum tempo a recuperar a minha
antiga pujança.
- Mas agora já comia comida quente,
todos os dias?!
- Sim. A alimentação melhorou, tínhamos
refeições com pontual regularidade, no aniversário do comandante foi-nos servida
uma gazela estufada (a carne mais saborosa que comi até hoje); podia-se caçar
aves e alguns animais, podíamos ir à pesca ali bem perto. Como a maioria não
possuía equipamento apropriado, pescavam com granadas de mão! Claro que por
este processo, matavam peixe graúdo e miúdo. Um crime ecológico, como em nossos
dias é vulgar ouvir-se. Parecia que a temível guerra, pelo menos aquela que nós
conhecêramos anteriormente, tinha finalmente terminado para a minha Companhia.
Até as cartas das madrinhas de guerra tinham outro sabor, exalavam um perfume
inebriante.
- Ainda bem que me fala nelas;
suplico-lhe, Cândido, leia-me uma cartinha. Concorda?
- Como posso recusar um pedido assim
formulado?
Querido afilhado:
A continuação de boa saúde é esse o meu desejo. Já estava a estranhar
não me escrever, até pensava nas piores coisas, que tinha ido para fora do
sítio onde está, em alguma missão perigosa, mas felizmente não foi por isso.
Diz-me que a um soldado, quando vem de cumprir o serviço militar lhe é dado
facilmente o passaporte; está nisso muito enganado, pelo menos aqui neste
distrito. Conheço um rapaz que esteve quatro anos na tropa e quando veio pediu-o
e não lho deram, está na Suíça a trabalhar, mas seguiu com contrato de
trabalho; já vê que não é fácil arranjá-lo nem que seja de turista, só se tiverem
rendimentos suficientes. Diz-me que é melancólico; eu sou bastante alegre, toda
a gente me diz que se não existisse teriam de me inventar, pois à minha beira
só há boa disposição, não gosto de ver pessoas de semblante carregado. Vai ver
que quando sair dessa guerra já fica com outro espírito, eu dou uma ajudinha…
O tempo custa a passar para aqueles que
sofrem, mas é preciso ser forte, paciente; o galardão será serem heróis, os
defensores da Pátria. Continuo a ver
filmes de grande interesse; ultimamente vi o «Adeus às Armas», com Rock Hudson,
deve conhecê-lo, e estou a pensar ver a «Ultrapassagem». Nunca me canso de ver
cinema, é a minha distração predileta. Vocês aí não veem? Provavelmente só
nas cidades; quando voltar, desforra-se.
Por agora é tudo. Não
desespere, continuo a rezar muito por si, vai ver que em breve estará de volta,
para nos conhecermos, estou ansiosa por isso. Receba abraços sinceros da
madrinha muito amiga.
- As ondas estão a agitar-se; o namoro
está a criar raízes, daqui a pouco não lhe poderá escapar!
- Henrique! Brincas com assuntos
sérios; se te lesse algumas cartas de outras madrinhas verias que as coisas já
estavam bem mais adiantadas!
- Não me diga! Por favor, leia-me uma
dessas, morro de curiosidade.
- Tiveste sorte, porque, a prever esse
teu pedido, também as trouxe. Mas é uma exceção.
Afilhado querido:
Em primeiro de tudo o que te desejo é a tua saúde. Cá recebi a tua
carta e nela vi que tinhas ficado um pouco chateado por te mandar dizer que
tinha ouvido na rádio o teu nome todo a dedicar um disco aos pais, irmãos e
noiva, e que nesse caso não podia estar a perder tempo nem a gastar dinheiro em
cartas, pois a minha mãe também diz ter ouvido, e aconselhou-me a não te escrever mais, mas como dizes que é mentira, que
há muitos soldados com o mesmo nome, então continuo a escrever-te. Mas vê lá,
se for verdade eu o saberei pelo padre da freguesia. Mandaste-me dizer que
agora tens aí uma vida boa, que só é pena eu não poder ir, pois olha: às vezes
pode ser que vá ter contigo aí, quem me dera para te ver pessoalmente.
Com isto, querido, não te estou a ser mais
maçadora, só te pedia que me fosses sincero, que tu bem deves saber que em ti
acredito. Mandaste-me dizer que fui eu o teu primeiro amor. Pois olha: tu, para
mim, também o foste; e serás o único, toda a minha vida. E com isto não estou a
demorar mais. Recebe muitos beijinhos e abraços juntos e um coração cheio de
saudades desta tua querida apaixonada.
Genoveva
- Esta madrinha, pelos vistos, não
perdia tempo. Não me diga que lhe apareceu na Guiné!
- Qual quê?! Escreveu-me mais uma ou
duas cartas e deixou de escrever. Certamente apareceu-lhe um emigrante e
casou-se; assim procediam as raparigas da província naquela época. A vida do
campo (especialmente para as jovens)
era árdua; logo que lhe pudessem fugir, faziam-no. Depois iam para França lavar
as escadas e os cães das senhoras francesas, desempenhar o cargo de porteiras
nos altos prédios de Paris, mas recebiam os francos, com os quais vinham mais
tarde pavonear-se para a sua terra natal. Aquele amor de que fala nas cartas
não é verdadeiro, é fruto da imaginação, da imaturidade, e porque sabe à partida
que a distância nos impedia de concretizar fosse o que fosse.
- O Cândido estimulava…
- Alimentava esse tipo de linguagem
porque me divertia, e precisava imenso de me distrair, não pensar na parca. Já
que vem a talhe de foice, vou abrir mais uma exceção e ler-te outra carta, de
outra madrinha… Posso?
- Até lhe agradeço. Desse modo fico a saber
que a relação soldado madrinha se baseava num divertido jogo de palavras, de
linguagens amorosas, mais ou menos escondidas, de um subterfúgio!
- De certo modo, acertaste no alvo, mas
não vás tão longe. As primeiras missivas que se trocavam revelariam o caminho a
seguir: tudo dependia das respostas. Mas ouve, em silêncio, esta:
Querido afilhado
Em primeiro lugar estimo que esta minha carta o vá encontrar de ótima
saúde. Eu fico bem, graças a Deus. Cá recebi o seu aerograma e nele vi tudo
quanto me mandava dizer, pois mandava-me dizer que passa lá muitos trabalhos.
Peço-lhe que nunca desanime, o tempo vai passando lentamente, Deus Nosso Senhor
há de ter dó de si, há de livrá-lo de todos os perigos, pois saberá que eu rezo
cá muito por si para que Nosso Senhor o livre de todo o mal e quando vier venha
com saúde, então não é assim? Como tem passado esses meses de tropa? Gostava
que me contasse um pouco da sua vida. Tenho uma irmã e um cunhado e uma
sobrinha no Brasil que estão muito bem, vai qualquer dia um que anda para ser
meu cunhado para lá, que lhe arranjou lá um emprego a minha mana e cunhado, e é
para um emprego bom; pois saberá, se nós houvermos de ser um para o outro, já
me mandou dizer que nos arranja lá também um emprego para nós os dois. Saberá
que vamos ter cá na terra uma grande festa, é pena que você não possa cá vir
este ano. Para o próximo já espero que cá esteja junto de mim. Peço-lhe que me mande dizer quantos anos
tem, gostava muito de saber, mais ou menos.
Por agora não me lembro de mais nada para
lhe dizer. Receba muitos cumprimentos e despede-se a
Maria Teresa
- Não sei o que hei de dizer-lhe, meu caro Cândido. Você era um Don
Juan, ou andava a brincar com os sentimentos das raparigas casadoiras!
- Nem uma coisa, nem outra; apenas dei
início a uma troca de correspondência com jovens madrinhas de guerra, sem outro
objetivo que não fosse o de me distrair, esquecer a violência do dia-a-dia na
terrífica guerra. Não desejava namorar (sabes
que a única namorada que tive antes dos meus vinte anos me trocou por um emigrante
e com ele casou logo que ingressei no serviço militar?!); muito menos
queria casar novo, pois não tinha nessa ocasião um rumo definido – a minha vida
ainda iria sofrer uma grande reviravolta. Este princípio de namoro fazia parte
do contrato inicial: «tu aceitas ser
madrinha de guerra e com o tempo aceitas ser namorada até ao fim da comissão;
acabada esta, cada qual segue o seu caminho.» Eis o jogo, ninguém se pode
queixar. Nunca critiquei aquelas que me deixaram de escrever de um momento para
o outro, sem uma explicação, sem um adeus; seguiram o seu destino. Não seria a
mesma coisa se respondesse a um anúncio de jornal pedindo noivo – nesse caso
assumiria um compromisso.
- A minha observação reside mais na
ausência de princípios, isto é, se era madrinha não poderia ser namorada, e
vice-versa; vocês não tinham isso em conta, desdobravam o estatuto conforme
lhes conviesse. A não ser que elas aceitassem tornar-se madrinhas de guerra na
esperança de arranjarem marido!
- Esse é um estudo que está por fazer;
não duvido que algumas delas pensassem assim; a maioria, não. De qualquer modo,
tiveram um papel importantíssimo na nossa vida belicosa, ajudaram-nos muito. Eu
até penso que não fiquei maluco graças a elas!
- Quase me convenceu, mas, como disse,
esse tema está por explorar. Talvez um dia apareçam sociólogos e psiquiatras
que se debrucem sobre o assunto.
Depois de uma curta pausa, Cândido continua
a contar ao amigo a sua interessante história.
- Amigo Henrique, logo que as coisas
correm mais ou menos, ninguém quer a gente! Explico-te por quê: quando não ia
nas colunas patrulhar a zona, ficava na oficina a ajudar o mecânico. Gostava
desse serviço. Apesar de sujinho, aprendi bastante. Trabalhávamos e
divertíamo-nos. Alguns colegas gostavam de cantar o fado, e até havia um ou
outro que não cantava mal. Jamais esqueci a letra de um desses fados, escrito
por um lisboeta ferrenho, nascido no Bairro Alto, salvo erro, cujo nome nunca
soubemos. Hoje conheço mais ou menos a vida noturna na capital do país, embora
não tenha tempo nem dinheiro para andar em farras. Eu não tenho jeito para
declamar, não sou nenhum João Vilaret, mas apesar disso, escuta:
Já
morei na Mouraria
na
Rua do Terreirinho;
num
prédio muito velhinho,
cai,
não cai, mas não caía.
Hóspede
duma beiroa,
natural
de Vila Chã;
mulher
simples e boa,
como
agora já não há.
Tinha
um quarto pequenino,
com
cama a condizer;
era
quarto de menino,
de
menino a crescer.
Estava
nas águas furtadas,
mesmo
junto do telhado;
vinham
as chuvas zangadas
ficava
todo molhado.
Havia
uma tasca ao lado,
daquelas
d’antigamente;
na
qual se cantava o fado
e
se bebia aguardente.
Era
uma tasca bairrista,
de
tosco e velho balcão
que
amparava o fadista,
o
tal fadista gingão.
Cantava
lá um mocinho,
tinha
voz de rouxinol;
davam-lhe
um copo de vinho
parecia
um raio de sol.
Hoje
é nome conhecido,
até
tem discos gravados;
mas
à tasca, agradecido,
vai
cantar um ou dois fados.
Não
cobra nem um tostão,
só
quer goela molhada;
aquele
vinho rascão,
feitinho
à martelada.
Quando
me lembro entristeço,
já
tanto tempo passou;
e
quanta coisa eu esqueço…
não
aquilo que se amou!
Não
vou lá e que saudade,
tanta
vida a recordar;
ali,
na velha cidade,
onde
eu estive a morar.
Talvez
um dia, um dia…
eu
volte àquele lugar;
quase
assim em romaria,
minha
promessa pagar.
- Uma letra bem gira! Adaptava-se a um interessante fado – aprova Henrique. – Afinal de contas
também se divertiam.
- Naquelas idades, e depois de nos
termos safado daquelas batalhas infernais, tudo nos parecia já cor-de-rosa. A
esperança voltou aos nossos corações. À tardinha, depois do jantar, íamos dar umas
voltas (até o furriel Bonito podia
passear livremente o seu pastor alemão, não correndo agora o risco de lhe deitar
a G-3 ao rio, como o fizera antes); assistíamos às festas dos indígenas,
entrávamos nas suas danças, embora eles não gostassem muito dessa intromissão (sabes que cantam e dançam quando morre
alguém com idade avançada?! Ficam
contentes porque, dizem eles, a pessoa viveu aquele tempo todo e foi feliz;
choram os novos, pela razão contrária.)
- Julgo que estão certos. E como são os
cemitérios deles? – pergunta Henrique,
roído de curiosidade.
- Perguntas bem, mas francamente não me
lembro! Penso que usarão campas térreas, pois jazigos – (com espaços fechados por paredes ou gradeamentos) – nunca vi; por
outro lado, penso que enterram os seus mortos, não me apercebi que utilizem a
cremação. Mas continuando: quando lá aparecia o homem da sétima arte, com a
maquineta, víamos cinema – filmes antigos, já ultrapassados: Charlot,
Cantinflas, Irmãos Marx, Bucha e Estica, Tarzan, dramalhões, fitas policiais, cow-boyadas…,
ao ar livre, pois salas não existiam. A fita, já tão usada como o fato coçado e
porco do seu dono, rebentava constantemente; o exibidor tentava consertar
aquilo o mais depressa possível – pateticamente, ríamos. Ele não gostava nada
de ouvir essas risadas hipócritas e mesquinhas, mas reconhecia humildemente que
o público tinha razão. «Mas que diabo!»
- comentava ele – «vocês querem galinha
gorda por pouco dinheiro?! Pensam que é fácil andar pelo interior da Guiné a
exibir filmes? Não estamos em Bissau!»
- Vocês não deviam ter gozado com o
homem! - criticou Henrique, fazendo uma
cara séria.
- Que é que tu queres. Achas, que era possível,
e razoável, aguentar todas aquelas interrupções sem botar uma saudável e sonora
gargalhada?! Certo dia, o capitão mandou reunir a Companhia e disse: «De Bissau pedem dois soldados para fazerem
serviços de guarda. Se houver voluntários, que se ofereçam; caso contrário,
terei eu de os escolher.»
- Ofereceram-se às mãos cheias!
- Pelo contrário: ninguém se ofereceu!
Depois de catorze ou quinze meses de guerra intensa; depois de termos
percorrido quase todas as matas da Guiné-Bissau a pé; depois de tanta fome e
sede; depois de tanto padecimento, ir agora para Bissau fazer guardas, quando
se estava num lugar calmo, correndo embora alguns perigos… Não! Ninguém queria
ir. Por outro lado, já se tinham criado laços de amizade, que iriam,
porventura, durar toda a vida. O capitão retirou-se. Passado algum tempo o amanuense
diz-me para me dirigir à Secretaria. Estremeci. Fez-me lembrar a Academia
Militar. Peço licença e entro. Sem introito, o primeiro-sargento avisa-me: «Foste tu um dos escolhidos para ir fazer
guardas em Bissau. Prepara as tuas coisas. Só voltas a integrar a Companhia
quando esta embarcar para a Metrópole.»
- E o Cândido, como reagiu?
