ENTRE MORTOS E FERIDOS
(Dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
Romance histórico
Autor
Ficha técnica
Título: Entre Mortos
e Feridos
Autor – Joaquim
A. Rocha
Capa – fotografia do
autor
Fotografias – vários
autores
Execução gráfica –
Tiragem –
Depósito legal –
ISBN –
Data de edição –
Correio
eletrónico: joaquim.a.rocha@sapo.pt
Blogue: Melgaço,
Minha Terra
Telemóvel: 965815648
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publicar
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Entre Mortos e
Feridos (romance)
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(romance)
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Melgaço (biografias)
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A Minha Vida em Imagens
A minha religião e
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Frágeis Elos (2.ª
edição)
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Monges e Frades
Os Ossos de Camões (tese de licenciatura)
O Fim de Um Sonho (conto)
Obras
publicadas
Livros
Frágeis Elos (uma
história familiar)
Dicionário
Enciclopédico de Melgaço (I e II volumes)
Lina – Filha de Pã
(romance)
Os Meus Sonetos e os
do frade
Os Novos Lusíadas
(…)
Melgacenses na I
Grande Guerra,
e em outras guerras
do século XX
(em colaboração com Walter Alves)
Separatas
A Origem de Algumas
Famílias Melgacenses
A Febre Tifoide e os
seus Protagonistas
Tomás das Quingostas
(200 anos do seu nascimento)
A Provável Origem de
Melgaço e de Paderne
Prefácios
nos livros de José A. Cerdeira e do Dr. Augusto César Esteves:
Tomaz das Quingostas
O Buraco da Serpe
A Adversidade por
Madrasta
O Sonhador dos
Montes da Aguieira
Nas Páginas do
Notícias de Melgaço
Colaborações
No Boletim dos
Serviços Sociais da CGD
No Boletim Cultural
da Câmara Municipal de Melgaço
No jornal “A Voz de
Melgaço”
No jornal “Melgaço
Hoje”
No jornal “Fronteira
Notícias”
“Diário do Minho”
Artigo sobre o
santuário da Peneda no livro Lugares Sagrados
de Portugal I, editado pelo Círculo de
Leitores em 2016.
*
***
Advertência
A narrativa que a seguir vai ler, caro leitor,
contou-ma um antigo combatente da guerra colonial, hoje um homem já com alguma
idade. Entregou-me cerca de cinquenta folhas de papel manuscritas e disse-me: “Leia isso; pode ser que o inspirem a
escrever um romance”.
Fez questão de que o
seu nome de batismo não figurasse no livro e não quis também que o verdadeiro
número do seu batalhão e da sua companhia fossem revelados, mas permitiu que o
nome da sua terra de nascimento aparecesse destacado.
Os topónimos das
localidades mencionadas são todos autênticos, como genuínas são as designações
dos rios.
As datas poder-se-ão
considerar corretas. Os dias de viagem – seis – e o nome do paquete – Uíge –
são igualmente dados exatos.
Este texto não se
reclama de histórico, no sentido estrito de ciência, visto que a ficção
romanesca teve aqui também cabimento. Se quisesse ser imodesto dir-vos-ia que o
comparo àquele outro, já famoso, de Fernão Mendes Pinto, onde a realidade, a
fantasia e a ficção se misturam e não se sabe bem onde uma começa e as outras
acabam.
Pode
ser lido como um livro de ação, de pura guerra, inspirado em factos
emocionalmente vividos, mas também como o percurso de um humilde artesão que,
obrigado a abandonar o seu mester, vai relacionar-se com outro tipo de
indivíduos, embora patrícios, isto é, da mesma pátria, com uma língua comum,
praticamente da mesma idade, e a pouco-e-pouco se apercebe que só através do
relacionamento se poderá apreender as subtilezas que definem as diferenças de
caráter de cada um deles. E isso tem a ver, sobretudo, com a maneira como foram
criados, o meio que os rodeia, rural ou urbano, enfim todo um percurso de
vivência ou mesmo o seu indeterminismo.
Espero sinceramente que não seja uma frustração para o leitor a leitura
desta singular e despretensiosa obra literária.
Quero também sublinhar que ela não foi escrita contra ninguém em
particular; é, assim o espero, mais uma acha para a fogueira da luta contra
todos os conflitos e a injustiça.
