ENTRE MORTOS E FERIDOS
(DOIS ANOS DE GUERRA NA GUINÉ BISSAU)
Por Joaquim A. Rocha
6.º Capítulo
SANTA MARGARIDA
Naquela tarde calma, serena, nem sequer uma folha das árvores do Rossio bulia. O calor começava a apertar, convidando as pessoas a ingerir mais líquidos. Toda a gente procurava uma sombra, a fim de fugir à torreira do sol. Na mesa do Café Suíça, onde já tanta gente se sentara antes, os dois amigos cavaqueiam animadamente. Dizia Cândido:
- Da Academia Militar parti, ai de mim,
triste e cabisbaixo, mais infeliz do que uma viúva, para Santa Margarida, freguesia
do concelho de Constância, distrito de Santarém. Nome de santa e de flor, nome
lindíssimo, mas sem nenhuma santidade, além da capela inaugurada em 1959, e com
cheiro a pólvora e a gasolina, não a capela, claro está, essa cheirava a
incenso, unidade bem conhecida nos círculos castrenses, por ser palco de
manobras militares.
Estávamos em Novembro. O outono, nesse ano de 1965, mostrava-se mais
agressivo do que em anos anteriores, segundo a meteorologia e informações de militares
que ali já estavam desde
Não havia estradas, mas sim caminhos de cabras, íngremes, e até regatos sinuosos
tínhamos de atravessar! Numa terrível noite, mais negra do que o breu, tombei o
meu «Unimog», viatura mais feia do que um dinossauro carnívoro. Não houve
feridos graves, pois a velocidade a que íamos não o justificaria, contudo não
pudemos tirá-lo do buraco onde caiu. Somente no dia imediato, pela madrugada, o
guindaste arrancou aquele monstro pré-histórico da ridícula posição em que
ficara.
- E foi castigado? – perguntou Henrique, com dó do amigo.
- Querias maior castigo do que ir para
a Guiné-Bissau? Para uma luta armada? Eu, que só usara a fisga para caçar pássaros,
e mesmo assim sem qualquer pontaria, rindo-se eles de mim, sobretudo os pardais
e os melros, velozes, desconfiados – não conseguindo apanhar nenhum.
- Bons tempos! – comenta Henrique, sonhando tempos que não vivera.
- Em parte, sim; brincava, trabalhava,
andava na escola, mas havia muitas carências…
- A riqueza em Portugal esteve sempre
muito mal distribuída – lembra Henrique, com pesar.
- É verdade. Desde Afonso Henriques que
isso acontece no nosso país. Poucos têm muito, e muitos pouco ou nada têm! Mas
continuando: o campo de treinos de Santa Margarida lembrava, nessa ocasião, o
verdadeiro inferno. Escassa comida, e mal confecionada, hostilidade, atmosfera
psicológica pesada. O medo pairava à nossa volta, anunciando o próximo futuro:
violento e incerto. A guerra, esse mostrengo de sete cabeças, esperava-nos
ansiosamente.
Santa Margarida: fome e frio, ódio e desprezo. Antro de duros, estéril,
árida. Aí não havia lugar para a ternura. Os soldados, mesmo querendo sair nas
suas curtíssimas folgas, não tinham para onde, embora os mandões dissessem que
existia perto um barracão no qual se exibiam uns filmes – nunca lá fui.
Provavelmente seriam fitas de propaganda corporativista, onde se destacariam as
caras sinistras dos governantes: Salazar, Tomás e companhia.
- Parece que esses rostos o marcaram!
- Bem podes crer. Ainda hoje sinto
náuseas quando vejo aquelas caretas horríveis, cujos olhos espalham ódio e vingança.
- Mas não houve nenhuma personagem
simpática durante aqueles anos todos?!
- Quanto a mim, a figura mais simpática
do regime saído da ditadura militar de Maio de 1926 talvez tenha sido Duarte
Pacheco, que morreu em 1943, ainda eu não nascera, com apenas quarenta e quatro
anos de idade. Era um homem de iniciativas, dinâmico, com personalidade vincada.