- Eu disse-lhe: «Desculpe, meu primeiro, mas eu sou condutor auto; as guardas, que eu
saiba, são feitas por atiradores.» Ele, furioso, levanta-se com ímpeto da
cadeira, e lembra-me: «Ordens, são
ordens; não se discutem! Rapaz! Pega na trouxa e vai para onde te mandam!»
Fiquei sem jeito! Mas a minha fragilidade perante aquela máquina militar
saltava à vista. Eu era apenas um número. Com os colegas também não podia
contar. A solidariedade só existia nalguns casos; neste, concretamente, sabia
de antemão que não me ajudariam. Aliás, indo eu não iria um deles, como era
óbvio. O egoísmo é muito forte no povo português.
- Haveria alguma razão forte para o
afastarem?! – pergunta Henrique,
incrédulo, aborrecido com aquela atitude prepotente.
- Penso que sim. Havia na Companhia um
alferes, o segundo comandante, o tal militarista vaidoso de quem já te falei,
que não apreciava muito a minha presença. Antipatia parva e inexplicável,
porquanto nunca lhe fizera mal, nem lho podia fazer, mesmo se o quisesse. O meu
maior defeito a seus olhos era porventura o facto de eu não gostar da tropa, da
guerra, ou do que quer que fosse ligado à vida militar. Nem toda a gente pode
apreciar as mesmas coisas. Por outro lado, a minha modéstia, simplicidade,
desprendimento, representavam para ele uma ofensa, uma afronta. Para teres uma
ideia do que te acabo de dizer, ouve esta: um dia os cabos especialistas resolveram
promover um copioso almoço de confraternização, uma festa convívio, entre todos
aqueles que possuíam especialidade. Contuboel, devido em parte à sua fisionomia
singela, revelava-se lugar propício a estas manifestações.
- Queriam, certamente, marcar a
diferença!
- Talvez; mas de qualquer maneira, não
havia espaço para todos. Convidaram os condutores, enfermeiros… e também os
furriéis, sargentos e oficiais. O almoço, por deferência do comandante, seria
servido na messe. As mesas estavam impecáveis: guardanapos em forma de flor – (as costas das mãos serviram-nos durante a
campanha de guardanapos) – copos de vidro limpíssimos, pratos de vários
tamanhos e talheres a condizer. Há quantos meses eu não comia num prato! As
inestéticas, ferrugentas e velhas marmitas de lata ocupavam indevidamente o seu
lugar. Que trabalheira elas davam para as limparmos: esfrega, esfrega, com
areia, com sabão, e o esforço era quase em vão! O pitéu já cheirava; os
aperitivos serviam-se numa mesa à parte. Quando me aproximo, a fim de me
sentar, pergunta maliciosamente o militarão: «Que está aqui a fazer aquele soldado? Não me digam que tem uma especialidade?!»
- Imperdoável! O indivíduo era
grosseiro. Como reagiu? – perguntou
Henrique, de punhos cerrados, simulando uma agressão física.
- Timorato como era, tomei uma atitude
que ainda hoje não sei se foi a mais correta.
- Insultou-o?
- Vontade não me faltou; pura e
simplesmente ignorei o que tinha ouvido, engoli o vexame, recuei dois passos e
sorrateiramente saí porta fora. Pensas que algum dos meus camaradas me foi
procurar? Nem um!
- Quer a minha opinião? Fez muitíssimo
bem. O que o meu amigo desejava era ver o tempo a passar. Se brigasse com ele,
ou ripostasse, seria pela certa castigado.
- Não tinha, nessa ocasião, nem tenho
agora, quaisquer dúvidas que isso me aconteceria. O pobre do soldado nunca
levava a melhor. Ainda pensei, simbolicamente, esmagar-lhe a cabeça da sua
própria sombra, mas até isso não pude fazer, pois ele protegia-a como o
avarento protege o seu tesouro. Este era um forte motivo para eu desejar agora
a partida. Mais guarda, menos guarda, ninguém morreria por isso, e as armas
reais não me cairiam aos pés. Em Bissau teria a possibilidade de obter a carta
de condução para profissionais, que um dia mais tarde me poderia vir a ser útil
– nunca se sabe o que o futuro nos reserva. Vale mais prevenir do que remediar,
como diz o ditado. Apesar de ter conduzido pouquíssimo, o “bichinho” já tinha nascido, sobretudo com a cativante condução do
jipe.
- Como se chamava o outro soldado que
foi consigo?
- Comigo para Bissau seguiu também o
Vinhais, atirador. Bom moço. Não tinha com ele grandes afinidades, pois
tratava-se de um jovem quase analfabeto, embora de bacoco nada tivesse. O
regime corporativista, superiormente comandado pelo hediondo Salazar, não deu
grandes hipóteses de estudo a esses rapazes; a escola primária ficava longe dos
lugares onde eles residiam. Por outro lado, aos seis, sete anos, já andavam a
guardar gado no monte. Não havia estímulos, nem condições materiais, para os
que trabalhavam na agricultura, na pastorícia, na pesca... Agora começa-se a fazer
alguma coisa, vamos lá ver se conseguimos. Demo-nos sempre muito bem até ao dia
em que fizemos o espólio em Tomar; depois disso nunca mais nos vimos. Ainda na
região de Contuboel assisti a uma cena deveras interessante e elucidativa.
- Estou em pulgas para ouvi-lo – interrompe Henrique, há muito calado.
- Escuta: numa camioneta do nosso
exército vinha uma data de negros com trajes de cerimónia (panos de cores garridas) e no meio deles uma figura feminina
coberta dos pés à cabeça com um longo pano branco. Por mera curiosidade,
perguntei o que se estava a passar e alguém me elucidou de que a bajuda, pois
de uma virgem se tratava, tinha sido comprada aos pais por um dos chefes
tribais da zona – um homem de idade avançada e já com várias mulheres e filhos!
- Fazerem isso à cachopa – não se
admite!
- Espera: o velho pagara por ela umas
quantas cabeças de gado! Sem o querer, fiquei horrorizado e com pena da
catraia. Que raio de costumes eles albergavam no seu seio! Mas, graças a este
acontecimento, fiquei a saber que as mulheres nesta parte de África não
possuíam quaisquer direitos: compravam-se e vendiam-se como qualquer mercadoria
– uma questão de preço! Elas, vítimas do sistema, nem sequer se queixavam: achavam
tal coisa natural!
- Os movimentos de libertação da mulher
não teriam ali nenhuma hipótese de êxito.
- Também acho. Mas repara que a maior
parte das mulheres portuguesas também não desfrutavam, por esse tempo, de
grandes liberdades. Os pais escolhiam o noivo para a filha, ou rejeitavam o que
ela elegesse, caso não lhes agradasse. Não tinham rédea solta, como agora,
podes crer. Não podiam sair à noite, só se fossem ver um filme, uma peça de
teatro, um concerto, uma revista, mas acompanhadas pelos pais ou irmãos mais
velhos, sempre bem vigiadas, porque a ausência da virgindade na rapariga era um
anátema quase para toda a vida. Em nossos dias, salvo raras exceções, nenhuma
moça vai virgem para o casamento. E mais: já consta que alguns namorados,
sobretudo na cidade, se juntam para evitarem as ciclópicas despesas da boda. Os
costumes estão a mudar em todo o lado. E com a emigração forçada, para França e
outros países da Europa, os portugueses vão adquirindo outros hábitos, outras
maneiras de viver.
- Ai eu, quero-me casar à antiga. A
noiva vestida de branco, o noivo com o seu fato preto ou azul, uma cerimónia
inesquecível. As fotos para o álbum, para depois mostrar aos filhos e aos
netos, que lindo!
- Eu não me casarei na igreja católica,
ou outra, devido a não ser religioso, mas casar-me-ei na Conservatória do
Registo Civil. Ao fim, e ao cabo, tudo vai dar ao mesmo. Viver juntos, sem
casamento, não concordo. No entanto, nem tu nem eu podemos alterar seja o que
for; somos demasiado insignificantes para impedir essas coisas. Dizem por aí
que é progresso. Talvez seja, mas eu nunca vou mudar. Se um homem gosta a sério
de uma mulher, tem confiança nela, quer que ela seja a mãe dos seus filhos,
deve casar com ela, provar-lhe que não foge às responsabilidades. O matrimónio
é um acontecimento muito sério, que obriga por vezes a pequenos e grandes
sacrifícios. Eu penso que vou ser um bom marido, mas também muito dependerá da
esposa; se ela for meiga, compreensiva, etc., tudo dará certo. Enfim, o
destino, e os deuses, antigos e menos antigos, saberão guiar-nos no nosso
caminhar.
- Caro Cândido: esta conversa,
interessantíssima, levar-nos-ia longe, mas o tempo esgotou-se. O relógio não
para e nós temos de ir andando.
- Bem, então até à próxima. A seguir
falar-te-ei de Bissau, uma cidade mais insignificante do que qualquer vila
portuguesa.
*
20.º Capítulo
BISSAU
A narrativa estava praticamente no
fim. Mas o tema, a guerra colonial, daria ainda pano para mangas, não só a
estes dois amigos, mas também a jornalistas, escritores, sociólogos… Vamos
então aproximar-nos e escutar a conversa dos dois:
- Finalmente em Bissau, amigo Henrique.
Na capital da então província portuguesa da Guiné encontrei pessoas do meu
torrão paterno, que ali viviam havia décadas. Dedicavam-se ao comércio: exploravam
lojas de roupas, bares, restaurantes, cervejarias… Nesses anos, e devido em
parte à guerra colonial, o negócio estava assaz próspero.
- Esses conflitos armados trazem
vantagens para alguns…
- É verdade. Houve muita gente que
medrou à custa do sangue do soldado. Mas, enfim! Satisfeitíssimas por as ter
visitado, logo nesse dia me obrigaram a prometer-lhes que iria almoçar com elas
todos os fins-de-semana enquanto não embarcasse para a metrópole. Acedi, com
relutância, ao convite, mas a minha ingénita timidez deixar-me-ia ficar mal.
Poucas vezes cumpri a minha palavra, e quando ia arranjava sempre uma desculpa
pouco convincente para não ir no domingo seguinte. Preferia comer, quando tinha
uma folga, e duas notas de vinte mil réis no bolso, naqueles restaurantes
modestos: um bife com batatas fritas e uma garrafinha de vinho verde de sete
decilitros e meio, só para mim!
- E conseguia bebê-la toda? – pergunta Henrique, pasmado, mas com um
sorriso zombeteiro nos lábios.
- Até a escorropichava! Que é isso, em
África? Com aquele calor não havia líquido que chegasse. Tirei, como tinha
planeado, a carta para condutores profissionais (pesados e ligeiros), dei uns chutos na bola, apenas futebol de
salão, muito em voga na altura, dando direito a taça no final do torneio, e fui
aguardando pacientemente, como um eremita, que a roda do tempo rodasse e
cumprisse a sua obrigação. Certo dia recebi uma série de epístolas, já
atrasadas, entre as quais uma da madrinha Fernanda.
- Já sei que a vai ler – diz Henrique, satisfeito, e já familiarizado
com as cartas da mocinha.
- Acertaste. Ouve, então:
Querido afilhado
Faço votos para que ao
receber esta esteja com boa disposição e saúde; são esses os meus sinceros
desejos. Compreendo o seu
estado de ânimo ao ver aproximar-se o natal e estar longe da família, por isso
perdoo-lhe tudo o que me disse; realmente eu, pode crer, não posso guardar
rancor a ninguém, só se me ofendem muito, essa pessoa para mim é-me indiferente,
mas a si como podia ficar zangada? Quando lhe escrevi, para ser franca, tinha
uma ideia que o meu afilhado me responderia. Aí deve estar um tempo formidável;
aqui está um frio de rachar, nem calcula; os montes estão brancos em virtude da
neve que caiu, parece-se com a Suíça, só que nesse país pode-se esquiar e aqui
não, apesar de a neve atingir muitos centímetros de altura; não solidifica e as
pessoas ao andarem enterram os pés. A neve é muito bonita, de uma maviosa
beleza, e hoje então os montes estão completamente brancos, vejo-os da minha
janela, até apetece sonhar, mas é fria e causa-me arrepios pelo corpo todo.
Espero que tivesse passado, na
companhia de todos os seus colegas, um natal muito feliz, eu passei-o bem; só
que nesse dia não fui ao baile que aqui houve. Na passagem do ano, sim: voltei
para casa às quatro da manhã, quase mesmo no fim. Acompanharam-me familiares e
só dancei com rapazes da minha confiança. Tenho quase a certeza que vocês
também o tiveram, pois aqueles que daí já voltaram disseram-me que no fim do
ano faziam um baile. Por isso é que estou a falar-lhe no assunto. Também desde
o Carnaval passado que não ia, não é
que não os haja, mas não sou muito amante deles – prefiro o cinema. Tenha muito
cuidado, pois disseram-me que as coisas aí, e em Angola e Moçambique estão a
correr mal, peço a Deus que tudo acabe depressa e que não lhe aconteça nada de
grave. Vou terminar, embora tenha imensas coisas para lhe dizer, mas tenho uma
forte dor de cabeça, até parece que não posso com ela. Receba abraços muito
apertados da madrinha amiga, e nada de zangas, entendido?
Fernanda
*
- Cada vez me convenço mais de que essa
rapariga fazia projetos a seu respeito. Que lhe escreveu, se é que posso saber,
que a magoou tanto?
- Bem, passou-me pela cabeça acabar com
este pseudo e absurdo namoro. Estava a tornar-se perigosa, ou seja, era a mais
culta, das mais bonitas (pelo menos na
fotografia) e as suas cartas estavam a tornar-se necessárias, algo que se espera
com ansiedade. Não podia, nem queria, avançar mais – tinha de tomar uma
decisão.
- Compreendo. Mas não pensa que estava
a ser cobarde? Se começou a gostar dela e ela não estava comprometida com
outro, qual a razão desse sentimento negativo? Temia que quando ela o visse em
pessoa ficasse desiludida?
- Se me prometeres que não contas a
ninguém eu revelo-te um segredo que tenho guardado religiosamente. Prometes?
- Prometo solenemente… Se quiser, até
vou buscar a bíblia para jurar sobre ela – diz
o rapaz, fazendo um gesto teatral.
- Amigo Henrique: não encaras nada com
seriedade. Apesar disso, e porque trago este peso há muitos anos, vou confiar
em ti. Eis a confissão: a fotografia que mandei à Fernanda tinha-a pedido a um camarada
amigo, daqueles que mais pareciam atores dos anos quarenta e cinquenta, como Cari
Grant, Charlton Heston, Paul Newman… daí ela estar tão interessada. Se lhe
tivesse enviado uma foto das minhas provavelmente deixaria de me escrever!
- Cândido, Cândido! Isso não se faz; é
indigno da sua pessoa. E também fez isso com as outras madrinhas? Olhe que desceu
muito na minha consideração, praticou um ato muito vil e desumano.
- Não fiz isso com mais nenhuma, e olha
que sofri muito por ter feito essa canalhice; os remorsos têm-me perseguido
pela vida fora. Ela não o merecia. Penso até que era delas todas a mais
sincera, a mais empenhada em ajudar-me a passar aqueles maus momentos.
Portei-me como um vilão.
- Valha ao menos o seu arrependimento…
- admitiu Henrique, compreensivo.