O seu objetivo principal será dar a conhecer a toda a gente que o deseje,
sobretudo aos mais novos, as aventuras e desventuras de um soldado, em especial
aquelas que viveu no continente africano, durante cerca de dois anos, aquando
do conflito armado entre as forças de libertação e o exército português, na
então “província” da Guiné.
Segundo as obras da especialidade, esta
palavra «Guiné» deriva da povoação Gená, Genua, Ghenea, Djenné, Jenné, Jani ou
Geni, fundada cerca de mil e quarenta, da era cristã, nas margens do Níger,
grande centro comercial, antes de ser abafada pela prosperidade de Tombuctu.
Este território foi descoberto, ou melhor, conquistado pelas armas,
ocupado, uns anos antes do infante Dom Henrique morrer em 1460, ou seja, em
1446, por Nuno Tristão, acabando este por ser abatido pelos indígenas. Os felupes,
tribo guineense, foram contactados por Álvaro Fernandes, também em 1446, ano em
que por lá andavam Diogo Gomes e Cadamosto, no reinado, portanto, de D. Afonso
V (1438-1481). No ano anterior, ou seja, em 1445, já Dinis Dias tinha atingido
toda a costa da Guiné até ao Cabo Verde.
O nosso bem conhecido cronista do reino, Gomes Eanes de Zurara, que
substituiu nessas funções a Fernão Lopes, servindo-se de relatos individuais,
escreveu a «Crónica da Guiné», obra fundamental para o estudo dessa ex-colónia
portuguesa.
«O objetivo da obra é dar o conhecimento da conquista da Guiné enquanto
facto realizado pelo infante e feito criador da atlantização e novo destino de
Portugal…» (Luís
Filipe Barreto, in Gomes Eanes de Zurara e o problema da Crónica da Guiné,
STVDIA n.º 47, página 320).
“A Guiné Portuguesa
foi uma das nossas colónias onde mais duramente se combateu desde o início da
sua descoberta. Pode dizer-se que só há trinta anos foi inteiramente submetida
ao nosso domínio efetivo. A pacificação foi levada a cabo pelo então capitão Teixeira
Pinto.”
“Também ali (na Guiné) se procede a grandes obras
públicas – estradas, hospitais, escolas, serviços de esgoto e abastecimento de
água e outras obras de higienização, bairros de habitações para indígenas e
europeus, etc.”
“A nossa província
da Guiné, cuja extensão não ultrapassa a do Alentejo, é uma das mais prósperas
sob o ponto de vista agrícola. A terra é fértil e copiosamente regada. Produz
principalmente amendoim, para o fabrico de óleos, e arroz. Possui ainda
excelente madeira para carpintaria e marcenaria.”
Tudo isso se pode
ler no jornal “Noticias de Melgaço” número
763, de 20/01/1946, escrito por um ferrenho adepto do regime corporativista,
que, provavelmente, nunca pôs os pés nesse território africano.
A área da Guiné-Bissau ronda os 36.000 km2 e a sua população não
ultrapassaria (1998) um milhão de habitantes. O clima é tropical húmido, muito
propício a doenças, das quais talvez as mais conhecidas, e que causam
anualmente mais vítimas mortais, sejam o paludismo, varíola, lepra e febre-amarela.
A guerra assemelha-se a Cila: «um monstro eterno, terrível, doloroso e
feroz, contra quem não se pode lutar, nem há defesa possível.»
Homero
O poema que a seguir vou transcrever dá-nos uma ideia dos sentimentos
que provoca a guerra no ser humano. Mas então, por que há guerra? De uma
maneira geral, quem a provoca, fica na retaguarda, a enriquecer com os chorudos
negócios que então se fazem. Nas fábricas labuta-se incansavelmente para
produzir armas, munições, máquinas poderosas, instalações militares; nos
laboratórios investigam-se novas armas mortíferas; nos campos trabalha-se sem
descanso a fim de obter alimentos para as tropas. Enfim, tudo mexe, tudo se
consome, e os empresários sem escrúpulos vão aumentando o seu pecúlio,
tornam-se senhores do mundo! E o povo? Esse morre aos milhões, pelo canhão, pela
fome e pela doença! As consequências de uma guerra prolongam-se por muitos
anos. E agora, com as terríveis bombas atómicas, até o próprio planeta está em
risco! E depois dizem que há deuses? Onde estão eles? Se os houvesse não permitiriam,
com certeza, tais atrocidades contra os seres vivos, contra a natureza. Não,
não existem. Ninguém tenha ilusões a esse respeito.
