ENTRE MORTOS E FERIDOS
(Dois Anos de Guerra na Guiné-Bissau)
// continuação de 4/6/2022...
2.º
Capítulo
CENTRO DE INSTRUÇÃO DE CONDUÇÃO AUTO
- Finalmente a hora da partida chegou. Muito triste, choroso,
amargurado, quase doente, apanhei a camioneta no Largo da Calçada, ou Largo
José Cândido Gomes de Abreu, em homenagem ao fundador do Hospital da Misericórdia,
conhecida por carreira, e depois o comboio em Monção, em segunda classe, para a
grande cidade do norte. O primeiro dia destinou-se a receber a fardeta cinzenta,
cujo capote pesava quilos – só em Abril ou Maio desse ano de 1965 é que nos
entregaram as novas fardas, de cor verde – e as instruções acerca do
funcionamento do quartel.
Tínhamos de conhecer os cantos à
casa, apreender as regras para as cumprir escrupulosamente. As fardas, por mais
estranho e absurdo que isso pareça, não as davam à medida do nosso corpo –
botas com o número 44 entregavam-nas, por vezes, a rapazes que calçavam o
número 39! Essa forma de distribuir os fardamentos mostrava-se, à primeira
vista, caótica, sem sentido, e quanto a mim, era, mas depois, já na caserna, tudo
se resolvia através da troca. Não seria isto também um teste à nossa
inteligência? Ao lançarem esta confusão, os militares de carreira iam
verificando como os jovens recrutas encontravam a saída do labirinto.
- Engenhoso! Genial! – reconheceu Henrique, até ali calado.
Cândido, ao ouvir a voz do seu
amigo, quase deu um salto! Imaginara-se sozinho, a discorrer sobre o seu passado,
matando-o se possível, esquecendo-o, pelo menos. Não estava só, e ainda bem.
Aquela amizade livrava-o do isolamento, libertava-o de pesadelos horríveis.
Logo a seguir continuou:
- Uma gritaria imensa atroava os ares;
entregues a nós próprios, extenuados e numa babel sem rumo, sentávamo-nos sobre
as caixas de madeira de pinho que no futuro nos iriam servir de roupeiro e
despensa. Essas caixas tornaram-se mais tarde motivo para muita rixa, pois os
filhos de camponeses e agricultores levavam nacos de presunto e chouriços da
sua casa, da sua adega, e metiam-nos ali; como cheirava, os improvisados ladrões
rebentavam as frágeis arrecadações, as que não tinham aloquete, e comiam
regaladamente essas iguarias. Quando descobriam o guloso gatuno, havia tareia
pela certa. Tinha de vir o cabo, ou o sargento de dia, apartá-los, de contrário
o sangue jorrava.
- O Cândido chegou a andar à bofetada
com algum colega?!
- Não vais acreditar! Um dia, ou
melhor, uma noite, quando me ia deitar não tinha roupa na cama! Que fazer?
Comprá-la não podia! Onde havia dinheiro para isso? Por outro lado, não podia
sair do quartel a essa hora. Fiz o que outros fariam nessa situação: procurei
uma cama onde não estivesse ninguém e levei a roupa para a minha. No dia
seguinte aparece um soldado e atira-se a mim! Andamos aos socos, eu até parecia
o Belarmino, e depois veio o cabo e separou-nos. Depois de tudo esclarecido,
fizemos as pazes.
- E a roupa? – interroga Henrique.
- Já não me lembro, mas penso que o oficial
dia resolveu isso. Os que furtavam as coisas – sobretudo fardas e calçado – era
para depois as vender. Não sei como conseguiam passá-las para a rua, é um
autêntico enigma, pois a vigilância era apertada!
Eu tinha imensas saudades da minha terra, da minha gente, dos meus
hábitos quotidianos, da minha equipa de futebol, da minha saborosa comida, do
jogo da sueca e dos matraquilhos. A Vila de Melgaço estava algures, longe,
muito longe. Eu sonhava. Primeiro começava a vê-la vagamente, mergulhada em
densas nuvens, de variadíssimas cores; depois, pouco a pouco, elas adensavam-se
de tal modo, que me ofuscavam totalmente a visão. Possuía asas e voava, sobre
os mares e montanhas, mas regressava sempre àquele sítio onde eu nascera; mas
quando me aproximava a minha vilazinha fugia, desaparecia como levada pelo
vento em fúria! Eu gritava desesperado: «Não,
não roubem o meu adorado Melgaço, eu preciso de ver o seu rosto, de respirar o
seu ar, de o abraçar afetuosamente.»