*
A história estava quase no seu
final. Cândido encontrava-se em Bissau à espera que a Companhia regressasse de
Contuboel para embarcarem rumo a Portugal. Mas ouçamos a sua conversa com Henrique.
- Caro amigo: episódios dignos de
registo, alguns mesmo insólitos, aconteceram na capital da Guiné. Logo a seguir
à minha chegada visitei a cidade, que ainda não conhecia (o hospital, onde já estivera, ficava nos arredores). As montras, decoradas
com requinte, com arte, iluminadas e recheadas de tudo quanto era bonito, reclamavam
a minha atenção: camisas de seda, colchas de Macau, louças chinesas, com várias
cores, deixavam-me perplexo. Ficava boquiaberto com tanta coisa bela, apetecível.
E pensava nos militares que se encontravam no mato, na mortífera selva, a matar
e a morrer, privados de tudo aquilo: maldita guerra! Tão admirado e fascinado
andava a espiolhar as vitrinas que não me apercebi da presença de um poste da
iluminação pública e assim fui contra ele de forma absurda e ridícula. Vi as
estrelas todas do firmamento, e mais veria se as houvesse! «Saloio» - resmunguei, insultando-me a
mim próprio.
- Isso acontece… - diz o moço, com comiseração.
- Um dia estava sentado num banco do
jardim, ali perto do Palácio do Governador, lendo uma revista, quando se
aproxima uma mulata. Mete conversa: «Preciso
urgentemente de dinheiro, não te apetece?» Como era uma mulher nova, na
casa dos trinta anos, fui. Descemos uma rua de terra batida e ladeada por
ramagens. Pelo caminho foi-me dizendo que vivia com um cabo-verdiano: «O meu homem trabalha nas docas, só vem à noitinha.»
Ao fundo da rua avistavam-se dezenas de barracas, como as que agora se veem um
pouco por todo o lado, neste país de brandos costumes e um pouco desleixado. De
repente para e pede-me: «Fica aqui;
quando eu te fizer sinal entras.» Aguardei pacientemente, já com algum
receio, mas eis que depois de uns minutos de espera ela me avisa por gestos de
que posso avançar. Entrei com pés de lã e qual não foi o meu espanto ao ver
junto da cama da jovem mulher um bercinho com um bebé lá dentro. Choramingava.
Pensei: «deve ser por causa da criança,
para a alimentar, que ela se anda a prostituir.» Hesitei. Contudo, e tendo
em conta que já ali me encontrava, comecei a despir-me. Não sei o que se passou
comigo. Comecei a suar, um suor frio, afogueado, e não tive coragem de levar
avante a intenção. Então, tirei do bolso das calças umas moedas e dei-lhas: «Não lhe posso dar mais!» Retirei-me
constrangido, destroçado, com vergonha de mim. O mundo estava a precisar de uma
mudança.
- O Cândido tem um grande coração…
- O meu nome figurava inúmeras vezes na
escala de serviços: sentinelas, guardas, faxinas, tudo! De condução, a minha
especialidade, nada! Quando me encontrava de guarda ao quartel, sobretudo à
noite, com uma vontade danada de passar pelas brasas, ouvia o ribombar dos
canhões, o rebentamento de minas, os tiroteios mais ou menos duradouros, e
apreciava as línguas de fogo penetrando pelo céu dentro. Que pena sentia dos
meus camaradas; como eles sofriam; e eu, impotente, não os podia sequer
confortar com uma palavra amiga. Fui escalado certo dia para prestar serviço no
Hospital Militar e lá, mais uma vez, tive a perceção correta e profunda do que
se passava: quantos mortos e quantos feridos chegavam a todo o momento! E na
metrópole afirmava-se, cambada de ignorantes, que morria mais gente nas
estradas do que na guerra! Cretinos! Os helicópteros não tinham um segundo de
descanso: chegavam e partiam, ininterruptamente! Os estropiados gritavam com
desespero, até metiam dó; os mortos, esses, como que dormitavam silenciosamente.
E eu, ali ao lado deles, metralhadora na mão, apático, como que a vigiá-los!
Infelizes criaturas. Seriam depois conduzidos para a morgue, e aí eram
colocados em urnas de chumbo. Oportunamente, a Força Aérea, ou a Marinha,
trasladaria esses cadáveres para a sua terra de nascimento.
- Terrível! Pelo que você passou, amigo
Cândido. Até me arrepio todo.
- É verdade... o que passei! Naquele
estabelecimento hospitalar também se encontravam alguns prisioneiros a receberem
tratamento; entre eles, um cubano, um súbdito de Fidel. Lutara ao lado dos
guerrilheiros do PAIGC e como «quem anda
à chuva molha-se», chegou o seu dia de azar. O rosto denunciava uma
expressão mal contida de resignação e de sofrimento controlado. Valia-lhe,
certamente, ao contrário de mim, a convicção inabalável, o pensar que estava
lutando por uma causa justa, pela libertação de um povo. Eu esperava ansiosamente,
com impaciência, o dia do regresso; ele aguardava com expectativa e esperança o
dia da independência da Guiné-Bissau. Os nossos olhares cruzaram-se e, por mais
incrível que isso te pareça, não o considerei meu inimigo! Em Bissau a vida
quotidiana decorria normalmente. Muito comércio, vida noturna, sala de cinema (a única em toda a colónia), uma filial
do Banco Ultramarino. Sabias, Henrique, que as notas e as moedas lá não eram
iguais às da metrópole e não tinham aceitação em outras partes do país?!
- Não acredito! Isso não faz sentido.
- Podes crer; não minto. E sabes como
os guineenses menos instruídos lhe chamavam? Patacão! «Manga de patacão» significava ter muito dinheiro.
- Com essa designação existiu uma moeda
antiga, do reinado de Dom João III, cujo valor era dez réis – recordou
Henrique, a fim de mostrar os seus conhecimentos históricos e de numismática.
- Por aí podes imaginar como a evolução
se processou nesse território.
- E quando os militares vinham embora,
o que faziam a esse «patacão»?
- Havia sempre alguém – especuladores –,
que o recebia em troca de escudos da metrópole. Por exemplo: davam cinquenta ou
sessenta escudos por cem da Guiné!
- E qual era o seu valor real?
- Não tenho a certeza, mas pelo menos
valia oitenta escudos. Além disso, esse negócio era ilegal. Fazia-se por dois
motivos: o primeiro consistia na rapidez - toma lá dá cá; o segundo motivo
tinha a ver com a ignorância – muitos soldados nunca tinham entrado num Banco,
não sabiam preencher um impresso! Esse dinheiro ainda circulou mesmo depois da
independência!
- Não me diga?! – exclama Henrique.
- É verdade. O PAIGC não tinha na
altura condições para emitir moeda e notas; assim, durante algum tempo, aproveitou
o que existia – claro que apunha nas notas um carimbo da nova República para as
tornar legais.
- Essa não sabia eu; andamos sempre a
aprender. Esse tema daria pano para mangas, mas…
- Sim, esses assuntos terão de ser
tratados com outro tempo, e outro rigor técnico e científico.
- Dava uma interessante tese de
licenciatura na área da Economia e Finanças.
- Pode ser que um dia aproveitem a
ideia. Posso continuar a minha história?
- Faça favor…
- Do Portugal europeu iam cantores e
cantoras atuar. Mas não iam ao mato – ficavam-se pela cidade. Eram grupos
jovens, recentemente criados, que desejavam dar-se a conhecer. Num desses
conjuntos cantava o Paulo de Carvalho, agora bem conhecido. Até dava a
impressão de que a colónia não estava em guerra. Somente os para-quedistas,
fuzileiros, comandos, irmãos inimigos de há muito, uns julgando-se melhor do
que os outros, de vez, em quando, davam um ar da sua graça: travavam-se de
razões e as fascinantes montras dos estabelecimentos comerciais ficavam reduzidas
a cisco, a estilhaços, a fragmentos! Pareciam verdadeiros adversários! Atuavam
como tal. Suponho que essas tropas de escol, a nata das forças armadas portuguesas,
a quinta-essência, queriam exibir, perante a população civil, a sua capacidade,
a sua destreza. Eram os bons! Nós, comparados com eles, não passávamos de garotos
fardados, gente de segunda categoria. Eles sim, tinham treinos adequados,
comiam bem, envergavam fardas bem-feitas e de bom tecido, possuíam armamento
sofisticado. Eram forças especiais, tropa rica.
- Ainda hoje deve ser assim – arrisca Henrique.
- E há de ser sempre enquanto houver
exércitos, julgo eu. Prossigamos: a sua prosápia ganhara notoriedade. Até no
andar e vestir de nós se distinguiam: peito para fora, bem constituídos, davam
logo nas vistas. Nós, mal alimentados, fardas grosseiras, de fabrico duvidoso, esqueléticos
a maior parte, alguns gordos, parecíamos mais uma milícia da segunda guerra
mundial!
- «Carne para canhão», como disseram
aquelas mulheres do Porto! – remata
Henrique, desejando acabar com aquela lengalenga.
*
- O tempo, no seu passo vagaroso, desfalecia.
Aproveitei esses meses de Bissau para visitar os arredores (sítios havia, porém, onde seria impossível
ser bem recebido: por exemplo, nos bairros degradados, onde o crime e a miséria
reinavam), e tirar algumas fotografias para a posteridade, para mais tarde
recordar, como se costuma dizer. Talvez um dia te mostre o meu álbum.
- Gostava imenso de vê-las.
- Brinquei, sem qualquer tipo de
malícia, com as raparigas de cor: as poucas brancas que residiam na cidade
estavam sob controlo absoluto – quer dos pais, dos irmãos, dos namorados… Elas
também não davam confiança a simples praças – só de furriel para cima! Ainda
tentei catrapiscar uma, mas ela rejeitou com severidade excessiva a minha
humilde corte: «O senhor não tem mais
nada para fazer senão andar atrás de mim como um reles cachorro, um rafeiro?
Quer que vá fazer queixa de si ao seu comandante?»
- Era má, a miúda. Como reagiu à
ameaça?
- Fiquei siderado. Se ali houvera um
abismo, um fundo buraco provocado por um meteorito, não hesitaria uma fração de
segundo que fosse: atirar-me-ia! «Perdoe,
menina» - disse-lhe eu, a gaguejar, com humildade e temeroso. Compreendi
então que nada valia, nem um leve sorriso de uma jovem branca!
- É óbvio: pertencia a outro estrato
social; «cada macaco no seu galho»!
Se fosse agora, com os seus estudos, o seu emprego, as suas perspetivas futuras…
E vocês estavam lá para os defender… Ingratos! – comenta Henrique, indignado com a atitude da rapariga.
- Nem tanto… Nós fomos defender, penso
eu, a soberania nacional, não as pessoas; mesmo que na Guiné não houvesse um
único branco, um português do continente europeu, nós iríamos… Para Salazar o
mais importante era o Império!
- Depois de Deus – corroborou Henrique.
- Com o divino estava sempre bem, pois
tinha a Igreja de Roma do seu lado, o cardeal Cerejeira…
- O meu amigo não lhes perdoa!
- Não sou juiz, nem carrasco; apenas
senti na minha pele a diferença entre ser ou não ser pessoa. O regime nunca nos
ligou, tratou-nos como farrapos, como coisas. Que culpa tinha eu de ser pobre e
ser soldado? Não lhes perdoo nem deixo de perdoar: onde estão os meus poderes,
os meus conhecimentos, para os julgar, para os levar ao tribunal da História?
- Há azedume nas suas palavras…
- Não sou rancoroso, meu amigo. Também
não sou santo, nem candidato a tal. Lamento apenas tudo aquilo que vivi e
observei na ex-colónia durante quase dois anos. Há quem afirme que Deus de
Israel, ou dos judeus, quando criou o mundo, estava a pensar em todos os seres
vivos; é assim que consta na Bíblia, no livro dos livros…
- Isso foi há tanto tempo! Já se
esqueceram.
- Terá de ser relembrado.
*
Nesse curto e, simultaneamente, longo espaço de tempo aprendi igualmente
a olhar a paz em tempo de guerra! Frequentei, com certa regularidade, o
mercado, porque gostava de assistir à chegada daquelas mulheres e homens com
uma espécie de cabaças, ou açafates, à cabeça, transportando mancarra (conhecida também por alcagoita ou amendoim),
mandioca, ananás, batata-doce, bananas, laranjas, cocos, manga, e outros frutos
da Guiné. Maçãs, peras, dióspiros, nêsperas, ameixas, cerejas, pêssegos, nozes,
figos, etc., parece-me que não havia por esses lados – nunca vi. Julgo que as
árvores que os produzem não se adaptam ao clima: quente e húmido. Vendia-se
também panos garridos, estatuetas, peles de jiboia…, um pouco de tudo! Aquele
movimento constante, o cenário, os cheiros, atraíam-me, fascinavam-me! As mil cores,
a linguagem variegada, as jovens mulheres carregadas de roncos, ou seja, pulseiras,
e outros objetos decorativos, feitos por elas próprias, ou por artesãos,
artistas negros, guineenses, tornavam aquele local diferente de tudo que tinha
visto até então. Sabes que na Guiné se usava muito a expressão: «manga de ronco, pessoal»!
- Manga não é um fruto?
- Sim; mas pelo facto de existir em
grande quantidade, tornou-se sinónimo de «muito».
Quase todas as etnias, sobretudo as mais próximas da capital, seguramente
teriam, ali no mercado, um seu representante. A África, apesar de ser um
continente onde a guerra, a doença e a fome coabitam, encanta o homem europeu.
Ainda hoje, passados tantos anos, sinto uma grande nostalgia, algo indecifrável,
um não sei quê.
- Saudade não é?!
- Tenho a certeza que não! O que lá
passei, o que lá sofri e vi sofrer, não é passível desse estreme e melancólico sentimento.
- Gostaria de lá voltar?
- Não! Nem que me dessem uma fortuna.
Isso teria um efeito nefasto na minha vida, era o mesmo que destruir a minha
memória. Contudo, guardo algumas recordações. Por exemplo: as mulheres, a tomar
banho nos tanques e rios. Corpos nus, isentas de preconceitos, mas prenhes de
pudor; os homens que sorriam e as crianças que brincavam, sãs, ignorando o
perigo que à sua volta existia e a miséria e o terror que com elas se mesclavam;
as bajudas, ingénuas, mostrando embevecidas (e deixando mexer) os seus rijos seios. A noite africana, com o seu
mistério e o seu encantamento; os braços de mar, ladeados por selvas espessas e
infindas; os pantanais, mais traiçoeiros do que Judas bíblico; as clareiras (geometricamente
circulares); os estranhos animais e as árvores gigantescas, as frutas (bananas enormes, de uma cor entre o vermelho
e o roxo, e sabor delicioso). Tudo! Que pena não haver paz em África. Todos
ganhariam. Nesse continente maravilhoso e potencialmente rico poderiam
coexistir milhões e milhões de seres humanos: brancos, negros, mestiços… Que
importa a cor da pele? Sem guerra, sem doenças, a África, pode ser um paraíso.
«Ó povos de África: atirai fora as armas,
os ódios, e abraçai-vos fraternalmente.»