As religiões também beneficiam
com a guerra! É nessas ocasiões que aliciam mais pessoas, descrentes do humano;
viram-se para o além, para uma suposta tábua de salvação, e abraçam a primeira
igreja que lhes surge no caminho. Depois são sugados até ao tutano! E as revoluções
proletárias não vingam, porque no seio dos trabalhadores há sempre aqueles que
logo que começam a ver a cor ao dinheiro vestem outra casaca, passam para o
campo oposto. Querem poleiro, e quando se apanham na mó de cima, parecem
outros, já nem sequer reconhecem os antigos colegas. Tornam-se anti socialistas
ferrenhos e terríveis capatazes! Vendem a alma ao diabo, tal como Fausto. Não
conhecem a coerência e muito menos a honestidade de princípios. Enfim, o ser
humano é volúvel, bailarino, incapaz de percorrer um só caminho. Anda aos
ziguezagues, como a cobra, e como o réptil vai lançando o seu veneno aqui e
ali, provocando a morte aos mais incautos.
Bem, vamos ao poema. Não é nenhuma obra-prima, nem a isso aspira. O que
a sua mensagem quer transmitir é simples: todos aqueles que são contra a guerra
unam-se, previnam-se, não se deixem iludir pelas palavras do general, do
político, do empresário ganancioso, ou até do filósofo da desgraça. Não
aceitemos a diabólica frase «se queres a
paz faz a guerra!» Não! A guerra jamais resolverá os nossos problemas; só
traz malefícios, atrasa o desenvolvimento, embrutece.
Vamos finalmente ao poema:
Tu és a guerra
que a morte encerra
que o amor destrói;
tu és a serra
que a alma aterra
e não te dói;
és anti vida
árvore despida
coisa sem cor;
vives de sangue
e mesmo exangue
nunca mais morres;
vives para sempre
na nossa mente
nas veias corres;
foge de nós
dá-nos a voz
que nos roubaste;
torna-te ausente
deixa esta gente
que não criaste;
vai-te por fim
vai-te de mim
de todos nós;
queremos viver
não mais sofrer
vai-te… algoz!
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*
1.º Capítulo
A CAMINHO DA TROPA
Estávamos no início da primavera. Anos
oitenta do século XX. Era domingo. Numa mesa da esplanada de um velho Café, no
Rossio, o Café Suíça, famoso em Portugal e mesmo além-fronteiras, dois homens
conversavam animadamente. Um era alto, muito jovem ainda, e o outro mais velho,
de estatura média, olhar melancólico. Ali perto via-se o Teatro D. Maria II,
bastante danificado, a precisar de obras urgentes, indivíduos de raça negra vendendo
alguns produtos exóticos, e não só; do outro lado estava o Café Nicola, onde
Bocage, segundo dizem, passava horas, contando anedotas e lendo alguns dos seus
mais picantes, até obscenos, poemas. Um dos conversadores distraiu-se
momentaneamente ao passar muito perto uma bela alfacinha, de mini saia.
Apercebendo-se da falta, da descortesia, solicita:
- Perdão! Dizia-me você, amigo Cândido…
- Dizia-te eu, caro Henrique, que em
hoje em dia a vida militar, a chamada tropa, é quase uma brincadeira, e ainda
bem, comparada com a que existia antes de 25 de Abril de 1974. A guerra que se
travou durante treze longos anos entre as forças armadas portuguesas e as
guerrilhas das ex-colónias: Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, determinava
métodos de treino exaustivos, por vezes até violentos, obrigando o manso
soldado a ser uma espécie de legionário romano, um samurai, agressivo, pois a
vida que ele iria enfrentar em África seria de facto muitíssimo exigente,
excecional mesmo! Dois e três dias sem quaisquer alimentos (as rações de combate, compostas por
conservas de carne e peixe, poucos as conseguiam tragar, devido em parte à sua
má qualidade; apenas se aproveitava o leite com chocolate e as bolachas, embora
estas fossem muito secas), e, somente, um litro de água para o mesmo período (a
água que se encontrava pelo caminho era péssima e ainda por cima podia conter
veneno, ali posto pelo inimigo); caminhadas sem fim, por matas densas
e perigosas; calor abrasador e constante… Enfim, o sofrimento humano na sua
máxima expressão.