Não obedecia cegamente ao «Chefe» e talvez daí a sua morte prematura.
- Está a insinuar que foi assassinado?!
- Quem sabe…; há mortes e mortes! Mas
voltando a Santa Margarida: era, nessa altura, um lugar ermo e sombrio.
Matagais e mais matagais; fardas e mais fardas; manobras e mais manobras! Mas,
mesmo que houvesse zonas de divertimento ou lazer, o cansaço não convidava ao
passeio, nem as moedas tilintavam em nossos vazios bolsos. O pouco que havia
era para enganar a fome.
- Custa a acreditar naquilo que estou a
ouvir!
- Tudo isso é a pura verdade. Corpos
mal alimentados, exercícios que se prolongavam pela noite dentro, obrigavam-nos
a esquecer o exterior, o outro “mundo”
– nós tínhamos sido selecionados pelo tenebroso deus Marte: deveríamos tudo fazer
para merecermos essa distinção.
- Todos sofremos ao longo da vida… - filosofa Henrique – mas...
- Uns mais, outros menos. Muitas
pessoas minhas conterrâneas, alguns anos mais tarde, contaram-me que muito padeceram
e aguentaram em França, na Alemanha, no Canadá, e noutros países, a esgalhar
dez e doze horas por dia, nas obras de construção civil, nos caminhos-de-ferro,
aeroportos e autoestradas, nas minas, nos vários trabalhos pesados, que
lembravam os tempos da escravatura, e até antes já tinham padecido, quando
tiveram de ir a “salto” para lá
chegarem. Eu, a esses, falei-lhes assim: «Acredito
sinceramente que tenham passado maus momentos, isso não está sequer em causa;
mas o vosso sofrimento estava impregnado de esperança, visionavam o futuro e
iam enchendo o peteiro. Nós, não! O nosso futuro durava apenas um minuto, uma
hora, quando muito um dia! Esfumava-se! Vós sofrestes para ganhar a vida; o
nosso padecimento servia para merecermos, segundo a ideologia dominante – militarista
/corporativista – a morte com “honra”. Talvez tenhais sido escravos, mas de
seres humanos, de capitalistas; nós fomos escravos robots de uma poderosa
máquina, de um pensamento ignominioso, de um sistema cruel e ultrapassado! Os
vossos músculos tiveram de enrijecer para poderdes assim construir; os nossos
tornaram-se fortes para poderem desse modo melhor destruir! Além disso, vocês
podiam voltar para Portugal, para junto da família, ou mudar de trabalho, caso
não aguentassem o esforço, ou bem assim por um outro motivo qualquer; nós só
regressaríamos no fim da comissão. Se viéssemos antes era mau sinal: tínhamos
sido gravemente feridos ou então estávamos mortos, dentro de um caixão de chumbo!»
- Discurso inflamado, mas realista. Permita-me,
contudo, que discorde de si num pormenor – solicita
o amigo.
- À vontade. Entre nós não há
cerimónias. Diz tudo o que te vai na alma.
- É o seguinte: quando diz que os
emigrantes podiam voltar a qualquer momento não é cem por cento verdade. Por um
lado, tinham de cumprir os contratos que assinavam com a entidade patronal; por
outro lado, a maioria deles, se regressasse a Portugal, teria de cumprir o
serviço militar!
- Tens razão. Reconheço que me falhou
esse pormenor; no entanto, penso que estavam numa situação mais vantajosa do
que a minha. Por outro lado, desde que pagassem uma determinada taxa, ficavam
livres para virem a Portugal. Isso posso eu garantir, pois sei de casos desses:
um rapaz da minha idade emigrou para França a salto em 1963 e em 1966, estando
eu na Guiné-Bissau, a combater em pleno mato, estava ele a casar-se na igreja
matriz da terra natal! A notícia está publicada no jornal concelhio. Ainda existe
outro pormenor interessante: a idade. Um homem mais velho, caso quisesse voltar
para Portugal poderia faze-lo sem sofrer quaisquer consequências.
Mas continuando: em Santa
Margarida encontrava-se também um primo meu, mais velho um ano, já tinha quase
todo o tempo militar cumprido. Escapara da malvada guerra! E nem sei como!