- Não vai ser fácil alcançar-se esse
desiderato… Você mesmo me disse que os negros são belicosos, pouco amantes da harmonia,
da concórdia. Mas passemos a outro assunto: a sua madrinha Fernanda, rompeu com
ela?
- Não se pode acabar assim, do pé para
a mão, com uma situação destas. Ainda nos continuamos a escrever por mais algum
tempo. As nossas cartas já não eram bem de madrinha para afilhado, exagerava as
minhas emoções na esperança de que ela me deixasse de escrever; mas não, parece
que até estava a gostar, tornou-se um desafio assaz perigoso.
- E como acabou?
- Decidi-me depois da carta que te vou
ler:
Cândido
Saúde e boa disposição; são esses os meus sinceros desejos. Recebi a
sua carta com a qual fiquei bastante admirada (não era para menos!) Realmente
não penso que seja má ideia arranjar trabalho na Guiné, e isso de se querer
casar e depois levar para aí a esposa também está certo, não concebo o
casamento em que o marido tem de estar separado da mulher, ora como me pergunta
se eu não me importava de ir viver, depois de casada, para África, a vida aí dá
uma grande cambalhota e não se pode
dizer «desta água não beberei». O casamento, penso, é o ato mais importante
que uma pessoa pratica, para isso deve refletir muito e ambos se devem conhecer
perfeitamente, ora eu não o conheço senão por cartas, não quer dizer que seja mau
rapaz, não sinta por si um profundo carinho, mas não o conheço pessoalmente,
para mim representa muito mais o espírito da pessoa do que o físico. Ambos
somos ainda novos, temos muitos anos à nossa frente, devemos encontrar-nos,
conhecermo-nos melhor, e depois tomar a decisão que os nossos corações acharem
a mais acertada. Acha bem? Receba muitos abraços da
Fernanda
- A partir daqui abriu uma brecha na
muralha, rompeu o dique, adquiriu o estatuto de namorada - sentencia Henrique, de semblante carregado. - Não se portou bem,
meu caro. Se não tencionava casar com ela, porque fez nascer e alimentou esse
romance, tipo Simão e Teresa? Não seria obrigado a isso. Não me diga que o fez
como teste, para verificar se as suas cartas surtiam efeito nos frágeis corações
das jovens mulheres. Esse comportamento é mesmo de macho latino; queria ser um
colecionador de almas femininas!
- Disse-to há pouco: a nossa situação, quase
tudo justificava; eu apenas me aproveitei de um pequenito dom, que era o de
saber escrever razoavelmente. Outros aproveitam-se do físico. De qualquer modo,
jamais lhes toquei; nem sequer cheguei a conhecê-las fisicamente. Se mal lhes
fiz, esse mal foi passageiro, efémero. Muitas delas, ou todas, já estarão
casadas agora. Tenho remorsos, mas o meu crime não é assim tão grande, tão
escabroso.
- Está redondamente enganado, meu caro
Cândido; os crimes de coração, sentimentais, não têm tamanho, não se podem
medir, e jamais se perdoam. Você desencadeou nelas uma onda de expectativas,
uma maré de sonhos, uma primavera de emoções, uma fogueira que jamais se extinguirá.
- Podes ter razão, mas exageras. Achas,
meu amigo, que podia casar com elas todas?! Em relação à Fernanda, quando
cheguei a Lisboa ainda lhe escrevi uma longa carta; carta essa que não fiz
seguir – tive medo das consequências!
- Ainda conserva essa missiva?
- Sim. Guardei-a e de vez, em quando,
volto a lê-la.
- Se a tiver consigo quer ter a bondade
de ma ler?
- Não a tenho aqui comigo, mas no
próximo encontro trago-a.
*
Passaram-se uns dias. Cândido não
esqueceu a promessa que fizera. Naquela tarde dirigiu-se ao Café, ao encontro
habitual. Henrique já lá estava, sentado, talvez meditando na vida. Quando viu
o amigo, perguntou-lhe:
- Não se esqueceu da carta, pois não?!
- De maneira nenhuma. O prometido é
devido. Escuta:
Fernanda
Nem sei como começar esta
carta. Sinto imensos remorsos por ter criado em ti a ilusão do amor, esse
sentimento tão nobre. Peço-te que me desculpes, se puderes; perdoa a este ser
que não soube respeitar uma jovem sublime, grandiosa… Tudo que te fiz, merece
castigo, reprovação. Até a fotografia que te enviei não me pertence, mas sim a
um camarada meu da mesma Companhia. Sou um tipo banal, sem o mínimo de interesse.
Tive receio que não respondesses depois de veres a minha cara – daí ter feito
isso! Sou um monstro sem escrúpulos, nunca poderei aspirar a ti, apesar de todo
este arrependimento sincero. Jamais te esquecerei e podes crer que idolatrarei
sempre a tua memória; serás uma espécie de santa de altar para mim. Se fosse poeta cantar-te-ia em magoados versos.
Mas não: sou apenas um rude camponês da palavra. Desejo que encontres o homem
ideal, que mereça o teu carinho e saiba respeitar-te com dignidade. Eu não me
casarei; arrastarei a minha existência, tentando penitenciar-me do abominável
pecado que cometi em relação à tua doce pessoa. Mesmo que contigo eventualmente
viesse um dia a casar formaríamos um lar sob o signo da desconfiança. Tu verias
em mim o outro, e eu próprio considerar-me-ia a segunda escolha! Teria toda a
vida ciúmes de um homem retrato! O matrimónio tem de nascer de um ato espontâneo,
sem sombras, sem mágoas; o nosso, caso acontecesse, era o produto de uma
fraude, de uma brincadeira de péssimo gosto. Em dias de mau humor atiraríamos,
um ao outro, as pedras que guardáramos ciosamente no recôndito baú.
Adeus meu anjo, que os deuses e os
fados te sejam favoráveis, e que o teu caminhar pela vida se revista de suaves
contornos, e que as penas que vieres a sofrer sejam plumas de avezinha, sem
peso e sem dor.
Cândido
- Comovente. Devia tê-la feito seguir,
ela perdoar-lhe-ia de certeza. Enfim, talvez o destino assim o tivesse determinado.
Uma das coisas de que ainda não falou, não sei se voluntariamente, se por
esquecimento, foi do papel que desempenharam o Movimento Nacional Feminino e a
Cruz Vermelha Portuguesa. Pensa que foram importantes para vocês?
- Essas duas instituições tinham caráter
distinto, embora na ocasião não as distinguíssemos muito bem. O MNF foi criado
pelas mulheres salazaristas para apoiarem o regime, mediante uma propaganda
assanhada e cínica, mas por vezes bem-sucedida. Este movimento extinguir-se-ia
logo que a guerra, ou o regime, terminassem. E foi assim, como bem sabes, que
aconteceu. Quanto à Cruz Vermelha é totalmente diferente. Trata-se de uma
instituição planetária, cujos membros, médicos e enfermeiros, sobretudo, procuram
socorrer os feridos aquando das sucessivas guerras que vão surgindo por esse
mundo fora. Que desejávamos nós, soldados, dessa gente? Apenas uma coisa: que
nos apoiassem materialmente, isto é, que nos mandassem aquilo que nós lhe pedíamos.
- Que lhes solicitavam, concretamente?
- Falo pela minha pessoa: revistas,
livros de estudo, um calção de banho, um álbum para colocar as fotografias que
me iam oferecendo, uma pastinha para pôr as cartas. Bagatelas, mas que para mim
seriam importantíssimas, visto que não tinha dinheiro para as comprar e, mesmo
que o tivesse, no mato não existia estabelecimento onde adquiri-las.
- E recebeu tudo aquilo que solicitou
ao M.N.F. e à Cruz Vermelha?
- Não brinques comigo! As revistas que eu
recebia eram usadas, já tinham sido lidas e relidas, desatualizadíssimas, sem
qualquer interesse; os calções de banho não mos mandaram, alegando ultrapassar
a sua capacidade financeira; a pasta para cartas enviaram-na, mas era de
plástico reles – nem sequer cinco tostões valia; o álbum, pequenino e ruim!
Quanto aos livros de estudo, ouve esta: «Soldado
de Portugal – Sobre o seu pedido de livros de estudo enviado a esta Comissão,
vimos informá-lo que terá que se dirigir à Comissão Provincial do M.N.F. em Bissau, pois é essa Secção que
faz a distribuição destes livros na Guiné. Para facilitar os serviços e ter os
livros com mais brevidade, deverá pedir ao seu Comandante uma declaração
comprovando a necessidade do seu pedido. / Com os nossos melhores cumprimentos.
/ POR DEUS E PELA PÁTRIA. // Achas, meu caro amigo, que uma resposta destas
merece algum comentário? Para cúmulo do disparate, em todas as cartas constava
o aviso: «Este Serviço encerra durante os
meses de Agosto e Setembro para férias, e Novembro e Dezembro para tratar do
Natal do Soldado.» Já reparaste na hipocrisia deste aviso? E se nós, soldados,
também encerrássemos para férias? E o natal, que natal?! Suponho, não tenho bem
a certeza, que nessa noite andava eu aos tiros na mata! O mais certo era fazerem
a festinha num quartel da capital, com a tropa de elite, onde a televisão do
regime e alguns jornalistas divulgariam para todo o país a cerimónia natalícia.
- Diz-se que o M.N.F. destinava as
verbas recolhidas em nome dos soldados a outros fins, em proveito próprio. Que
pensa acerca disso?
- Não sei; não tenho elementos suficientes
que me permitam chegar a essa conclusão. Mas olha que se isso corresponder à
verdade não vi até hoje ninguém, nenhum governo democrático, condenar esse
vergonhoso acto. Será que não passou de um boato?! A Cruz Vermelha Portuguesa
sempre teve uma boa reputação, pese embora a sua ausência no interior da mata
africana. Talvez tenham estado em Angola e Moçambique; na Guiné-Bissau… não me
apercebi da sua presença, e se ela era necessária!
- Provavelmente não teriam quadros
suficientes, enfermeiros, médicos, maqueiros, ou quem sabe, o exército não lhe
tivesse solicitado ajuda…
- São pormenores que eu desconheço.
Apenas me limito a contar-te aquilo que eu próprio vi. Os historiadores terão de
investigar muito, colher imensa informação, para depois esclarecerem o público
em geral. A minha narrativa está quase no fim, tens tido muita paciência e
denodo até agora; se me permites vou dar as últimas pinceladas a ver se isto
termina com chave de ouro.
- Só lhe quero pedir, antes de
prosseguir o seu interessante relato, que me elucide sobre eventuais traumas
que os militares trouxeram de África. O que é que o Cândido pensa acerca disso?
- Já esperava essa pergunta. É comum e
vulgar ouvir-se dizer que os soldados que participaram na guerra colonial
ficaram com imensos traumas, com problemas nervosos; traumas, esses, que os
acompanharão toda a vida. Em parte pode-se considerar verdade; no entanto, isso
não significa de maneira nenhuma que todos os ex-combatentes tenham vindo
doentes de África, ou que sejam potenciais doentes por essa causa. Contam-se
por vezes histórias disparatadas acerca do nosso equilíbrio mental: saltamos da
cama quando ouvimos o rebentamento dos foguetes, qualquer pequerrucho ruído nos
faz atirar para o chão… Disparates! Teremos de separar as águas; e das duas,
uma: ou o soldado psicologicamente era forte, e resistiu; ou, então, sendo
fraco, não se aguentou nas canetas! Se esta última hipótese se verificou, só
lhe restava, e resta, o tratamento médico adequado. Terá de consultar
psicólogos, psiquiatras, quaisquer especialistas que o ajudem a superar a
crise, a terrível doença. Porque, meu amigo, doentes do sistema nervoso sempre
houve e haverá, e não é preciso ir combater nesta ou naquela guerra para se
sofrer desse mal. Quantas pessoas estão internadas no Hospital Júlio de Matos,
e noutros, vulgarmente conhecidos por loucos, malucos, ou tarados, que nunca
participaram num conflito armado?
- No entanto... – tenta defender-se Henrique.
- Claro que devido à tensão a que fomos
submetidos, aos padecimentos sofridos, à angústia, ao medo permanente, à
descaraterização da personalidade, ao vexame, admite-se que tenhamos sido
bastante afetados. Não obstante tudo isso, convenhamos que o sistema
neurológico do ser humano é por demais complexo para indivíduos sem
conhecimentos científicos no âmbito da psiquiatria estarem a especular, como se
fossem homens doutos nesse domínio. Contentemo-nos com esta simples conclusão:
há doentes que contraíram a doença na guerra colonial e outros que a obtiveram
noutro lado qualquer e por outras razões. Uns não são mais enfermos do que os
outros; contudo, poderemos e deveremos interrogar-nos sobre se aqueles que
adquiriram as suas maleitas na Guiné, Angola e Moçambique, as teriam arranjado
se lá não tivessem ido.
- Essa resposta, só os médicos a
poderão dar…
- Nem os médicos! Meu caro: felizmente
nunca tive problemas de maior no que diz respeito ao foro psicológico e
psiquiátrico; trouxe, porém, da Guiné, uma doença do aparelho digestivo e menos
quatro dentes. Herdei também um grande ódio às guerras e muita raiva àqueles
que as fomentam – e nós sabemos quem eles são, não sabemos?
- Se sabemos! E quanto ao alcoolismo?
- Bem, quanto a esse ponto, vício
provocado pelos traumas, de acordo com a voz do povo, tenho a dizer o seguinte:
Portugal foi desde tempos imemoriais berço de um grande número de borrachos;
isso, nada tem a ver, quanto a mim, com a guerra, antes dela já existia grande
consumo, é mais uma questão de educação, formação, costumes antigos e arreigados.
Nos meios rurais, onde se colhe em abundância o fruto da videira, o sumo da
uva, bebe-se, desde tenra idade, vinho e aguardente em consideráveis
quantidades, isso não é segredo para ninguém. No princípio deste século XX
ainda se dava, nas festas escolares, bebidas alcoólicas aos alunos, juntamente
com figos secos! Os traumas, meu amigo, acompanharam sempre o homem ao longo da
sua já cansada existência: são o medo do futuro, a insegurança, a não
afirmação, a ambição desmedida, o excesso ou falta de neurónios, as causas principais
desses males. Teremos de viver, por mais que isso nos custe, com eles.
- O Cândido argumenta filosoficamente
mas, a crer no que dizem por aí, o caso é deveras assustador: há muita, muita
gente, doente. Sem contar com os estropiados!
- As consequências de uma guerra são
sempre terríveis e imprevisíveis; no entanto, há muito patife que ganha com
elas! Depois, é nas guerras que se podem experimentar os novos aviões de
combate, fazem-se explodir bombas de grande potência, ensaiam-se táticas
modernas, enfim – põe-se em prática estudos e teorias bélicas, renovam-se os
arsenais.
- Até há quem afirme que é graças a
elas que a ciência avança! Não lhe parece, isso, algo absurdo?
- A guerra já é, em si, completamente
absurda; o ser humano devia tudo fazer para as evitar. Homens matando homens!
Que crueldade. O cúmulo da aberração. Quanto ao avanço da ciência… julgo que
não é necessário que existam conflitos para ela se desenvolver. Tem o seu
caminho, a sua estrada, que percorre diariamente. Mas deixemos este assunto,
pois sempre que o abordo causa-me arrepios na espinha, apetece-me bater nesses malandros
que passam o seu tempo a conceber novas armas para destruírem vidas e bens.