Tudo por causa de um regime
míope, fora do tempo e da lógica – um regime cem por cento absurdo, cujos protagonistas:
Salazar, Caetano, e seus acólitos, servindo de péssimos conselheiros, não
souberam, ou não quiseram, ver as realidades, acompanhar o progresso das
nações. Condenaram à morte e ao padecimento infame, ignominioso, milhares e
milhares de jovens, e levaram o luto a muitas e muitas casas portuguesas e africanas.
- Estou plenamente de acordo – disse Henrique, comovido.
- A teimosia, o rancor, a vaidade
torpe, o orgulho mesquinho, paralisava-lhes o sentido da visão; o coração
gélido, granítico, estiolava o seu sentir; os ouvidos moucos, barrava-lhes a
audição.
- Ainda tentaram derrubar o regime, mas
não conseguiram…
- É verdade. Houve algumas tentativas,
mas falharam estrondosamente.
- Pudera! Segundo dizem eram
anarquistas, os autores dos atentados.
- Parece que sim, pois os comunistas do
PCP recebiam ordens de Moscovo, e só atuavam de acordo com elas. A União
Soviética não desejava criar mais problemas com os Estados Unidos, ambos se
temiam. Outrora, depois de D. João II, o planeta esteve dividido entre Portugal
e a Espanha, através do Tratado de Tordesilhas; atualmente pertence a essas
duas superpotências.
Cândido, depois de uma breve
pausa, esvaziando paulatinamente o copo de cerveja, continuou:
- Com o início da guerra colonial, em
1961, as famílias lusitanas assustaram-se deveras. Muitos jovens, sobretudo da
província, fugiram apavorados. Para quê combater em Africa? – perguntavam-se!
Buscaram terras da outra Europa:
França, Alemanha, Suíça, Bélgica, Luxemburgo, etc., e também da América, sobretudo
o Canadá; qualquer país seria bom, desde que houvesse paz. Preferiam o trabalho
rude, bruto, quase a escravatura, a uma guerra que pouco ou nada lhes dizia.
Além disso, sempre amealhariam algum dinheiro.
- As gentes provincianas viram sempre o
continente africano como terra de negros, para onde embarcavam alguns colonos
brancos – fugidos da lavoura ingrata, da fome ruim e cíclica, com o objetivo de
conseguirem alguma fortuna, o bem-estar – ou os condenados ao degredo; nunca
sentiram Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, como terra portuguesa, apesar de
todas as propagandas do regime salazarista... – lembrou, afoitamente, Henrique.
- É completamente verdade o que acabas
de dizer. Mas voltando aos jovens que “saltaram” para o estrangeiro. Alguns
desses países europeus também já tinham sentido na pele, durante quase seis
anos, de
Nova pausa, mais uma imperial,
acompanhada de tremoços, porque o marisco, o verdadeiro, não o do Eusébio, era
caro. De repente, Henrique pergunta:
- E você, Cândido, por que não emigrou?
Colhido de surpresa, titubeou, mas
acaba por responder:
- Eu… bem, não tendo os dez, ou onze, mil
escudos para o passador, isto é, para a pessoa, ou pessoas, que se encarregavam
de levar para o estrangeiro os candidatos a emigrante, clandestinamente, lá
vou, como um tenro cordeirinho, gado sob a canga do dono, à inspeção militar,
ficando, como seria de esperar, apurado para todo o serviço.
E continuou, emocionado:
- Em Janeiro de 1965, cabeça rapada…
Aqui, Henrique interrompeu-o, para
lhe perguntar:
- Era obrigatório, nesse tempo, ir sem
cabelo algum?
Cândido riu-se, e respondeu-lhe:
- Não! Eu não quis entregar o meu basto
couro cabeludo a um qualquer barbeiro improvisado, daqueles que se geravam no
quartel. Na minha terra havia bons barbeiros, mais competentes, mais humanos.
Na tropa, segundo me tinham informado, o soldado ficava a sangrar que nem um
porco no dia da matança!
- Estou a ver… observa Henrique, com um longo sorriso nos lábios.
- … Levava a guia de marcha na
algibeira, nas mãos carregava uma pequena e retangular mala de cartão. Coitada;
para ela este acontecimento vinha em boa hora, pois viajara tão pouco!