- Nem todos iam…
- Sim, isso é verdade. Mas hoje penso
que foi por pedido, ou “cunha”. O pai
dele, meu tio, trabalhava no Secretariado Nacional de Informação e Propaganda,
órgão muito influente no regime salazarista. Já livrara outro filho mais velho.
- E por que não o safou a si?!
- Quando o meu tio saiu da terra onde
nascera era eu uma criança, fora residir primeiro para Loures, depois para
Lisboa, mal nos conhecíamos. Nem sequer me passou pela cabeça pedir-lhe tal coisa,
além disso acho que ele não podia abusar, conseguir esses privilégios para os
seus descendentes já era ótimo.
- Fez mal; podia ter dado certo.
- Nessa altura eu era muito tímido, um
bicho do mato, não ousaria fazer-lhe um tal pedido. Além disso, quando eu era
pequeno disseram-me que o nosso destino já está traçado no berço. Por outro
lado, sabendo ele que eu estava na tropa, por que não tomou a iniciativa?
- Não se lembrou – insinua Henrique, ironicamente.
- Ou não quis lembrar-se. Sobrinhos não
são filhos, e não digo isto com azedume.
- Mas são do mesmo sangue, pertencem à
mesma estirpe.
- Segundo a bíblia, o livro sagrado dos
cristãos e dos judeus, somos todos descendentes de Adão!
- E se nós acreditarmos nos cientistas,
a nossa espécie descende do macaco!
- Talvez Adão fosse macaco! Mas, sejamos
filhos de uns ou de outros, o certo é que os seres humanos estão constantemente
a esquecer a origem comum e matam-se com a mesma facilidade e frieza com que se
abate um boi no talho. São autênticos magarefes!
- Concordo consigo. E esse tal primo,
foi-lhe ao menos prestável?
- Bem, ele era apenas soldado como eu,
condutor de tanques. Uma ou outra vez ainda me procurou e juntos comemos
toucinho com pão de milho e centeio. Manjar frugal, mas gerador de algumas
calorias. Ficamo-nos a conhecer melhor, ganhamos amizade. Mais tarde
encontrei-o, já libertos da canga tropeira. Tinha estudado alguma coisa, o
equivalente ao segundo ano do liceu, salvo erro, mais por necessidade do que
por prazer, e depois ingressou num banco como tesoureiro. Foi colocado na
província do Minho. Bom rapaz.
- Quanto tempo esteve em Santa Margarida?
- Deixei para trás, após vinte
turbulentos dias, sem qualquer laivo de saudade, meio desfalecido, esse ninho
de víboras, covil de chacais, esse malvado, infernal, aquartelamento,
antecâmara da morte e do aviltamento.
***
7.º Capítulo
TOMAR
«O tempo voa!», costumamos dizer. Assim é. Havia já meses
que os dois amigos se encontravam. Henrique estava a ficar maravilhado com a
história de Cândido. A realidade superava a imaginação. Numa dessas tardes pergunta-lhe:
- Qual foi a etapa seguinte? E de imediato, sem esperar pela resposta, com
um longo sorriso nos lábios, comenta: - o meu amigo não parava!
Cândido, pensando à velocidade da
luz, responde-lhe:
- Mandaram-nos para Tomar. A cidade que
me encantou. O seu vetusto castelo, mandado construir no século XII por Dom
Gualdim, mestre dos Templários, é interessantíssimo. Também o seu mosteiro,
velho de séculos, nos seduz. Não nos é difícil imaginarmos os monges na sua
labuta diária pelo sustento físico e espiritual; as freiras, moças casadoiras,
empurradas pelas circunstâncias para aquela vida sem quaisquer perspetivas de
futuro. Enfim, tempos e costumes que tiveram a sua época.
Nessa belíssima cidade histórica,
situada no distrito de Santarém, com cerca de sete mil habitantes, já se encontrava
a Companhia de Caçadores, à qual eu doravante pertenceria. O comandante, com o
posto de tenente, tinha obtido a sua formação militar na Academia de Lisboa,
possuindo também um quartel na Amadora.