- Estou plenamente de acordo consigo; a
inteligência desses génios dever-se-ia concentrar na ciência do bem e não na
ciência do mal – remata Henrique, dando
ênfase às suas palavras.
*
- Finalmente apareceram os meus
camaradas da Companhia, que se encontravam aquartelados em Contuboel e
arredores. Trocamos alguns abraços, havia meses que não nos víamos, a amizade
perdurava. Brevemente teríamos dois anos de campanha. Informaram-me que partiríamos
dentro de quinze dias, no navio Uíge, o mesmo que nos levara para a Guiné-Bissau.
Agora só farra. Tudo tinha terminado. Parecia mentira! A guerra fora um mau
sonho, um pesadelo. Deixámos, eu e o colega Vinhais, o aquartelamento onde nos
encontrávamos e fomos para junto da nossa Companhia, para um quartel mesmo perto
do Cais de Bissau. E sabes quem lá estava?
- Como posso saber?!
- O famoso Marco Paulo! Soldado raso,
como eu! Estava constantemente a treinar a voz, sobretudo no balneário, mas
confesso-te uma coisa: não gostava de o ouvir. Chegou a cantar nalgumas festas
em Bissau.
- Marco Paulo! Quem diria! Pensava que
era mais novo, e que possuía mais habilitações literárias. Eu não desgosto dele
– penso que canta bem. Claro, não é de todas as canções... E o tal oficial,
incomodou-o de novo?!
- Não te esqueceste do biltre! O tal
alferes, nascido algures em uma tremenda noite de trovoada, tão forte que nem
Santa Bárbara lhe pôde valer, olhou-me com azedume, com frieza, com
hostilidade, com asco até, mas eu fiz de conta que não era comigo. Dentro de
pouco tempo deixaria de sentir a sua presença demoníaca. Em compensação, o
alferes Briosa abraçou-me, disse-me que sentira saudades; que me desejava sorte
na vida. E deu-me um bom conselho: «Estuda,
estuda muito, que vais longe!» O capitão mandou reunir a Companhia e
distribuiu louvores e medalhas a todos – a recompensa!
- Medalhas essas que se têm vendido na
feira da ladra!
- Julgo que sim; a minha medalha continua
em meu poder. Não é que tenha por ela uma grande estima, mas não gosto de me
desfazer daquilo que me oferecem. Além disso, entregou a cada soldado uma
caneta de tinta permanente, marca de prestígio, com alguma qualidade, e
quinhentos escudos «para comprarem
prendas para a família». Disse-nos que o nosso coronel, comandante do
Batalhão, se orgulhava muito de nós, que podíamos voltar de cabeça erguida,
tínhamos cumprido a nossa comissão com brio e honra: «O Comandante Militar atesta o seu apreço ao soldado condutor-auto,
Cândido Alves, pelos serviços prestados à Pátria na Província da Guiné.»
- Palavras ocas!
- Soam a tal… Antes de deixarmos
Bissau, rumo ao nosso muito amado país, ainda apanhei um valente susto: corriam
rumores de que um determinado quartel, bem perto da capital, estava a ser
atacado ferozmente pelo inimigo. O capitão, segundo constava, armado em
cavaleiro medieval, qual Lançarote ou Galaaz, não em busca do santo Graal, mas
talvez buscando frutuosas glórias, tinha-se oferecido, juntamente com toda a Companhia,
para ajudar a defender essa unidade. Medroso e prudente como era, suei frio.
Havia meses que não punha os pés no matagal e além disso já me encontrava
apenas a uns escassos dias do embarque. Só me faltava esta! Que mais me poderia
acontecer? «Que fossem os novos» -
monologuei, egoisticamente. Não sei explicar a razão, o certo é que não chegamos
a ir.
- Atoarda?!
- Talvez, quem o sabe?! Estivemos mais
tempo à espera do barco do que o previsto, mas eis que um belo dia, um dia que
vale por uma vida, um anjo chamado Uíge surge aos nossos olhos imponente e
majestoso, soberbo, altivo! Caramba! O que passáramos estava passado! O futuro
residia ali, a dois passos de nós!
As dificuldades vindouras seriam sempre insignificantes comparadas com
aquelas que protagonizáramos – adeus Guiné-Bissau!
*
A viagem de regresso decorreu sem incidentes: a bem dizer ninguém
enjoou, a comida a bordo soube melhor, cantou-se, bailou-se.
O oceano atlântico
reconciliara-se connosco! Alguns colegas não voltaram vivos, é certo, mas nós
tentámos esquecer, minimizar, essas contrariedades, essas perdas
insubstituíveis; que diabo, estávamos ali, dentro de um navio que nos levava
para junto dos familiares, da nossa terra, dos nossos sonhos…
Em Lisboa, junto ao cais, encontravam-se centenas e centenas de pessoas
à espera. Há quantas horas estariam ali, com a lágrima no canto do olho,
ansiosas por abraçar o seu ente querido: «Mãe,
minha querida mãe!»; «Meu filho, meu
adorado filho; pensei nunca mais abraçar-te!»; «Oh! meu irmão, que saudades!» // «Querida esposa, como é bom voltar a ver-te.»
Depois cada um seguia para o quartel fazer o espólio, despir a farda e
vestir a roupa civil. O futuro começava ali…
FIM
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ÍNDICE
Ficha Técnica
Obras do autor
Advertência
01.º capitulo: A caminho da tropa
02.º capítulo: CICA 1
03.º capítulo: Infantaria 6
04.º capítulo: Trem Auto
05.º capítulo: Academia Militar
06.º capítulo: Santa Margarida
07.º capítulo: Tomar (cinquenta e três)
08.º capítulo: Em vésperas da partida
09.º capítulo: O embarque
10.º capítulo: A viagem
11.º capítulo: Bolama
12.º capítulo: A mascote
13.º capítulo: A caminho de Cufar (oitenta e dois)
14.º capítulo: Terra da morte
15.º capítulo: Teixeira Pinto
16.º capítulo: Cacheu
17.º capítulo: As lavadeiras
18.º capítulo: A caminho de Contuboel
19.º capítulo: Contuboel
20.º capítulo: Bissau
O Autor
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Anexo --------------------------------
O AUTOR
Joaquim Agostinho da Rocha nasceu em Cevide, Cristóval, Melgaço. Até aos
seis anos residiu no lugar de nascimento; dos seis aos vinte viveu na sede do
concelho, altura em que ingressou no serviço militar, onde cumpriu três anos.
Após a disponibilidade ficou a morar em Lisboa. Trabalhou como empregado de
escritório, bancário, contabilista, bibliotecário, professor do ensino secundário…
Ao longo dos anos foi estudando. Primeiramente tirou o Curso Comercial; depois
o Curso de Contabilidade (Técnico de Contas) e mais tarde o Curso Superior de
Letras (Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses). Atualmente dedica-se
à investigação na área da História Local e Regional e à criação literária.
*
ANEXO AO ROMANCE «Entre Mortos e
Feridos – dois anos de guerra na Guiné-Bissau».
Este texto foi escrito por um soldado, ou cabo, da Companhia 1500,
apenas com a quarta classe – 2.º grau – de escolaridade, mas com alguma
capacidade de transmitir ao leitor imagens terríveis, adocicadas com pelo menos
cinco gramas de mel. É óbvio que a guerra é guerra, e quando se fala em grandes
ou pequenas batalhas, sobretudo nos livros de História, esquece-se que para um
soldado esse termo de grandeza não existe – morrer com uma bala na cabeça ou no
coração é a mesmíssima coisa que tombar com uma bazucada, ou morteirada, no
peito. A morte é o fim de tudo e o princípio do nada; por isso, morrer de uma
doença incurável ou de uma bala terá na prática o mesmo efeito. Alguns do que
morreram no Japão em 1945 provavelmente nem saberiam o nome do presidente dos
Estados Unidos da América, o qual deu a ordem para lançar as bombas atómicas assassinas.
O meu camarada da tropa era otimista por natureza, apesar de reconhecer
que os esforços que nos foram exigidos ultrapassavam a força humana. Alguns
resistiram heroicamente a esses trabalhos hercúleos, mas apenas porque tinham
pouco mais de vinte anos de idade. Passar dois dias, ou mais, sem comer e sem
beber, percorrer na mata selvagem sessenta ou mais quilómetros a pé,
atravessando rios e bolanhas, ultrapassa a nossa capacidade de resiliência. Quando
ele designa por bandidos os militares do PAIGC devia também chamar de bandidos
ao Salazar e à sua quadrilha, isto é, aos seus ministros e secretários de
Estado, entre outros. Foi este grupo salazarento que iniciou a guerra colonial
ao recusar-se a receber, a dialogar, com os políticos africanos. Que importava
ao presidente do Conselho de Ministros que os jovens portugueses embarcassem a
caminho do sacrifício e da morte? Não tinha esposa, não tinha filhos nem netos;
para ele era indiferente que eu morresse nas matas africanas. É certo que
Amílcar Cabral, Agostinho Neto, entre outros, estavam impacientes para
assumirem o leme da governação. Fariam tudo, e fizeram, para alcançar esse
objetivo. Tiveram o apoio de alguns países, com armas, treino, dinheiro, os quais
desejavam ardentemente explorar as riquezas existentes no continente africano:
madeiras, petróleo, diamantes, turismo, etc.
Como agora se sabe, a independência politica não lhes trouxe a
felicidade que eles esperavam. Criaram-se os partidos políticos, entraram em
guerra uns com os outros, em Angola e Moçambique, houve imensos mortos e
feridos, a paz voltou, mas sempre ameaçada. Os políticos guineenses esperavam
criar um país, mas nem todas as nações aí residentes: fulas, balantas, felupes,
bijagós, etc., aderiram a essa ideia, pelo que agora é um país adiado.
Cabo Verde, nove ilhas, tornou-se um país com duas línguas oficiais, o
crioulo e o português, mas a maior parte dos seus habitantes emigrou para
Portugal, França, etc., e só vai à sua terra de nascimento em visita. Os
empregos escasseiam, a indústria tarda a desenvolver-se, o comércio é ainda
rudimentar.
A descolonização foi pessimamente feita; os brancos, alguns europeus,
outros já africanos, fugiram das ex-colónias, sua terra natal ou por adoção,
apressadamente, a sete pés, deixando praticamente tudo aquilo que possuíam:
terras, casas, automóveis, até dinheiro! Podia também falar de São Tomé e
Príncipe e Timor, dois países pequenos, sem grandes recursos. Enfim… Tanta
guerra, tanto ódio, tantos mortos e feridos, para quê? Vamos ficar por aqui. O
melhor é ler o relatório do meu companheiro de armas, que usou, sem se
aperceber, o estilo de Fernão Mendes Pinto.
O QUE UM HOMEM PASSOU NESTES TRISTES DOIS ANOS DE COMISSÃO.
Relatório principal
Partida de Lisboa ao meio dia do dia 20 de Janeiro de 1966. Depois de
cinco dias bem passados a bordo do
paquete Uíge, quando passados esses tais cinco dias, chegámos a Bissau no dia
vinte e cinco do corrente mês de Janeiro, às treze e quarenta e cinco, passámos
então ali a uns cem metros do cais até ao outro dia às dez da manhã todo esse
tempo para depois em um barco de guerra seguirmos para Bolama, antiga capital
da Guiné; aqui então passei doze dias
magníficos de descanso, pois o esforço até aqui tinha sido já enorme (*),
comia-se razoavelmente, saía-se quando se queria e dormia até querer também, mas
por pouco tempo; tudo isto porque o inimigo nos esperava. Fui então, como já
atrás escrevi, passados doze dias, com meus colegas para um aquartelamento em
Cufar, situado perto de uma mata com o mesmo nome, mas antes passei duas
noites, saí de Bolama no dia 7 de Fevereiro, cujas noites, conforme ia para
recordar, horríveis, pois ia assim com meus colegas deitados em cima uns dos
outros; passei então por Catió, também conhecida por cidade, cujos habitantes
andavam horrivelmente vestidos. Aqui fiquei já um pouco mais aborrecido em
virtude de uma Companhia que nos vinham esperar, e que era a de Cufar «001»
portanto, ter uma emboscada – do inimigo, claro! – em que sofreu um morto, cujo
morto era fula, ou seja, tropa de milícia.
Essa mesma emboscada foi de certeza preparada para nós, para mim e meus
colegas da Companhia, claro! Como soube isto [é] que alguns minutos depois
teria que passar por onde tinha sido [a emboscada] há algumas horas antes, luta
sangrenta; mas reservou-me o destino talvez passar por uns momentos alegres,
ainda em Catió, com um colega perto da minha terra, que conhecia perfeitamente
bem, e que por isso era meu amigo, pois confesso que senti muita emoção ao
poder encontra-lo ali, onde tudo me era estranho; fui então com ele festejar
aquele encontro, bebendo umas cervejas frescas, foi então a vez de me despedir
dele, pois ia para Cufar.
Segui às duas e meia a pé, debaixo de um calor tórrido e de uma nuvem de
pó, pois as viaturas seguiam à nossa frente; percorri felizmente bem todo o
percurso, que é de doze quilómetros, sem algo haver de novidade, e uma vez mais
me admirei pelo caminho ao só existir matas e capim, mas passadas quase três
horas cheguei então a Cufar, onde ali permaneci uns trinta e cinco dias a
partir de sete de Fevereiro; estive nove dias de descanso e no dia dezasseis do
mesmo mês fui para a primeira operação – montar segurança à «001», onde por
rebentamento de uma mina antipessoal a [nossa] Companhia teve dois feridos,
sendo um furriel, de nome (…) e um [outro] soldado, sendo evacuados para
Bissau, de onde seguiram para a metrópole; no fim da evacuação fiz com meus
colegas a retirada, pois estava cumprida a tarefa dessa primeira operação.
Passado uns dias mais fazia a segunda operação, no dia 24 do mesmo mês,
saí às nove horas da noite do dia vinte e três juntamente com a outra tal
Companhia; prossegui toda a noite até onde tínhamos ido da outra vez, mas um
pouco mais à frente; sofremos uma emboscada do inimigo, eram quatro menos um
quarto da manhã do dia vinte e quatro. A Companhia que seguia à minha frente,
ou seja, à frente da minha [Companhia], sofreu dois mortos, um desaparecido e
dezoito feridos, quatro dos quais em estado grave, pois foram três horas e
quinze minutos debaixo de um fogo intenso, como nunca se tinha sentido em toda
a província!
Eram então sete menos dez quando tivemos que fazer a retirada com mortos
e feridos às costas para, em determinado sítio, mais à frente, se fazer a
evacuação; mas ainda os turras nos perseguiam; valeu-nos a aviação que, com
bombas de cinquenta quilos e lança roquetes, os fizeram retirar; eram então
duas da tarde quando regressamos a Cufar, pois tínhamos a missão cumprida por
hoje.