Acordava sobressaltado. Estava ali, naquele casarão de cimento, com
rapazes que se pareciam vagamente comigo, mas que não falavam a mesma
linguagem, embora utilizassem o mesmo idioma. Quem seriam? Tinham outros
costumes, vozes roucas, palavras rudes; ao falarem, denunciavam a sua origem;
palavrões obscenos faziam já parte do seu parco vocabulário; a agressividade
era inerente ao seu temperamento. Olhava para as suas enormes mãos e pareciam-me
garras de ave de rapina, prontas a sonegarem a qualquer momento, se me distraísse,
os meus escassos bens. Tive medo, confesso, mas não gritei. Esperar; a solução
para o meu infundado terror seria esperar. «O
tempo será o meu grande aliado», comentei em surdina.
A corneta tocou a alvorada. Seis da manhã. Levanto-me a correr, no meio
de uma algazarra ensurdecedora. Da camarata íamos para as casas de banho cortar
a barba, no meu caso uns pêlos que no meu rosto tinham aparecido clandestinamente,
sem aviso prévio, e tomar um refrescante banho. Antes fôramos buscar as
toalhas, umas brancas, outras amareladas, de tanto terem sido lavadas, de um
pano grosseiro, a imitar o linho. Todos nus. A vergonha, o pudor, iriam
desaparecendo, pouco a pouco. Depois do banho fardei-me e dirijo-me ao espelho.
Afinal, o meu esqueleto franzino e o meu pé miúdo, ainda não tinham crescido
para a vida de guerreiro!
- Você tinha vinte anos, era um homem –
comenta Henrique, quase esquecido, enterrado
na cadeira, bebericando cerveja e comendo uns tremoços.
- É verdade, fizera vinte anos havia
sete meses, mas o meu corpo era pequeno e magro, pouco mais pesava do que cinquenta
quilos!
- Depois engordou com o rancho – riu-se Henrique.
- Nem sequer fazes ideia do que era
aquela porcaria. Ao pequeno-almoço davam-nos um pão grande, chamado casqueiro,
para todo o dia, um púcaro de café com leite desnatado e um bocadinho de
margarina ou marmelada, feita, salvo erro, de maçã! Ao almoço e jantar um caldo
de couves, aguado, sem azeite, com uns bocados de carne, ou gordura de porco,
de terceira categoria, sem lavar, quantas vezes fora do prazo, provocando um
cheiro nauseabundo, e o presigo, carne ou peixe, acompanhado de batatas, arroz
ou massa. Tudo mal confeccionado e sem higiene. Muitas vezes na sopa apareciam
pedaços de piaçaba, que caíam da vassoura quando os faxinas – ou ajudantes do
cozinheiro – esfregavam as panelas. Não esquecerei jamais a primeira refeição:
arroz de polvo. Intragável! A cem metros de distância já se obtinha a
indescritível sensação de estarmos perto de uma fossa a céu aberto. Não comer,
seria o nosso fim; comer, era um sacrifício. De qualquer modo, não existia
alternativa. Comparecer às refeições e comer, ou fingir que se comia, era obrigatório
– fazia parte do regulamento. O homem, o ser humano, senhor do mundo mas não
senhor dele próprio, tem de se adaptar ao meio que o rodeia. Teríamos de nos
habituar, e quanto mais depressa melhor.
- Você é fidalgo! – ironizou Henrique, desejando desdramatizar.
- Nem por isso. A minha mãe era
cozinheira profissional, num hotel das Termas do Peso, e por isso eu estava habituado
a comer comidinha da melhor. Mas também te digo: por incrível que isso pareça,
alguns jovens das zonas rurais, campónios, maltratados pela vida dura do campo,
não estranharam. Pelo contrário: muitos deles até engordaram como texugos! Comiam
que nem labregos. Tudo que viesse à rede era peixe. Lembro-me de um que
aumentou o seu peso em vinte quilos bem medidos, no período de quatro meses. Parecia
um cevado!
Depois de um dia fatigante, exercício físico, manejo de armas, condução
de pesados, reunimos na parada. Eram seis horas da tarde e o corneteiro estava
pronto a tocar para a janta. Momentos antes mirei novamente a minha ridícula
figura no espelho. Sorri, sem querer. Que diriam os meus conterrâneos se vissem
este pequenino corpo enfiado naquele desmedido uniforme? Troçariam de mim, de
certeza absoluta! A corneta tocou. Era o relógio de ponto, o ditador
implacável, o Hitler mecânico. A partir desse dia andaríamos sempre ao toque
dela: para levantar, para as refeições, para os exercícios, para recolher, para
tudo!