Indivíduo ainda novo, vinte e cinco, vinte e
seis anos de idade, rosto aparentemente duro, inexpressivo, mente insondável,
um metro e setenta e cinco de altura, mais centímetro menos centímetro, setenta
quilos de peso bem musculados, moreno, cabelo cortado à escovinha, olhos
escuros, quase pretos, atlético, mentalizado para enfrentar a luta armada «contra os inimigos da pátria e do seu lídimo
chefe.»
O segundo comandante, homem esbelto, cabelo aos caracóis, olhos
castanhos-claros, sorriso cínico, olhar esquivo e irónico, apesar de ser um
alferes miliciano dava ares de mercenário, de profissional da guerra. Enquanto
os outros oficiais tentavam disfarçar a pistola que traziam à cintura, ele
exibia-a com gestos infantis e parolos, convencido talvez de que era o maior
pistoleiro das planícies americanas, do tempo dos chamados peles vermelhas, ou
índios.
- Era vaidoso, petulante!
- Muito! Usava fardas justas a fim de
realçar o seu físico, que não aparentava, mesmo assim, ser muito musculoso. Era
só aparência!
- As pessoas são diferentes umas das
outras, não se esqueça. Espero que essa fanfarronice toda não se transformasse
em opressão.
- Vim a saber mais tarde que esses
exibicionismos andavam estreitamente ligados a dolorosos complexos, pois apenas
podia apresentar como habilitações literárias o quinto ano dos liceus! Os
outros alferes eram todos licenciados, tinham um curso superior.
- Então como chegou a segundo
comandante da Companhia?! – pergunta,
admirado, perplexo, Henrique.
- A Academia Militar (Amadora e Gomes Freire) não formava
muitos oficiais. Eram cursos de vários anos e alguns cadetes, como eram
designados, ou alunos, desistiam e outros não ficavam classificados. Assim, e
devido à guerra colonial, foi necessário ao regime promover civis, depois de
uma permanência curta nas Forças Armadas. Tratava-se de professores, empregados
de escritório, bancários, etc., ligados quase todos à mocidade portuguesa e à
legião, preparados por esses tais oficiais de carreira. Os melhores (embora sem curso superior), passavam de
furriel a aspirante e logo depois eram promovidos a alferes. Aqueles que
tivessem curso superior não passavam pela classe de sargentos. Desse modo, o
regime conseguiu milhares de oficiais milicianos, alguns dos quais seguiram
depois a carreira militar, combatendo nas várias frentes, atingindo patentes
nunca antes imaginadas.
- E os profissionais, como reagiram?
- No princípio da guerra aceitaram a
coisa, a incongruência, pois não havia quaisquer alternativas. Eles sabiam que
eram poucos para fazer face ao que lhes era solicitado. Três frentes de
batalha: Guiné-Bissau, Moçambique e Angola, não é brincadeira nenhuma. Mas
depois, nos anos setenta, começaram a reagir. Alguns milicianos estavam a
passar-lhes a perna. O 25 de Abril é, em parte, consequência dessa constatação.
- Então o 25 de Abril de 1974 não teve
como objetivo principal derrubar o salazarismo?!
- Não, meu amigo. Serviu de pretexto,
mas a causa principal tem a ver com aquilo que te disse. Os militares já não
suportavam serem superados pelos civis.
- Então qual foi o papel dos partidos
políticos na revolução? – pergunta
Henrique, algo confuso.
- Os partidos: PCP e PS, além de outros
menos importantes, estavam no estrangeiro. Em Portugal tinham alguns elementos,
mas na clandestinidade.
O governo, tanto da ditadura
militar (1926-1932), como do Salazar
(1933-1968), assim como o de Marcelo
Caetano (1968-1974), não permitia
quaisquer forças políticas contrárias ao regime designado por Estado Novo.
- Então os partidos tiveram pouco peso
na revolução?