Depois descansei mais uns dias, até que no dia dois [de Março] partimos
para mais uma “visita” ao inimigo; saí de Cufar com meus colegas na noite do
dia dois, às nove horas, e, de novo, pelo mesmo caminho onde já se tinham
passado coisas horríveis. Connosco voltou a ir a Companhia de Cufar e ainda a
«002» de Catió; sempre se progrediu bem até que ao chegarmos perto do local se
parou para que amanhecesse mais e que se pudesse ver qualquer coisa e assim
passadas umas duas horas continuamos a progressão até que ao chegarmos perto
das tabancas de Cachaque avançamos rápido, felizmente não houve fogo, lá só se
viu umas mulheres e crianças escondidas na bolanha; homem, nem um se viu,
sequer; depois retiramos rapidamente, tivemos que atravessar uma bolanha com
água pela cintura, e lama, que esforço enorme; chegamos felizmente ao
acampamento sem novidade alguma, devido à enorme atenção, até que antes de
chegarmos a uns cinco quilómetros do acampamento se matou com duas rajadas o guia
preto – e turra que era, claro! – e que nos tinha indicado o caminho às tais
tabancas.
Ainda em Cufar se descansou mais uns dias, até que outra operação
surgiu, esta de bote, a doze de Março, cujos cinco dias foi um autêntico
inferno. Parti de Cufar no dia sete, segui para Catió, e daqui em lancha para
rumo a Mejo; passamos duas terríveis noites a dormir em cima dos ferros [da
lancha], no primeiro dia não pudemos desembarcar por motivo de não darmos com a
localização da Companhia que nos esperava, e assim tornamos a voltar para trás
e a ficarmos mais uma noite na lancha ao lado de Cacine, e no dia seguinte
seguimos de novo para a frente, onde já demos com a Companhia que nos esperava
e então desembarcamos; daqui segui com meus colegas a pé com espingarda e
munições, manta, colchão e saco de bagagem, cerca de seis quilos, com um calor
de morrer, até que cheguei a Mejo, outro aquartelamento, claro, mas pior ainda
[se possível] que o de Cufar. Ali almoçamos e jantamos depois de andar dois
dias a ração de combate; e eram três e meia da manhã quando nos foram acordar
para abalar; depois dos respetivos preparos saímos de Mejo às cinco e meia,
rumo a Salancaur-Fula, a cerca de uns seis quilómetros de andamento; sofremos
uma pequena emboscada que graças à nossa pronta reação o inimigo fugiu sendo
assim e sem haver feridos sequer da nossa parte continuamos a caminhada até que
a um certo sítio um enxame de abelhas nos atacou de tal maneira que devido às
ferroadas e depois aos inchaços e às dores tiveram que ser evacuados trinta e
seis camaradas meus, ficando nós com muito menos possibilidades de triunfar;
mas, mesmo assim, continuamos à mesma a caminhar mata fora, até anoitecer; eram
seis e meia quando nos instalamos, comemos e bebemos qualquer coisa (água) e por
fim tentamos descansar, mas passado algum tempo logo os turras começaram a dar
uns tirinhos para nos localizar, mas, em virtude de ser longe e de ser de
noite, nós não respondemos, e assim se passou a primeira noite a dormir na
mata; ao amanhecer rompemos de novo a marchar e passadas seis horas de
sacrifício enorme tivemos a terceira surpresa ao apanhar em plenos movimentos
um terrorista, o qual teve que vir connosco de volta – eram mais ou menos duas
horas; e depois de passar por um acampamento deles, repleto de bananeiras e
laranjeiras, encontrámos uma Companhia, «003», que também levava o seu destino
para o mesmo objetivo; nesse momento do encontro começou o fogo entre os
paraquedistas e os bandidos; foi então quando nós recuamos para que os
helicópteros nos abastecessem de água; no fim, quando o último vinha para
aterrar, e para que nos localizasse, deitou-se uma granada de fumos; e como o
capim estava ressequido, logo começou a arder em grande velocidade, foi então
um alvoroço total em que três Companhias se envolveram de tal maneira na fuga
do fogo que lá ficou para arder um bornal com munições e granadas de mão e de
bazuca; felizmente nada aconteceu e volvidas umas boas horas já à noite de novo
nos instalamos para mais uma noite em plena mata; depois de um esforço enorme,
e sem comermos nada a bem dizer, pois só se tinha era sede, assim se passou a
noite em que às três da manhã o tal turra que apanhamos quis fugir e puxar por
uma arma de um colega meu, mas logo nós, sendo eu e um furriel, demos pelo ato,
pois ele encontrava-se a uns dois metros de nós e o amarramos melhor, depois de
levar tanta porrada que o sangue lhe corria por todos os lados da cabeça; de
manhã cedo continuamos a andar rumo ao quartel “Mejo”, ao qual cheguei às oito
e vinte minutos e que passado uma hora segui em viatura para as lanchas, para
que assim voltássemos para Cufar, onde antes porém mais uma noite em Catió e no
outro dia de manhã então é que seguimos para Cufar onde só descansamos sete
dias, pois no dia dezanove partimos para mais uma operação “Safanão” a
Darsalame e que de novo escalamos por Catió, onde mais uma vez embarcamos em
lanchas; eram dez da noite e às cinco e meia desembarcamos no meio de lama e
água e junto de uma mina antipessoal, eram onze horas quando o nosso guia
avistou os primeiros turas; em plena entrada da mata permanecemos todo o dia na
bolanha debaixo de um calor tórrido; entretanto, abriu-se tiroteio enorme entre
o inimigo e uma outra Companhia, «004», de que resultou três mortos e alguns
feridos; depois da evacuação destes homens e do embarque dos restantes, foi a
vez de entrarmos nós em ação, pois eram duas e dez da tarde quando começaram a
zunir pelos nossos ouvidos os primeiros tiros destinados a nós; juntamente com
a Companhia «001» aguentamos o inimigo, que depois se pôs em fuga. Enquanto
anoitecia, começamos a preparar os abrigos para nos instalarmos e assim
permanecer ali toda a noite em que deitaram quatro morteiradas para o tarrafe e
nós estávamos na bolanha; assim se passou a noite e no outro dia de manhã foi
então a vez de avançarmos para o objetivo. Fomos esperados com alguns tiros mas
devido à nossa força o inimigo pôs-se em fuga; já dentro dele – objetivo – um
estilhaço de uma bomba da nossa aviação me rasou a cabeça e a de um colega meu;
passadas umas horas embarcamos em lanchas depois da missão cumprida. Depois fui
com destino, pela última vez, a Cufar; e no outro dia saí rumo a Bolama. Voltei
a passar por Catió, de onde saí às duas horas.
Cheguei a Bolama dia vinte e três à noite; então aqui passei uns dias em
beleza, até que no dia doze à noite voltamos a sair para mais uma operação, a
sexta; saí de novo em lanchas com destino à mata de Empada, onde cheguei às
três horas da manhã; tivemos então que fazer tempo para que amanhecesse. Desembarquei
então às cinco e um quarto no meio de água, que nos dava pela cintura. Dali
para diante caminhamos uns bons quilómetros, sem que nada - [de especial] - víssemos.
Felizmente todos passamos por uma mina à borda do carreiro e sem lhe tocar!
Eram quase duas horas quando se avistou o primeiro objetivo. Foi então a vez de
nos instalarmos, mas felizmente já estava tudo destruído pela aviação; voltamos
então para trás, quase pelo mesmo caminho, para que assim se pudesse reembarcar
nas lanchas, o que fiz depois de andar à volta de quarenta quilómetros, e às
cinco da tarde. Eram onze e poucos da noite quando cheguei a Bolama; foi então
vez de tomar banho e de ir comer alguma coisa, pois já não o fazia há mais de
vinte e quatro horas! Mais uns dias se passaram, e com eles algumas semanas; foram
nada mais do que três. Até que no dia, ou melhor, na noite de domingo, era uma
hora daquela tão rápida noite, quando o nosso tenente nos acordou e avisou que
no outro dia às nove horas tínhamos que partir com tudo que nos fosse preciso
para um mês; fomos então com destino a Bissau aonde chegamos depois de sete
horas em lanchas; eram quatro da tarde quando desembarquei pela primeira vez em
Bissau, onde atravessei em viatura à média de sessenta [quilómetros] à hora; paramos
em Brã uns minutos e depois segui com destino a Bula, centro do norte da
província, aonde chegamos à meia-noite, depois de termos atravessado um rio em
cima das viaturas e estas em cima de uma barca (jangada). Andei mais dezoito
quilómetros de viatura até chegar a Bula; por fim jantamos e depois de ter conversado
algum tempo com um rapaz quase meu vizinho, que era filho, ou melhor, sobrinho,
do António Barbeiro, deitei-me, e de manhã apenas logo a seguir ao café
voltamos a subir para as viaturas com destino a Teixeira Pinto, onde cheguei
passado duas horas e felizmente sem ouvir um tiro sequer.
Uma vez aqui, permanecemos algum tempo até que se organizassem melhor as
coisas, e então ficaram dois grupos de combate – primeiro e terceiro; por fim
voltamos a subir para as viaturas, o comando e o segundo grupo de combate, com
destino a Cacheu. Tivemos que andar mais trinta e seis quilómetros e de novo
sem um tiro ouvir; cheguei cerca das onze e meia e no fim de tomar um bom banho
preparei as restantes coisas para que pudesse dormir descansado. Então aqui
descansei com meus colegas algum tempo, até que no dia três às nove horas saí
para mais uma operação, a sétima. Percorremos vinte e quatro quilómetros, até
que por fim cheguei ao Bachile, local onde se encontravam duas secções, em
virtude de serem as tabancas atacadas por um grupo de bandoleiros armados,
havia pouco tempo. Então uma vez aqui tive que aguentar até amanhecer para que
pudéssemos então iniciar a tal operação; saímos às cinco e um quarto da manhã
sem sequer comer nada e ainda por cima só com meia ração de combate para todo o
dia e parte da noite. Depois de alguns quilómetros andados um pequeno grupo de
bandoleiros disparou alguns tiros sem consequências, felizmente para nós, até
que depois de muitos quilómetros chegamos ao primeiro objetivo, mas alguns
metros antes alguns colegas da frente depois de verem dois inimigos dispararam
fogo sobre eles e foi então a vez de corrermos para as tabancas inimigas, uma
vez que já tínhamos dado alarme, então logo começaram as bazucadas, morteiradas
e tiroteio; até que no fim de tudo destruído, fizemos retirada. Então aqui,
Cacheu, permaneci mais umas semanas e, com isso, mais quatro operações, todas
decorridas com grande sorte, felizmente; para fim da estadia aqui fizemos
alguns abrigos e no dia 9 de Junho de 1966 parti para Teixeira Pinto, a uma
quinta-feira.
Então, uma vez aqui, voltei a ter que ficar no chão! Foi passado dois
dias que mais uma operação tive que fazer, e logo ao apear das viaturas uma bolanha
se nos deparou pela frente e então às sete menos um quarto começamos a nos
enterrar de lama e água até à cintura; é que passadas duas horas de canseira
chegamos ao fim para termos ainda por cima que atravessar o rio por cima de uma
árvore deitada nele. Passado algumas horas, ou seja, às quatro da tarde, a
avioneta sobrevoou-nos, informando que o helicóptero nos vinha abastecer de
água, pois estávamos estoirados; mas pouco depois começou a chover e o mesmo
não veio, o que nos desanimou bastante. Foi então a vez de começar a aparar os
pingos da chuva para nos matar a sede, pois ali tivemos que passar uma noite
terrível, com sede, mosquitos e tudo o mais, até que - no outro dia de manhã -
se iniciou de novo a marcha e foi então a altura de encontrarmos uma pequena
bolanha de água doce para matarmos a sede, que nessa altura já era difícil de
suportar; e pouco à frente era o aquartelamento do Bachile. Foram então as
viaturas buscar-nos para passado algum tempo chegarmos ao quartel de Teixeira
Pinto.
Uma vez aqui só descansei, com meus colegas, três dias; pois passados
estes, de novo outra operação se seguiu – a décima terceira, para a região de
Calequisse ainda não afetada pelo terrorismo, mas não se sabia o que podia
acontecer. Percorremos felizmente mais de sessenta quilómetros sem nada haver
de especial, até que à noite, e com ela uma valente trovoada, que mais parecia
uma iluminação…; valeu-nos pois uma tabanca para onde a malta se abrigou de uma
forte chuvada; foi uma noite como todas as outras passadas em pleno mato, sem
cerrar olho e com forte ataque de mosquitos, até que na manhã seguinte se
iniciou de novo a marcha com destino a Calequisse, onde chegamos às nove e meia
para só as viaturas nos virem buscar às quatro horas da tarde!
Eram cinco e um quarto quando cheguei a Teixeira Pinto; uma vez aqui só
descansei três dias, pois na noite do dia vinte e três voltamos a sair para
mais uma operação – a décima quarta. Durante o dia percorreu-se mais de
quarenta quilómetros até que nos instalamos para passar a noite; mas logo
passados poucos minutos já ninguém podia parar com tantos mosquitos, pois nunca
se viu uma coisa assim! Foi uma noite horrorosa e sem fechar os olhos um
segundo, pareceu um mês, pois custou mais do que isso; até que começou a amanhecer
para pouco depois continuarmos a caminhada, pois passado poucas horas e com
pequenos intervalos sofremos três ataques de abelhas sem consequências graves,
felizmente; foi uma operação que mais sofri, pois estava aleijado de um pé, com
uma íngua ainda por cima; fiz um esforço sobre humano, mas felizmente cheguei,
pois é o que interessa, mas para isso ainda tive que atravessar uma bolanha com
mais de três quilómetros, sabe Deus como o fiz! Até que a lancha veio passado
hora e meia; fomos então com destino a Cacheu, para depois seguirmos em viagem
para Teixeira Pinto, onde permanecemos mais uns dias até que outra operação
chegou; esta nos dias 29 e trinta.
Saí daqui de Teixeira Pinto às quatro e meia da manhã, dia vinte e nove,
com destino a Bachile, mas desmontámos antes para que despistássemos o inimigo;
comecei então a marcha às cinco e meia. Tudo corria normalmente até que cerca
de cinco horas depois os homens da frente viram alguns bandoleiros armados
atravessar o caminho por onde nós havíamos de passar e então aqui nos
instalamos para o que desse, e viesse, mas felizmente nada sucedeu e como os
inimigos podiam ter alguma emboscada preparada fizemos a retirada em sentido
lateral, um bocado abaixo da nossa direção antes.
Com tudo isto chegou a hora de comermos e assim sucedeu; paramos para o
fazer e também para descansar algum tempo, cerca de três horas. Depois disto
iniciou-se de novo a progressão até às cinco e meia da tarde, hora em que nos
instalamos para dormir, aliás, passar a noite, mais uma em plena mata. E para
isso, foi a primeira vez que levei mosquiteiro e que deu resultado, pois pude
descansar mais e melhor até que chegou a manhã sem nada ter havido, graças a
Deus. Então às seis menos um quarto de novo se começou a marcha com destino ao
último objetivo (Caxeme?) e depois para Bachile onde as viaturas nos haviam de
ir buscar; foi então esta última parte da operação que mais custou a todos,
pois logo após o início da caminhada começou a trovejar imenso para pouco
depois começar a chover de tal ordem que até metia respeito; e quando um senhor
trovão se fez sentir como uma morteirada, que quase nos ia fazendo procurar
abrigos, foi então uma parte dolorosa, todos encharcados cerca de cinco horas,
até que se chegou ao Bachile, onde três viaturas da Companhia de transportes
estavam para levar um pelotão que aqui estava com destino a outro lado. E então
aproveitamos para nos vir pôr a Teixeira Pinto, o que sucedeu por milagre, pois
uma mina anticarro estava posta na estrada e as viaturas onde nós seguíamos iam
à cunha com todos nós em monte, como disse, por milagre não pisamos a dita
mina, mas logo após os carros nos deixarem seguiram outra vez pelo mesmo
caminho e então infelizmente o da frente pisou-a, causando dois feridos e a
viatura danificada, tudo isto no dia trinta deste de Junho de 1966.