Destroçar e refeitório. Desatei a
correr atrás dos outros. À nossa espera estavam os “velhos”; queriam rir à nossa custa. E riram! Tinham sido, no
passado recente, também eles, alvo de chacota, de gargalhadas mil. Vingavam-se.
Henrique não fizera a tropa,
porque quando tinha vinte anos a guerra colonial já terminara. Não precisaram
dele. Por um lado lamentava tal facto, pois dizia-se que quem não fosse militar
não era homem, mas por outro lado agradeceu, visto ter-lhe permitido estudar
sem sobressaltos. Perguntou:
- E os sargentos e oficiais, não comiam
com vocês?
- É óbvio que não, meu amigo; eles
possuíam refeitórios separados, a que chamavam messes, e aí, a comida, segundo
constava, era ótima. Servidos com delicadeza, com abundância… Até vinho bom
bebiam – nós bebíamos a zurrapa, vinho batizado e mesmo assim, pouco. Ao contrário
da maioria dos soldados, a sua pele era luzidia, bem tratada, o que só se
consegue através de uma saudável alimentação. Eu lembro-me de algumas crianças do
meu concelho, raquíticas, com pele de velhos, porque andavam mal alimentadas.
Permaneci no Centro de Instrução de Condução Auto (CICA-1) dois meses. Sessenta dias de intensos e temerários
exercícios: capacete metálico na cabeça, armas às costas… Sabes que muitos
rapazes apanharam uma doença qualquer no couro cabeludo por causa dos capacetes?!
- Não me diga? – exclamou Henrique, admirado.
- É verdade! Não punham nada entre o
capacete e o cabelo e assim os micróbios que havia na armadura passavam para a
raiz do cabelo, sobretudo quando se suava, o que acontecia diariamente. Alguns
ficaram sem um único cabelinho!
- E você, não apanhou o vírus?
- Não, porque eu colocava um lenço
enorme na cabeça; tinha nojo, asco, do capacete – já tinham servido, segundo
constava, na Primeira Grande Guerra, em 1917 e 1918, quando os portugueses
lutaram em França contra os alemães.
- Caramba! Eram antigos, os bichos!
- Todos os cuidados são poucos para
preservarmos a saúde. Mas o que mais me custou naqueles longos dois meses foram
os vexames, aquelas ordens que soavam como vergastadas no meu frágil corpo –
doíam por dentro: «Não pára. A correr, a
correr.» «Quem cair leva um pontapé no traseiro.» «Salta o galho, seu nabo!»
«Não sou capaz, meu aspirante.» «Filho da mãe, levas cinquenta flexões de castigo.»
E as humilhações eram contínuas: «Ó
recruta!» «Sim, meu sargento.» «Sabes andar de bicicleta?» «Sei, meu sargento.»
«Então vais varrer a parada!» A vassoura era enorme! Os prontos passavam e
riam-se, aquele riso sarcástico, que penetra fundo na alma da gente.
Quando queria sair à rua, o que raras vezes era permitido, tinha de
pedir no portão de saída ao oficial de dia, normalmente um aspirante ou alferes.
«Posso sair, meu alferes?» «Ora deixa-me
ver. As botas não estão mal engraxadas, não senhor, mas esses amarelos… deixam
muito a desejar.» «Meu alferes, estive quase meia hora a limpá-los, até brilham…»
Ele irritava-se, ou fingia: «Eh, pá!
Estás a gozar comigo? Vais limpá-los imediatamente.» «Sim, meu alferes.»
Cabisbaixo, resignado, lá ia eu outra vez para a caserna, dar mais uma
esfregadela nos metais da farda – parecia ouro a brilhar! O estômago podia
estar vazio, mas o exterior, esse tinha de estar bem tratado!
- Isso revoltava – reagiu Henrique com espontaneidade.
- Nada de armar em esperto, meu amigo,
isso ali não resultava. Executar as ordens, justas ou injustas, dadas por aqueles
seres sentados num pedestal, mais poderosos do que os deuses do Olimpo, e
calar. Tinham muito poder aqueles algozes, até nos podiam matar à porrada!