Henrique, irónico, pergunta:
- E a barba, ia com ela à Fidel?
Cândido responde com alguma tristeza:
- Pobre de mim! Era imberbe! Ela
apareceria, timidamente, como as frutas serôdias: fora do tempo! Mas continuemos:
- deixo a minha querida cidadelha, amargurado, lágrimas nos olhos… Não te rias,
chorei mesmo! – e entro na camioneta que me transportará até à estação do
caminho de ferro, em Monção; aí tomo o comboio descendente, que me levará até à
cidade invicta.
- Deve ser uma sensação estranha – diz Henrique, como falando para si próprio.
- Podes crer que é. No percurso vou
encontrando outros recrutas, mancebos, com os quais, timidamente, enceto
conversa e início de forte ou efémera amizade. Futuramente serão, tal como eu,
conhecidos e chamados pelos topónimos das suas terras de nascimento, ou pelos
respetivos números de caderneta. Chegados à grande cidade do norte, já amigos,
lá vamos para o quartel em grupo. Algumas pessoas do povo, ao verem-nos passar,
comentam com ar compassivo: «mais carne
para canhão – infelizes!»
Henrique, silencioso e atento,
pensava para si mesmo que bom fora ter nascido uns anos depois; quando a guerra
terminara tinha ele dezassete anos. Como estudante, ainda experimentara alguns
dissabores, mas nunca fora preso, felizmente. Curioso, perguntou:
- Como sabiam onde ficava o quartel?
- Não sabíamos; íamos perguntando aos
tripeiros, pelo caminho. Lá chegados, atabalhoadamente, apresentámos as nossas
credenciais a um homem fardado, com divisas, mais tarde soubemos que era
sargento. À primeira impressão, pareceu-nos arrogante e autoritário, com o rei
na barriga. Dá-nos as primeiras ordens, que soam a duras chicotadas: «Para a parada, formar imediatamente.»
Assustados, como raposas
acossadas, sem sabermos bem o que era a formatura, embora alguns na escola já
tivessem andado na mocidade portuguesa, obedecemos prontamente, como autómatos.
O sargento equivalia a uma espécie de tratador de animais no circo – tentava
domesticar-nos para depois nós nos ajoelharmos doce e passivamente perante ele e
demais superiores, cumprindo as suas ordens sem pestanejar. Mais tarde viemos a
saber que havia dois tipos de sargentos: os que tinham alguns estudos e aqueles
que apenas tinham a quarta classe.
- E qual era a diferença? – pergunta Henrique, com imensa curiosidade.
- A diferença é abismal. Os primeiros
entravam na tropa como cabos milicianos; depois da recruta e especialidade
passavam a furriéis milicianos; no fim do serviço militar, por várias razões,
entre elas terem gostado daquela atividade, ou aspirarem a postos elevados nas Forças
Armadas, requeriam a sua continuação e passavam a sargentos – normalmente
atingiam o máximo nesta classe, e alguns deles chegavam mesmo a oficiais. Andavam
quase todos nas secretarias.
No caso dos segundos, os que
apenas podiam apresentar a terceira ou quarta classe do ensino primário como
habilitações, ingressavam na tropa como simples soldados recrutas. No final do
serviço militar, sem qualquer expectativa de futuro, a não ser voltarem para o
campo ou para a fábrica, apresentavam um requerimento e ficavam na tropa.
Passavam primeiramente a cabos e só mais tarde, muitos anos depois, após
concurso, a sargentos – mas muitos deles não conseguiam chegar lá! Eram
conhecidos por “chicos” ou “lateiros” e raramente iam para os serviços administrativos;
a maior parte dava instrução aos recrutas, ou eram motoristas de um oficial
superior. Eram pouco cultos, salvo raras exceções. Eram estes que davam ordens
por tudo e por nada aos magalas!
- Mas vocês, nessa altura, já eram
obedientes por natureza – observa
Henrique.
- Nem todos. Os do meio rural, sim; os
da cidade, porque também lá havia alguns, eram lixados. Com vinte anos apenas,
já tinham vivido muita coisa. Mas voltando ao sargento: no quartel, tornava-se
um reizinho! Dava ordens à direita e à esquerda, gritava, gesticulava, enfim
estava no seu mundo.
- Vocês andavam em uma fona! – comenta Henrique, ironicamente.
- É verdade; numa roda-viva! Não nos
dava descanso!