Depois mais uns dias se descansou em perfeita saúde felizmente até que
no dia onze pelas cinco da manhã parti para mais uma, a décima sexta, e também
mais uma vez saí de Teixeira Pinto com destino ao Bachile, onde depois de uma
hora cheguei sem nada ter havido, depois de tudo preparado começamos a marcha
cerca das seis horas; corria tudo bem, até que em certo momento tudo se
modificou, pois uma emboscada estava feita pelo inimigo; mas, graças à nossa
pronta reação, e depois de fazer uma bazucada e algumas fortes rajadas, os
terroristas puseram-se em fuga.
Felizmente, da nossa parte, nada sofremos, a não ser um raspão de uma
bala num dedo de um colega bem junto de mim, que só por milagre não o atingiu
mais; foi então a vez de continuarmos em sentido lateral, uma vez que outra
emboscada podia estar preparada mais à frente, e como cortámos as voltas nada
mais de anormal se passou, até que cerca das onze horas paramos para comer e
descansar até às treze e meia, hora em que recomeçamos a marcha, mas já com
destino a Bachile, único ponto de reembarque, onde chegamos às quatro horas
para que imediatamente as viaturas nos trouxessem e assim sucedeu, pois passado
uma hora, mais ou menos, pois eram quatro e meia quando chegamos a Teixeira
Pinto e após a chegada uma surpresa nos esta reservada, surpresa essa que foi
termos que ir para Jolmete reforçar um grupo de combate para lá, e assim
sucedeu, sem comer em todo o dia tivemos que partir para o pior sítio do norte,
com mata fechada; até que depois de uma estrada péssima, e já com uns copos
metidos no bucho em Pelundo, chegamos, e voltamos sem felizmente nada ter
sucedido graças a Deus – viemos entrar em Teixeira Pinto cerca das nove e meia
da noite, pois mal tive reação para me deitar tal era a cabeça à roda.
Uma vez aqui, permanecemos então mais uns sete dias, até que no dia
dezoito, portanto, parti com meus colegas para uma mais, a décima sétima; saí
de Teixeira Pinto às cinco da tarde com destino para Pelundo e depois para Jol,
onde devia chegar às seis e meia, mas a seis quilómetros de Jol uma surpresa
desgraçada nos estava reservada: tínhamo-nos apeado das viaturas para começar a
picar a estrada ainda não havia cinco minutos quando uma mina anticarro
rebentou com aquela viatura onde eu e todos os outros homens do comando
vínhamos, mas nessa altura felizmente já estávamos a uns vinte metros e então
nada mais sofremos, a não ser o condutor ferido numa perna e na cabeça. Tivemos
então que ficar ali (…) toda a noite e outros vir a Pelundo e depois a Teixeira
Pinto o segundo grupo de combate para levar o rebocador; foi uma noite
horrível, cheia de sobressaltos, pois o inimigo sentia-se perto ainda, abrimos
fogo para uns que vinham ver como as viaturas ficaram, mas depois puseram-se em
fuga, até que com muito custo começou a amanhecer e então já nós nos sentimos
mais à vontade; eram então dez horas quando o rebocador chegou e depois da
viatura atrelada voltamos para trás com destino a Teixeira Pinto, onde cheguei
à uma e meia da tarde, pois sendo assim ficou a operação adiada.
Depois de estar uns dias em Teixeira Pinto em descanso segui com oito
colegas para Bissau e depois para Bolama com a intenção de trazer o resto das
coisas que ali tinham ficado; assim sucedeu e no dia vinte e três cheguei a
Bolama para depois no domingo à tarde, dia vinte e quatro, seguir com tudo já a
bordo do barco Corubal com rumo a Bissau de novo onde estive dez dias até que
no dia dois de Agosto uma escolta da minha Companhia aqui chegou; foi então
quando parti com eles para Teixeira Pinto, mas antes paramos e ficamos uma
noite em Bula, para depois no outro dia de manhã seguir então; felizmente nada
sucedeu pelo caminho além de ele ser perigoso; cheguei a Teixeira Pinto à uma
hora do dia três, portanto.
Uma vez aqui, permaneci dois dias para logo no dia cinco à noite partir para
mais uma operação com destino ao Bachile, onde chegamos às seis e meia da
tarde; aqui aguentamos até às vinte e quatro horas para pouco depois partirmos
para a operação – eram então vinte e quatro horas e quarenta minutos. Fomos com
a Companhia «005» na nossa retaguarda, progredimos cerca de três horas e meia
até às três menos um quarto, paramos para descansar perto do primeiro objetivo
e à espera que amanhecesse, pois o guia não conhecia o caminho, eram então
cinco e meia da manhã quando se continuou a progressão, até que depois de se
andar umas boas horas sofremos a primeira emboscada, da qual não tivemos azar
nenhum e depois de parar o tiroteio continuamos em passo rápido para o
objetivo, onde pouco depois chegamos; e quando ia a chegar às tabancas, que por
acaso ia em primeiro, logo seguido de dois colegas e com os outros mais atrás,
começou de novo o fogo inimigo, logo seguido do nosso em reação rápida, pondo o
inimigo em fuga para pouco depois se começar ao ouvir as saídas do morteiro
oitenta e dois tal era a aflição sem se saber onde elas caíam quando logo
rebentou a primeira seguida de mais duas, ferindo cinco colegas com os estilhaços,
felizmente sem gravidade.
Tivemos então que recuar para fazer as evacuações, mas depois começou a
chover forte e os helicópteros não vieram, até que quando estávamos para partir
os bandoleiros se vinham chegar a nós para buscar alguma arma ou mortos que
eles lá tinham deixado; voltou-se de novo a abrir fogo com duas bazucadas e um
dilagrama de mistura com rajadas, voltando nós de certeza a fazer-lhe baixas;
até que por fim retiramos de todo com feridos às costas, com destino às
tabancas próximo do Bachile, onde chegamos sem graças a Deus haver mais azar
nenhum, a não ser uma valente caminhada e uma molha, pois durante todo o
percurso choveu; depois montamos nas viaturas e seguimos para o quartel de
Teixeira Pinto, e assim acabou esta décima oitava operação no dia sete de
Agosto pelas dezoito e trinta.
Permaneci mais uns dias em boa harmonia, até que no dia treze segui para
mais uma, a décima nona, desta vez fomos para Pelundo, onde chegamos à noite,
debaixo de uma trovoada enorme e de chuva constante; aqui ficamos até às quatro
horas da manhã, hora em que saímos juntamente com um grupo da Companhia «006»,
felizmente nada aconteceu, e depois de termos passado a primeira bolanha com
água pela cintura, e de caminhar uns bons quilómetros, avistamos as primeiras
tabancas, das cinquenta ali existentes; rápido começamos a queimá-las, coisa
que demorou mais de uma hora e depois de tudo em ordem para a retirada
procedeu-se à morte de três bandidos que tinham ido connosco para serem
abatidos, claro; uma vez de regresso mais uma bolanha se atravessou, também
alta, e passado pouco mais de duas horas estávamos em Pelundo, onde as viaturas
nos esperavam para nos levarem para Teixeira Pinto, onde chegamos às cinco e
pouco.
Decorridos mais uns dias, mais uma operação estava em vista, a vigésima,
mas o tempo não o permitiu devido às grandes chuvadas nessa noite de saída e
passados uns dias de novo se procedeu para ela, isto no dia vinte e seis à
tarde, com destino ao Bachile de novo, onde chegamos à noite, mas cerca das
nove e um quarto deu-se o imprevisto: alguns terroristas, em número calculado
de quinze, atacaram o aquartelamento às rajadas e morteiradas de mistura com
duas bazucadas, estava eu a jogar cartas à luz de uma garrafa de petróleo
quando, como relâmpagos, se deram os primeiros rebentamentos; fugimos então
para os abrigos, mas alguns, em vez disso, correram a buscar as armas e um
deles, até sendo por sinal meu amigo e quase vizinho, sofreu dois estilhaços
nas pernas e com um bocado de telhado nas costas; disso resultou ser evacuado
no dia seguinte. Felizmente os feridos, dois, sofreram ferimentos de pouca
gravidade.
No fim de darem mais umas rajadas, os turras fugiram para nunca mais lá
aparecerem; e de manhã os meus colegas saíram então, não indo eu por estar
dispensado pelo médico, mas felizmente não houve nada de anormal e eles puderam
voltar passadas uma horas sem nada ter havido, e então seguimos todos para
Teixeira Pinto sem mais nada haver graças a Deus.
Então, em Teixeira Pinto, mais umas semanas se passaram normais, pois – como
estava dispensado pelo médico – simplesmente fazia umas rondas à vila e um
reforço e assim se passou, dia após dia, até ao dia vinte de Setembro, data em
que fazia oito meses de Guiné, sempre bem, graças a Deus.
Passados mais três dias surgiu mais uma operação, a vigésima primeira,
saímos com destino ao Bachile; às seis horas da manhã iniciamos a marcha com
mais dois grupos de combate da «005»; cedo entramos nas bolanhas para só as
deixarmos quando chegamos de novo ao Bachile, até que depois de andarmos três
horas surgiram os primeiros tiros do inimigo, mas graças à rápida reação nossa
o inimigo fugiu; continuamos até aos objetivos previstos sempre metido dentro
de água até à cintura, depois já ao anoitecer entramos no último objetivo e
começou então a chover da grossa; instalamo-nos para pernoitar pouco adiante,
sempre a chover, trovões e relâmpagos por todos os lados, com nós todos
encharcados, até que começamos a arrefecer pois a água e o vento nunca mais
cessavam, maldita noite se passou para nos tirar anos de vida, pois foi uma
noite que parecia um ano.
Começou então a amanhecer e de novo se procedeu à progressão da coluna
até que se avistaram as primeiras tabancas do último objetivo; rápido se
procedeu à sua destruição para depois voltarmos para trás, foi então a vez de
virmos nós à frente. Rápido se caminhou sem que felizmente houvesse nada, mas
cedo ainda começaram a aparecer os rios cheios de água. O primeiro passou-se
com ela pelo peito, depois só bolanha, só bolanha, até ao segundo, passado com
água pelo pescoço, e de novo bolanha para por fim aparecer o terceiro rio
passado a nado pelos que sabiam [nadar] e os outros tiveram que o atravessar
agarrados a estes e aos ramos das árvores; triste vida a de um homem que passa
coisas horríveis.
Depois de tudo isto chegamos ao Bachile só passado três horas, mas antes
andei cerca de um quilómetro só com mais sete colegas, pois os outros
perderam-se de nós; tive então que vir à retaguarda buscar os outros para
depois continuar a andar até que se avistou a casa do Bachile, onde chegamos às
quatro e tal. Depois esperamos pelas viaturas, mas às tantas dois colegas do
pelotão do Bachile atiraram duas laranjas azedas a um enxame de abelhas que estava
numa árvore e depois, como elas se assanharam, o desassossego foi enorme, pois
eram aos montes em cima da cabeça de nós, tudo gritava, uns para um lado,
outros para outro, parecia o diabo; graças a Deus a mim não me ferrou nenhuma,
pois meti-me debaixo do forno do pão, até que as viaturas chegaram para só
podermos partir uma hora depois com destino a Teixeira Pinto; e assim se passou
a mais horrível das operações.
Foi então a vez de se descansar pela primeira vez três semanas sem
operações, mas ainda fui uma vez à capinagem (**); de resto, pouco mais se fez,
até que chegou o dia de mais uma operação – a vigésima segunda para mim e a
trigésima nona para a Companhia – foi no dia dezoito de Outubro; saí de
madrugada com destino a Bachile, onde chegamos às quatro e meia para sairmos às
cinco menos dez – ainda era escuro; mas pouco depois começou a ver-se alguma
coisa.
Ia connosco um pelotão da «007» e dois nossos; felizmente correu tudo
bem. Eram quase nove horas quando passamos pelo primeiro objetivo sem nada ter
havido; dali continuou a progressão para o segundo, sempre a corta mato, pois
era lá que se esperava haver inimigo, uma vez que tínhamos que queimar umas
tabancas.
Íamos já um bocado cansados mas com o receio nem se notava; uma vez lá
perto íamos com a máxima atenção, até que os homens da frente avistaram as tais
tabancas sem estarem habitadas; fizemos uma segurança boa e procedeu-se à
destruição, ateando-se o fogo para depois voltarmos para trás com destino ao
Bachile, onde as viaturas nos esperavam, pois foi com um esforço enorme,
debaixo de um sol abrasador, que lá chegamos, sem graças a Deus ter havido
nada, até que pouco depois chegávamos a Teixeira Pinto felizmente.
Dia, após dia se vão passando, embora com bastante sacrifício; fui no
dia trinta e um de outubro a Bula, tive oportunidade de ver o local onde tinham
há dias rebentado duas minas anticarro e o sítio também de uma emboscada, onde
sofremos uma baixa, locais frágeis para tudo isto, mas o certo é que sucederam;
cheguei a Bula às onze e tal, depois de termos ido ao destacamento de Có.
Recebemos a ração de combate para o almoço e nessa altura veio-me
cumprimentar um colega meu que por acaso nessa altura se encontrava aqui – Bula
–, pois sendo perto da minha terra ainda por acaso me escrevia com ele sem o
reconhecer bem; foi uma festa este encontro – bebemos umas cervejas da ordem e
estivemos juntos até se dar ordem de regresso, coisa que fizemos às duas e
meia, vindo chegar a Teixeira Pinto às seis e tal sem que graças a Deus tenha
havido nada de anormal além do percurso ser longo e medroso (***), pois ainda
há pouco tempo lá tinha havido tiroteio do forte, com uma emboscada onde houve
uma baixa, como já pouco atrás escrevi.
Assim se tem passado os dias graças a Deus sempre bem até hoje, dia
quatro de Novembro de 1966. Mais um dia passou sempre bem até que no dia cinco
fomos avisados à tarde para sair de madrugada para mais uma operação e, como já
me sucedeu uma vez, é a um domingo, domingo em combate!
Saímos, portanto, de viatura, com destino a
Bachile, onde chegamos às cinco horas da manhã de domingo, para logo depois
iniciarmos então a progressão da vigésima terceira (****); cedo ainda começamos
a atravessar bolanha para nunca mais a deixarmos; metros após metros, e
quilómetros após quilómetros, lá íamos andando mata fora, sempre, como já trás
disse, dentro de água e lama; é que às nove horas quase começou a primeira
emboscada feita pelo inimigo com rajadas de automáticas e morteiradas; nós, sem
abrigos, defendíamo-nos o mais possível, sendo assim mesmo um colega meu ferido
por uma das rajadas num braço e no peito.