Houve casos em que isso ia acontecendo, depois argumentavam que o soldado era
anarquista, não quisera obedecer às suas ordens, enfim, ficavam sempre na mó de
cima. Os oficiais superiores, até ao general, davam-lhes sempre razão, mal do
soldado – ia parar à cadeia ou à enfermaria. A seguir, logo que melhorasse,
mandavam-no para a frente de batalha, para morrer!
- Era quase um assassínio!
- Mais ou menos. Camuflado, mas um crime,
sim…
- Tempos difíceis, meu amigo, tempos
difíceis.
- Podes crer. E como se não bastasse,
ainda tive de apanhar uma vacina que me levou à cama com febre. Colocaram-nos
em fila indiana, junto à enfermaria, e os enfermeiros – semelhantes a magarefes
– iam espetando nos nossos braços a agulha; minutos depois outros iam injetando
o malvado líquido. Alguns rapazes não reagiram bem à vacina e tombaram no chão,
desmaiados! Nesse dia assustei-me deveras. Pensei não resistir.
- Foi dose para cavalo! – aventou Henrique.
- Era precisamente isso que todos
dizíamos. Quase que nem um elefante aguentava. Os mais antigos, talvez para nos
gozar, ou quem sabe, com pena de nós, aconselhavam-nos a ir ao bar beber vinho.
«O álcool atenua o efeito», diziam
eles. Os enfermeiros, esses, pediam-nos que aguentássemos, pois dentro de uns
meses iríamos para África, e estas vacinas evitariam as febres que grassavam
com frequência naqueles climas quentes.
O quartel ficava paredes-meias
com o Palácio de Cristal e perto do rio Douro. Talvez por isso me tenha deixado
algumas réstias de saudades quando de lá parti. Podendo, ia até ao rio, ver os
pescadores pescarem, lembrava-me sempre o meu rio Minho, as margens mais bonitas,
mais verdes, aqui e ali surgindo uma fonte natural, água fresca, nunca mais
encontrei em parte alguma dessa água maravilhosa. O rio Douro era maior, mas
sujinho, coitado. As suas margens, no Porto, não são belas nem naturais. Construíram
casas abarracadas, onde vivem centenas de pessoas miseráveis e com pouca, ou
nenhuma instrução. No Minho era diferente: os arvoredos, os campos de milho e
de centeio, as vinhas, dão à paisagem um tom alegre e colorido. De um lado os
galegos e de outro os portugueses, umas vezes à pancada e outras vezes aos abraços!
O poeta monçanense João Verde
soube cantar em verso como ninguém essa proximidade/afastamento: «Vendo-os assim tão pertinho/a Galiza mail’o
Minho,/são como dois namorados/que o rio
traz separados/quase desde o nascimento…»
Durante esses dois meses de permanência no CICA-1 fiquei a conhecer
razoavelmente a capital do norte: as suas grandezas e misérias, as suas belezas
(monumentos extraordinários) e
fealdades (ruas estreitas e íngremes,
quase sempre sujas e mal cheirosas, gente bêbada e pouco educada).
- Mais misérias do que grandezas,
talvez? – pergunta Henrique, com redobrada
curiosidade.
- Na cidade média e grande está tudo
equilibrado. Mas estava eu a dizer… Ah! já me lembro. As montras das lojas eram
a minha atração favorita: atraíam-me, como os brinquedos atraem o bebé. Olhava,
bronco, embasbacado, para os objetos nelas expostos – um autêntico papalvo!
Aquelas luzes variegadas, os milhentos anúncios luminosos, fascinavam-me, arrastavam-me
para um novo mundo, para o sonho, para o devaneio…
- Estava a nascer em si um poeta.
- Mais um observador. Foi lá, onde vira
a luz do sol pela vez primeira o infante D. Henrique, que eu entendi verdadeiramente
o que queria dizer prostituição. Certo dia, já quase noite, caminhava
tranquilamente por uma rua esconsa quando uma esguia mão me puxa e voz roufenha,
voz de bagaço e de tabaco, me pergunta: «Não
queres vir comigo?!» Senti um calafrio a percorrer-me o corpo, tive receio,
e afastei-me rapidamente, como esquilo na mata quando se apercebe do perigo
iminente. A alguns metros de distância, ainda ouvi a criatura resmungar: «Chulo, paneleiro, cabrão!»
Instintivamente, rebuscando na memória frases que ouvira na infância e na
adolescência, quando alguém corria algum risco, e queria esconjurar o mal, pronunciei:
«Vade retro, Satanás!»