- Vejamos: o que aconteceu no 25 de
Abril não é uma revolução, mas sim um golpe militar. Logo a seguir, e tendo em
conta a adesão do povo, sobretudo os das principais cidades, e com a vinda de
Mário Soares e Álvaro Cunhal do estrangeiro, deu-se início a uma revolução, que
(a pouco e pouco) foi criando o
regime democrático burguês – mais conhecido por «social-democracia».
- Estavam todos fartos da ditadura…
- Isso facilitou imenso a mudança. Mas
voltando a Tomar. A minha Companhia estava, a bem dizer, quase completa. Apenas
aguardava os inúmeros especialistas: enfermeiros, mecânicos,
radiotelegrafistas, amanuenses, condutores, cozinheiros, vagomestre, etc.
- O que é propriamente uma Companhia? –
quer saber Henrique, com o objetivo de
compreender melhor a história que o amigo lhe vinha contando.
- Uma Companhia faz parte de um
Batalhão (corpo de infantaria com cerca
de seiscentos homens), e subdivide-se em quatro pelotões, à frente dos
quais se encontra um oficial subalterno, geralmente com a patente de alferes.
Os pelotões por sua vez ainda se desdobram em setores, comandados por segundos-sargentos
e por furriéis.
Nós (os
fracos especialistas), digo fracos porque mal preparados, íamos sendo, à medida
que chegávamos, integrados nos respetivos pelotões e logo se começava, a partir
daí, a conviver com todos aqueles que iriam ser os nossos camaradas de África
durante a campanha, que normalmente durava dois longos anos, e companheiros provavelmente
de hospital e de morgue. Seríamos cobardes ou heróis, mártires ou desertores –
não sabíamos ainda. Os dados estavam lançados, mas não por nós, meros paus
mandados, mas sim por eles, governantes e generais.
- Você lamenta-se, mas graças à tropa conheceu
vários sítios – ironiza Henrique, para
não estar calado.
- Preferia tê-los conhecido como
turista; mas quanto a Tomar, agradou-me sobremaneira, apesar de ter um clima
inóspito quando ali estive. A sua população dimanava simpatia e jamais hostilizou
o soldado. Ainda cheguei, antes de partir para a Guiné, a fazer algumas guardas
no convento, e nem o capote nem a manta chegavam para me aquecer! O mercúrio do
termómetro descia muitos graus abaixo de zero!
- Tudo passou; agora deve tentar
recordar-se apenas das coisas boas – diz
Henrique, em uma tentativa para apaziguar o espírito amargurado do amigo.
- Sim, tudo passou… Tudo passa!... Mas não
se esquece com facilidade. No entanto, também tenho lembranças positivas: o rio
Nabão, que nessa altura, Dezembro de 1965, ainda não estava poluído,
proporcionava-nos agradáveis momentos de ócio. As suas águas corriam límpidas,
murmurando canções de embalar, algumas aves brincavam no seu leito, apesar de
estarmos na época fria, tudo numa harmonia natural, sem artifícios.
- Você gosta muito da natureza.
- Desde criança que sinto essa atração
por ela. Tenho imensa pena quando vejo um curso de água ou uma floresta serem
maltratados. Infelizmente o capitalismo cego, e selvagem, tudo destrói,
alegando que é para o bem da humanidade! Um dia até eles próprios vão ver que
estão errados.
- E Dezembro escoava-se…
- O dia da partida aproximava-se
vertiginosamente. O tenente reuniu a Companhia e informou que o embarque seria
no dia vinte de Janeiro. Antes disso teríamos direito a uma curta licença para
podermos passar o natal e dizer adeus à família e aos amigos. Quantos de nós os
tornariam a ver novamente?
- Já voltou a Tomar?
- Ainda lá regressámos, não todos,
infelizmente, em finais de 1967 para entregar as execráveis e carcomidas
fardas, e despedirmo-nos da vida militar, vestir a calça e o casaco, colocar ao
pescoço a gravata domingueira, calçar sapatos, passar à disponibilidade, ou
peluda, como então se costumava dizer.