- Havia exceções – aventa o moço.
- Naturalmente. Conheci alguns desses sargentos,
humanos, atenciosos. Ficaram no exército porque ganhavam mais ou menos e
usufruíam de algumas regalias: alimentação, vestuário, ordenado mensal... Com a
quarta classe, muitas vezes obtida como adulto, no próprio exército, não teriam
grandes hipóteses de arranjar bons empregos, de angariar uns cobres, a não ser
na emigração; assim, com aquela patente, ficavam praticamente equiparados a
professores do ensino primário! O trabalho não os matava; aquilo para eles já
era rotineiro. Além disso, tinham licenças a fim de irem gozar umas férias e
visitar a família.
- E a guerra?
- A guerra trouxe-lhes alguns
benefícios materiais, embora arriscassem – não todos – a vida. Mas continuando…
Fizemos vários exercícios antes de envergarmos as cinzentas fardas: de escrita,
de cálculo, de agilidade mental e visual (os chamados testes psicotécnicos), e os imprescindíveis
exames médicos.
- Passou a tudo, com uma perna às
costas – arriscou Henrique.
- Passar, passei, mas não foi fácil. De
acordo com aqueles que analisaram as minhas provas, eu daria um razoável condutor
auto rodas. Seria, depois de longos treinos, a minha “ilustre” especialidade. Nunca, até então, tinha conduzido um carro,
nem sequer fazia a mínima ideia do que era pegar num volante de um automóvel!
Eu era pobre como Job, mal ganhava para comer e vestir, quanto mais para ter
carro. Na minha pequena vila somente meia dúzia de pessoas possuía automóvel: o
juiz, o médico, o doutor delegado, um ou dois padres, e os contrabandistas
ricos. Estes últimos, sim, possuíam carros ligeiros, e também pesados, nos
quais transportavam as mercadorias para Espanha.
- «Terra
de raia, terra de contrabando» - aponta Henrique,
filosoficamente.
- Assim é, meu amigo. Os espanhóis,
durante a guerra civil, que durou, como sabes, de
- Há quem diga que houve corrupção… - acicata o rapaz.
- Houve… e muita! O soldado da
Guarda-Fiscal ganhava um ordenado de miséria. Se fosse solteiro, e vivesse em
casa dos pais, ia-se aguentando; mas quando casava, e vinham os filhos, o
vencimento não dava para nada. Na década de sessenta auferiam pouco mais do que
mil escudos por mês! Só dava para a bucha! A mulher, pouco mais do que
analfabeta, não tinha emprego, tratava da comida, da roupa, dos filhos… e da
horta; quase todos possuíam uma hortinha onde colhiam hortaliça (couves, repolhos, alface), cebola, tomate,
pimentos, etc.
A instrução dos filhos não ia além do ensino primário, pois mandá-los
para a cidade – Viana do Castelo ou Braga – era privilégio de poucos. Não
causava qualquer surpresa ver-se um descendente de um elemento da Guarda-Fiscal
a trabalhar na agricultura, ou como simples empregado de balcão, sobretudo nas
cidades de Lisboa e Porto, ou noutras atividades humildes. Os empregos bem
remunerados e de prestígio estavam nas mãos dos grandes senhores.
- E não foi sempre assim? – pergunta Henrique.
- Suponho que sim, mas não está certo.
A minoria, tudo domina; a maioria trabalha e obedece!
- Nesse caso… – impacientou-se Henrique, já cansado de tantos rodeios.
- Como ia dizendo, os guardas, segundo
consta, fechavam os olhos mediante uma verba paga pelos grandes contrabandistas,
porque aos pequenos, como não davam um centavo, a esses, se os apanhassem, não
lhes perdoavam: tudo apreendido e multa para cima. Alguém tinha de desempenhar
o papel de bode expiatório do sistema. Mas voltando ao assunto inicial…
Aqui, Henrique, olhando para o relógio, dá
um pequeno grito:
- Santo Antoninho! Tenho de me
encontrar com a Rita, a minha prima. Ia-me esquecendo. Desculpe Cândido, a
conversa estava interessante, mas será retomada na próxima oportunidade, se
assim o desejar.
- Vai-te embora, homem; não se deve
fazer esperar as senhoras, sobretudo as primas – comenta com graça e ironia. - Voltar-nos-emos a encontrar no próximo
fim-de-semana.