Henrique, até ali muito sério,
soltou uma estridente gargalhada! Depois disse:
- Eu não acredito! Você a fugir de uma rameira!
Não acredito!
- Tu és um homem da capital, habituado,
desde criança, a ver prostitutas, a observar o seu comportamento, a lidar com
elas, provavelmente. Eu não; na minha terra não havia nada disso. É certo que
havia mães solteiras, mas normalmente ficavam grávidas dos namorados, ou dos
patrões, e até há quem diga que dos padres! Na cidade do Porto, e aqui em
Lisboa, as mulheres de vida fácil vendem o corpo mediante um pagamento
pré-estabelecido! Têm um preço! Não há amor, atração física, nada! Nem sequer
se conhecem! A minha mente não está preparada para perceber esta atividade
humana.
- Você é um moralista!
- É verdade. Reconheço-me como tal. De
meia tigela, mas um moralista. Um antiquado, um conservador. Para mim, se possível,
só existiriam coisas boas no planeta. Amor, amizade, segurança, paz, verdade… O
ódio e a guerra não teriam lugar no meu universo.
- Um sonhador, é o que você é, Cândido;
a religião marcou-o imenso.
- É verdade, mas felizmente
libertei-me.
- Restam resquícios…
- Não, penso que não. Parece que foi
Marx que afirmou qualquer coisa como «a
religião é o ópio do povo». A minha vida agora pauta-se por princípios
filosóficos e racionais. Estou esperançado em que um dia, não muito longe, as
pessoas se tornem melhores, compreendam que a felicidade cabe num grão de areia,
existe nas coisas mais ínfimas e banais.
Gerou-se um breve silêncio. Então Henrique
interveio, a fim de salvar a situação:
- Desculpe Cândido. Por minha causa
interrompeu a narrativa.
- Não faz mal. Não te lamentes. A
reflexão também faz parte da vida. Estava a dizer… Sabes que meditei profundamente
no caso e contei-o depois a um colega de camarata. Por pura coincidência, ele
nascera e residia no Porto. Explicou-me tudo sobre a mais antiga “profissão” do mundo e também sobre a
homossexualidade. Ele próprio, confessou-me, arranjava uns cobres “indo” com invertidos! Diz-me ele, com
uma desfaçatez tremenda: «Eh pá! é
preciso um gajo desenrascar-se!» «E
não tens nojo»?! – indaguei. «Nojo?!
Há panascas que usam perfume como as mulheres.» Não quis prolongar essa
conversa escabrosa, nojenta... Já estou um bocado baralhado… Onde é que eu ia?
- Disse-me que os dois meses no CICA-1
estavam prestes a terminar.
- Pois é. A recruta. Findou. Sessenta
dias terríveis, mesquinhos, para esquecer. A chamada especialidade viria a
seguir, em Infantaria 6. Para trás ficava muito sofrimento, mil vexames, um
cerimonioso juramento de bandeira, cuja fórmula resumiam assim, por reinação, por
brincadeira, alguns recrutas: «juro e
jurarei que ao pré e ao rancho jamais faltarei».
Contudo, não foi tudo mau: o
nosso instrutor de condução era uma boa pessoa. Soldado, como nós, estava no
quartel há pouco mais de um ano. Como tinha a carta de condução de pesados e
ligeiros, e o exército precisava de instrutores, por ali ficou. Embora tivesse
algum poder sobre nós, os instruendos, não o exercia ditatorialmente; era de
opinião de que nem todos têm jeito para conduzir um carro, sobretudo esses
monstros pré-históricos que o exército teimava em utilizar. Quantas vezes
ficavam pelo caminho. O mecânico militar tentava dar-lhes conserto, mas, coitados,
a sua vida útil tinha terminado. Sentíamos imenso respeito por ele, e muita
estima. Tirámos algumas fotografias juntos, que eu guardo com carinho.
- Ao longo da vida vão-se encontrando
pessoas com bom coração.
- É verdade. Embora raras, mas
aparecem. Conheces-me bem e sabes que eu não sou muito expansivo, mesmo assim
tenho conseguido algumas amizades sólidas. Bem, a tarde vai caindo, vem a
noite, a hora do jantar, já estou com o estômago a dar horas, amanhã é outro
dia de trabalho e de estudo.
- No próximo domingo cá estaremos de
novo - promete Henrique, com entusiasmo.
- Não faltarei por nada deste mundo. Só
uma grande desgraça, um imprevisto, me impediria de comparecer.
- Então adeus! // continua...
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