*
EM VÉSPERAS DA PARTIDA
Naquela tarde de domingo, e devido
a terem chegado depois da hora habitual, os dois amigos não acharam nenhuma
mesa vazia no Café Suíça. Nem na esplanada, do lado da Praça da Figueira,
conseguiram arranjar um lugar. De mútuo acordo dirigiram-se ao Café Gelo, também
na Praça do Rossio. Poderiam, caso essa fosse a opção, ter ido ao Nicola, mas
esse estava sempre cheio. Depois de sentados, e aguardando a sua vez para serem
atendidos, Henrique, roído de curiosidade, tudo querendo saber, interroga:
- Os seus passos encaminharam-se para Melgaço,
suponho.
- Não, meu amigo. Na minha terra já não
tinha familiares chegados, apenas primos em terceiro grau. Fui para Lisboa,
para um lindo bairro chamado das Laranjeiras, pertinho do Jardim Zoológico,
para casa da minha irmã Ludovina; se tivesse ido ao Minho provavelmente
desertaria – não me agradava nada a ideia de ir combater para as matas dos
cafres. Medroso como eu era, amedrontado como andava, pessimista como poucos, não
me seria difícil passar a fronteira, dar às de vila-diogo.
O amigo ficou com algumas dúvidas
e pergunta, meio atarantado:
- Mas, se não possuía dinheiro, ia para
onde?!
Cândido,
apercebendo-se da contradição, responde:
- O drama era esse. O maldito metal. Sempre
a atrapalhar a minha vida. Enfim, sonhos! Durante esses dias pouco mais fiz do
que meditar. Ia de vez, em quando, até à janela, olhava o exterior como em uma
despedida definitiva. Uma manhã ouvi alguém a cantar. Parecia ser a voz da
sopeirinha, cujos patrões moravam ali defronte. Não me recordo nitidamente do
seu rosto, mas aquele som entrou em mim como um canto de sereia e apaziguou o
meu ânimo, acalmou a minha ira. Podia ser coincidência, mas até parece que a
melodia fora feita só para mim.
- Você é um romântico!
- Talvez seja. Sensibilizou-me tanto,
tanto, que peguei num papel e em uma caneta e escrevi os versos seguintes:
Rosa Maria
minha linda flor
eu a ti daria
todo o meu amor;
lindos olhos teus Maria
minha rosa em flor
eu por eles capaz seria
de matar, morrer, amor;
se ouvires dizer, Maria,
que uma bala me deu fim
reza sempre um padre nosso
em cada dia por mim;
vou partir para combater
em favor desta nação
vou à minha obrigação
desta pátria defender;
posso ter vida ou morrer
ter tristeza ou alegria
posso ainda voltar um dia
à minha terra natal;
não creias de mim o mal
se ouvires dizer, Maria;
eu um dia voltarei
à minha terra tão querida
cheio de força e de vida
e feliz ainda serei;
parto a cumprir uma lei
à qual fugir não posso
vou defender o que é nosso
o que é teu e da nação
e tu à noite, ao serão,
reza sempre um padre nosso;
posso muito tempo estar
sem te poder escrever
mas eu juro, podes crer,
que contigo hei de casar;
se uma bala me matar
ou tiver um outro fim
só por isso, só assim,
não cumpro o meu juramento;
tu reza sempre um momento
em cada dia por mim.
Henrique ouviu com algum assombro
estes versos. Comenta:
- Não lhe conhecia essa faceta, essa
veia poética. Ela adorou…
- Qual quê! A sopeira nunca leu este
ingénuo poema, o mais certo também era ela não saber ler, nem sequer soube da
minha presença naquele local. O nome que lhe atribuí podia ter sido outro
qualquer, simplesmente este soou-me bem ao ouvido e é ótimo para rimar.
- E depois, o que aconteceu? – interroga, enternecido, o nosso Henrique.
- Bem, vagueei pelas ruas da cidade de
Ulisses, olhar perdido e distante, coração amarfanhado, chocho e só. Podes
crer, meu caro amigo, que várias vezes me apeteceu escapulir, desaparecer do
mapa: mas iria para onde?! Logo a seguir seria preso, metido num barco ou num
avião e atirado na mesma para as matas africanas, desterrado – todos nós
tínhamos plena consciência disso. O regime não perdoava àqueles que o contrariassem.