Demorou o tiroteio mais ou menos vinte minutos, enquanto nós
respondíamos a fogo do costume: bazuca, morteiro e G-3, tiro, claro! Depois de
chegar a avioneta, para pouco depois também chegar o helicóptero com dois
bombardeiros, procedeu-se à evacuação do ferido; foi então dada ordem para
avançar para a frente e assim de novo continuamos para depois de andarmos cerca
de um quilómetro sofrermos a segunda emboscada, precisamente como a outra, só
com a exceção de não termos feridos graças a Deus; e então houve mais fogo de
parte a parte com todos nós a gritar, respondendo os turras em português
correto com as seguintes palavras: «vão
para Lisboa, filhos da puta»; e nós, claro, respondíamos quase idêntico.
Como as munições já eram poucas e logo à frente sabíamos que íamos ter
outra [emboscada], resolveram as chefias voltar para trás, pois as condições do
terreno onde nos metemos eram péssimas, mata cerrada de um lado e rio do outro
a poucos metros; foi por aqui que tivemos que passar, senão ainda sofríamos
mais emboscadas. Tivemos que atravessar mais de cinco quilómetros de lama e
água e três rios com muita água, um dos quais passamos a nadar e os que não o
sabiam fazer passaram agarrados a outros; foi assim a melhor maneira de nos
livrar das tais emboscadas. Depois, ao chegar de novo à mata, mas claro está,
do outro lado, esperamos uns pelos outros, e pouco depois estávamos a chegar ao
aquartelamento do Bachile onde os carros nos esperavam, para logo a seguir
seguirmos para Teixeira Pinto, onde se chegou já noite e todos estoirados por
completo; assim terminou mais esta operação, feita, como já disse, a um
domingo, dia seis de Novembro de 1966.
Mais uns dias se passam e como até aqui sempre bem graças a Deus, mas no
dia catorze do mesmo mês mais uma escolta fiz a Bula, graças a Deus sem nada
ter havido felizmente. Dia dezasseis mais uma operação está à vista, a vigésima
quarta, saída como de costume para Bachile de madrugada às quatro horas; apenas
que chegamos procedeu-se à progressão com destino ao objetivo – o que era
Jumpia – sempre com a máxima cautela, pois como o capim está na máxima altura é
muito propício a emboscadas de perto, pois dias antes dois colegas morreram
assim de perto em Jol; graças a Deus chegamos lá sem nada ter havido, lá nos
instalamos então e passado duas horas voltamos para trás e pelo mesmo caminho,
pois chegamos a Bachile cerca das cinco horas, para logo tomarmos as viaturas
para Teixeira Pinto; e assim terminou mais esta saída.
Mais uns dias se passam, um pouco mais exaltados, pois os turras certo
dia deste período vieram ao fundo da avenida de Teixeira Pinto matar o régulo
do Bachile, e então como é de esperar foi um alvoroço total no quartel e mais
então uns dias assim se seguiram até que no dia vinte e sete à tarde, por sinal
a um domingo, quando foi o Benfica-Porto, fomos avisados para mais uma – a
vigésima quinta feita por mim; desta vez o destino era a mata de Jol, por isso
fomos para o destacamento do Jolmete, onde dias depois haveria uma emboscada
feita ao carro da água – mais um morto e dois feridos.
Depois de chegarmos então foi feito o jantar – batatas com atum –
comemos e bebemos para depois passar uma noite horrível aos mosquitos, que eram
em monte, pois só saímos para iniciar a operação às quatro horas da manhã de
segunda-feira, portanto íamos todos receosos, devido ao local ser infestado de
inimigos, mas graças a Deus tudo correu bem até mesmo ao passar as duas
bolanhas que encontramos nada houve, onde por sinal muitas emboscadas ali tem
havido e já com alguns mortos; eram nove horas quando se passou o primeiro
objetivo, já por sinal destruído, a mata era então cerrada e dificultava enorme
a progressão, até que depois de andarmos mais alguns quilómetros recebemos
informação aérea para retirarmos, pois estava concluída a operação.
Voltamos pelo mesmo caminho, o que não é habitual, e decorrido cerca de
três horas estávamos a chegar ao destacamento sem que graças a Deus nada de
anormal se passasse; eram três da tarde quando chegamos e logo depois iniciamos
de viatura a marcha para Teixeira Pinto sem sequer picar a estrada, foi sempre
em andamento, pois passado uma hora já estava a chegar a Pelundo; e de novo em
andamento para Teixeira Pinto, onde chegamos às cinco e tal, graças a Deus.
Sempre bem felizmente mais uns dias passam, até que no dia seis de
Dezembro saí para mais uma patrulha-operação a tabancas que pertenciam à população,
mas que o inimigo, por informações, se acoitava lá; e então fomos lá com o
destino de patrulhar e revistar, além do objetivo de trazer connosco alguns
habitantes. Assim, saímos de viatura com as duas Panhard para lá – Cacheu – mas
uns quilómetros antes de lá chegar voltamos à esquerda e entramos nas
primeiras; depois, mais adiante, mais casas de mato se avistavam, felizmente
não houve fogo algum e então voltamos para trás, sempre em cima dos carros, mas
prontos para qualquer ataque. Penetramos de novo na estrada para Cacheu, mas um
pouco mais adiante voltamos a andar para a esquerda e passados seis ou sete
quilómetros estávamos nas outras tabancas; depois de se fazer a respetiva
revista fomos à bolanha procurar dois homens que ali andavam a trabalhar, por
termos as tais informações; andei então com mais seis colegas cerca de dois
quilómetros por mata fechada, pensando até que a bolanha fosse mais perto; ao
lá chegar logo se viu um desses tais homens fugir e o outro, como a mulher, é
que o chamou, lá no idioma deles, também fugiu, lá mais perto de nós, e com
possibilidades de ser alvejado a tiro, mas o furriel que não deixou e então o
gajo deu o piro, assim se passou tudo isto.
Depois voltamos para trás e fomos a Cacheu, onde comi uma lata de
conserva e bebi uma cerveja, e logo a seguir voltei com os meus colegas para
Teixeira Pinto, pois estava a missão cumprida.
Mais dois dias passam e, portanto, dia oito mais uma operação estava à
vista, a vigésima sétima, para Jol, a maior das operações, era atacar uma base
onde se refugiavam grande parte dos turras de toda a mata; saí às quatro horas de
Teixeira Pinto, passamos por Pelundo de onde ia um grupo de combate da
Companhia «005», que também ia connosco, sendo, portanto, duas Companhias, e
antes de chegar ao destacamento de Jolmete apeamos todos dos carros para
iniciar a marcha com os outros à nossa frente; íamos cerca de duzentos homens,
andamos uns quilómetros e já era bastante escuro quando nos instalamos para
passar noite; foi-nos então dada ordem que às três da madrugada iniciaríamos
outra vez a progressão, e assim foi.
Ainda dormi um pouco, uma vez que os mosquitos não deixaram mais, e
então, ainda bastante escuro, começamos o andamento bastante dificultado por a
mata ser fechada, até que se começou a ver qualquer coisa, assim se andou uns
bons quilómetros até que sofremos uma emboscada, por azar à minha ilharga
começou um forte tiroteio, onde resultou ser ferido um colega meu com dois
tiros de uma rajada no peito; o fogo durou cerca de meia hora.
Fez-se depois o curativo ao doente, pois o inimigo sofreu duro castigo
uma vez que foi um enorme tiroteio com quatro morteiradas inimigas sem ter
efeito, graças a Deus.
Pouco depois chegou o helicóptero para evacuar o ferido, e então os
bombardeiros, que tinham vindo em nosso auxílio, imediatamente começaram a
bombardear as casas de mato, pondo o inimigo em fuga; pouco depois continuamos
a marcha, e passado pouco tempo estávamos a entrar no acampamento abandonado.
Fizemos um cerco completo e depois começamos a retirada, queimando as
tabancas as duas últimas secções; em passo rápido seguimos quase sempre por
onde viemos, sem que graças a Deus houvesse algo mais. E passadas três horas e
meia de enorme esforço chegamos a Jolmete, de onde logo seguimos para Teixeira
Pinto, onde cheguei às seis e meia da noite, felizmente assim acabou mais esta
dura operação.
Volvidos mais uns dias, uma outra saída estava em vista, era a vigésima
oitava, e de novo para Jol; saímos às quatro da tarde para Jolmete, escalamos
por Pelundo, para dali ir um grupo de combate da «005» que também ia connosco,
mas na retaguarda; ao chegar a Jolmete tomamos as devidas precauções caso
houvesse algo de noite e assim passámos umas horas até às quatro da madrugada a
nos prepararmos para iniciar a operação connosco à frente, mal se via alguma
coisa, mas mesmo assim lá íamos progredindo, até que se começou a ver menos
mal; depois de andar uns quilómetros o guia suspeitou de uma emboscada e
informou então, cortamos caminho e continuamos a corta mato até uma enorme
bolanha onde a controlamos [contornamos] alguns quilómetros e depois [aí nos]
instalamos até vir a camioneta; só então recebemos ordem de voltar para trás,
pois estava dada por terminada a operação que fizemos.
Chegamos a Jolmete sem nada haver mais, graças a Deus, pois sabia-se que
um grupo inimigo tinha vindo montar emboscada à nossa retaguarda, mas errou-nos
(!) o caminho. Eram quase quatro horas, do [dia] vinte-e-um, quando chegamos,
foi ao fazer onze meses que iniciamos esta operação, no dia vinte de dezembro.
Depois seguimos para o quartel, onde chegamos às cinco e meia da tarde, graças
a Deus.
Passaram-se mais uns dias, até que vem o natal; tudo se passou em beleza
com duas noites bem passadas, além de na noite de natal grupos inimigos
rondarem a população e o quartel, por isso estivemos nos abrigos até à
meia-noite, mas felizmente nada houve. Foi então a festa de passagem do ano,
mais almoço e jantar em beleza, com umas bebidas, e tudo termina em
alegria.
Entra o ano de 1967. Tudo se conjuga para que ele seja melhor e assim
parece ser. Passou-se mais quatro dias até que mais uma noite e dia vem de
combate, de novo com a «005»; desta vez à nossa frente. O destino, claro, é a
mata de Jol, onde tantas, tantas vidas já se perderam. No destacamento de Jol é
de novo dada a informação que vamos para destruir um enorme refúgio de casas de
mato, mas não se sabia bem o local; foi connosco o major que é o segundo
comandante do batalhão; Foi-se andando, andando, sem rumo, até que apanhamos
cinco mulheres e duas crianças; foi o que nos valeu para darmos com as casas de
mato, uma vez que já duas ou três horas ali andávamos às voltas e não as
víamos; eram em elevado número, parece impossível como não fomos emboscados
pelos inimigos. Então entramos dentro delas sem que nada houvesse, mas – quando
se começaram a queimar – os turras localizaram-nos e dispararam duas bazucadas,
mas graças a Deus sem consequências; houve então alvoroço total, um medo
terrível, pois sabia-se que os bandoleiros ali eram em número elevadíssimo.
Felizmente fez-se o regresso sem nada mais haver, graças a Deus.
Passado esta “guerra”, que foi a última, nada mais se fez senão guardar
e pôr a jeito as malas para a partida, uma vez que nos vínhamos embora de
Teixeira Pinto para Bafatá e daqui para outros locais ainda por destinar. Foi
então no dia sete de Janeiro de 1967 à noite que embarcamos em barco de guerra
com rumo a Bambadinca, onde chegamos passado dezoito horas do embarque, depois
seguimos de viatura para Bafatá e daqui para Contubuel, onde me encontro
presentemente há já quase quinze dias. É lugar bem diferente daqueles onde
tenho andado, pois as matas são raras e então não há turras, graças a Deus; é
agora uma vida bestial. Como disse, já estou aqui há quinze dias e estou
contente com isto; Deus queira que seja sempre assim.
*
Contuboel, vinte e quatro de Janeiro de 1967. Destacamento da Ponte,
pois é onde me encontro, assim como mais colegas brancos e três milícias
pretos. Passados dois dias fui informado que tinha que me deslocar a Bolama a
fim de entregar o paiol das munições à Companhia que nos foi render a Teixeira
Pinto, assim foi: parti com um furriel para lá no dia vinte e seis de Janeiro,
saí de Contuboel às oito horas da manhã com destino a Bafatá, onde tomei o
avião para Bissau às dez horas; cheguei à capital cerca do meio-dia, depois
escalamos por Tite, um quartel em pleno mato que ainda não conhecia; quando
cheguei a Bissau fui-me apresentar nos adidos, onde me instalei por dois dias,
pois passados estes fui para Bolama no dia vinte e oito, de barco.
Foi sem dúvida uma viagem chata, em virtude de gastar quase seis horas,
quando se podia gastar só três, mas é claro o principal é chegar, e assim
sucedeu às duas e meia. Uma vez aqui em Bolama, onde estive três semanas em
beleza, sem fazer nada; só foram foi chatas devido ao não correio, pois é o que
mais queremos quando nos dias dele; passado então este tempo vim de novo para
Bissau, de barco, apesar de já uma vez o ter perdido por relaxo, desta assim
não sucedeu e então cheguei aqui a Bissau sem que graças a Deus houvesse algo
de anormal, então aqui estive oito dias à espera de embarque para Bafatá, coisa
que aconteceu no dia vinte e quatro de fevereiro com destino a Bambadinca, onde
cheguei às duas horas do dia vinte e cinco.
Depois, sem comer já há vinte e quatro horas, procuramos faze-lo aqui,
mas sem resultado; sendo assim, fui tratar de partir para Bafatá, que ficava a
trinta quilómetros. Já à noite é que se conseguiu arranjar viatura, onde
cheguei às oito da noite. Depois é que se comeu qualquer coisa e bebeu, para a
seguir ir arranjar cama, pois tive que passar a noite aqui, e no outro dia
seguir para junto dos meus colegas em Contuboel, onde cheguei às onze horas do
dia vinte e seis de Fevereiro, um mês, portanto, depois.
Imediatamente fui procurar o que mais me interessava, o tão desejado
correio, e que alegria ao ver que tinha entre cartas e aerogramas trinta ao
todo! Nem mesmo assim me fartei de ler, que tão cego andava por notícias de
quem tão quero e amo, tal como noiva e pais.
Depois tudo se acertou, já não fui para a Ponte; devido a isso tive que
lá ir buscar as coisas. Vim então mesmo para Contuboel, onde ainda hoje graças
a Deus me encontro bem.
Março, dia trinta de 1967. Mais uns dias e semanas se passam, o trabalho
é um pouco mais com escoltas aos destacamentos de Sare-Bacar, Sonaco e
Sumbundo, graças a Deus sem novidade.
*
/// (*) Está-se a referir aos camaradas que não se
deram bem com a viagem de barco.
/// (**) O exército contratava trabalhadores para
cortar o capim nas bermas da estrada, o qual atingia mais de dois metros de
altura; o pagamento era feito com arroz. Os militares encarregavam-se da
segurança.
/// (***) Em lugar de medroso, leia-se horrível,
tenebroso, assustador, etc.
/// (****) 23.ª
operação para ele; a Companhia já tinha
feito à volta de quarenta.
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