Para evitar as fileiras do exército havia apenas duas maneiras: 1.ª - não
comparecer à inspeção militar e de imediato emigrar clandestinamente (se a sorte favorecesse o candidato a
emigrante este nunca vestiria a farda; se tivesse azar…); 2.ª - ter amigos
poderosos no sistema e através de um pedido sair livre da inspeção médica.
- E por amparo de mãe, por doença?
- Nessa época até os coxos e aqueles
que tinham falta de dedos nas mãos, desde que possuíssem o do gatilho, eram
considerados aptos! Somente os desprovidos de vista, os privados de pernas e
braços, os filhos únicos, cuja mãe fosse viúva e apresentasse uma declaração de
extrema pobreza, passada pela Repartição de Finanças e pela Junta de Freguesia,
alegando que ele era o seu exclusivo amparo, é que se livravam. De resto tudo
servia. Dou-te um exemplo: na minha Companhia havia um colega com a altura
aproximada de metro e meio – quase um pigmeu!
- Ouvi dizer que alguns indivíduos,
filhos de gente graúda, se safaram da tropa, pagando. Terá algum laivo de veracidade?
- De certo modo, já te respondi a essa
questão. Sabes, o vil metal compra quase tudo e a quase toda a gente! É de
admitir que alguns pais ricos, e influentes, tudo fizessem, tudo tentassem,
para livrar os seus rebentos da maldita e indesejável guerra colonial. Eu
dei-te o exemplo do ricaço, filho de proprietários de agências de viagens. Por
outro lado, há sempre alguém que aceita dinheiro em troca de favores. A
corrupção faz parte de qualquer sociedade. A honestidade, a moral, não é para
toda a gente – muitos aproveitam-se do lugar destacado que ocupam para
conseguirem obter rendimentos ilícitos. Há uma coisa que eu aprendi: a
ideologia, que nos obriga a ser coerentes, é posta de parte por alguns quando
lesa interesses materiais.
- Nem sempre o que se diz corresponde à
verdade – comenta Henrique, ainda na
verdura dos seus anos.
- A corrupção e a chantagem sempre
existiram, fazem parte da luta pela sobrevivência. Só se é perfeito quando tudo
se alcança, daí não haver ninguém nesse estado de pureza! Há santos nos altares
que foram refinados patifes; e alguns seres humanos morreram desonrados sendo
eles boas pessoas! Tudo faz parte de um percurso irregular, um caminhar aos
solavancos. Até o deus dos cristãos errou, segundo a bíblia: criou o universo,
criou o homem à sua semelhança, e o que aconteceu? Adão sentiu-se só e quis uma
companheira. Tiveram filhos: Abel e Caim, e, este último, mata, sem dó nem
piedade, o seu mano! E chamam a isso, perfeição?!
- O meu amigo Cândido é um filósofo. Eu
estou de acordo consigo em algumas coisas. A cunha, por exemplo: é uma
instituição nacional, todos a ela recorrem – uns para conseguir um bom emprego,
outros para subirem na carreira, outros até para obterem uma simples consulta
médica! Ninguém pode passar sem recorrer à maldita; além disso todas as sociedades
geram privilegiados. Os nossos pais ensinam-nos a ser corretos, bons cidadãos,
mas depois a vida não permite que a gente se sirva amiúde dessas virtudes! Se
nos comportamos sempre bem somos tidos por lorpas e todos nos enganam, porque
somos bonzinhos. É complexa a vida.
Cândido, depois de beber
calmamente a sua imperial, diz ao amigo:
- Caro Henrique, tu és muito jovem. Muita
coisa irás contemplar ainda neste mundo belo e diabólico, mas desde já te
aconselho: procura sempre o equilíbrio. O radicalismo não nos leva a lado
nenhum. Não embarques em fanatismos religiosos nem em ideologias baratas. A
vida é o somatório de muitos acontecimentos. Mas não falemos mais nessas
coisas, senão esgotamos o assunto e depois ficamos calados como mudos. Até breve. // continua...
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