Henrique, com um sorriso de orelha a orelha,
diz-lhe:
- Com pena minha, a Rita já tem noivo.
Para que saiba, eu não tenho sorte nem com o jogo, nem com as mulheres.
- Pobrezinho! Que pena eu tenho de ti.
E assim se despediram, a rir.
Cândido
ficou só e pensativo. Sempre que abordava o tema da guerra ficava triste, absorto,
incapaz de reagir durante algum tempo. Aquela ferida dolorosa funcionava como uma úlcera; só o tempo,
pensava ele, seria o remédio para a cura. De qualquer forma tivera sorte, não
fora ferido, estava ali, vivo e com alguma saúde, apesar daquelas dores de
estômago, que, de vez, em quando, o incomodavam. Quantos companheiros vira
tombar, quantos tinham vindo para a metrópole feridos. Quantos! O melhor era ir
dar uma volta pela cidade, ver as montras na Rua do Ouro e Rua Augusta, subir
depois ao Chiado, à tardinha acendiam as luzes, que bonito tudo aquilo ficava,
era sempre festa. Na sua terra, a mais bonita do mundo, mas medieval, coitada, não
havia luzes à noite. Candeeiros aqui e ali, alguns com as lâmpadas fundidas;
mal alumiavam as poucas ruas que havia. As lojas não tinham praticamente vitrinas,
e as que tinham não estavam decoradas – ninguém se importava com isso!
Olhou para o relógio, a sua “cebola”, como
o designava, e alarmou-se: estava na hora de jantar. Os restaurantes ao domingo
não gostavam de fechar tarde – cliente que não chegasse a tempo, não era
atendido. Claro que havia restaurantes que só encerravam às tantas, mas esses
eram os de luxo, não eram para a sua magra bolsa. Ele ia às tascas, às
tabernas, sentava-se naquelas mesas quadradas, com uma toalha de pano ruim, aos
quadradinhos, que já fora lavada milhares de vezes. Já o conheciam:
- Então que vai hoje, senhor Cândido?
- O senhor Sousa já sabe: o mesmo de
sempre. Para não variar. Olá menina Quitéria, sempre linda.
A rapariga ficava ruborizada, um piropo
daqueles sabia-lhe bem, embora pensasse de si para si que dali nada viria de
concreto, de namoro ou casamento. Canté! Com um empregado de escritório. Ela,
apenas com a 3.ª classe, estava condenada a casar com um moço de mesa, como
ela, ou com um operário, ou talvez, quem sabe, com um estivador, profissões
muito mal remuneradas e de baixo prestígio.
Passado
pouco tempo era-lhe servido o frango com arroz e batatas fritas, um simulacro
de salada: alface, tomate e cebola, muito vinagre e pouco azeite, ruim, o pior
que havia, misturado com óleo, que ficava mais em conta. Depois do jantar dava
mais uma volta pelas ruas, pejadas de gente, e ia deitar-se. O quarto era
pequeno, a cama pequeníssima e pouco confortável. Quem sabe se um dia a sorte surgiria,
sorrateira; comprava o seu apartamento, deitar-se-ia numa cama larga, ao lado da
sua mulher, bonita, sorridente, culta… Quem sabe?
No dia seguinte, segunda-feira,
levantou-se às seis e meia da manhã, ainda ensonado, bebera-lhe bem no dia
anterior, e dirige-se à casa de banho a fim de cortar a barba, agora já
composta, e tomar o seu duche. Como a casa tinha mais hóspedes, teria de
esperar a sua vez, com paciência. Haveria que dar tempo ao tempo, viriam melhores
dias, a esperança era a sua companheira inseparável. Já passara por pior!
A semana passou-a como sempre:
escritório de dia e aulas à noite, na Escola Comercial Veiga Beirão. Aquele
curso era interessante, permitir-lhe-ia ser ajudante de contabilista, e o ordenado seria melhor
do que agora, que mal dava para comer e pagar o quarto. O grande problema
residia nos professores: alguns mal preparados cientificamente, outros, embora
com grandes conhecimentos, estavam cansados depois de um dia de trabalho no Banco
ou na Companhia de Seguros. Enfim, o ensino noturno era o parente pobre do
sistema educativo. O esforço individual era a chave para obter bons resultados
– sem ele ficar-se-ia pelo caminho. Namorar não queria, era ainda cedo; quando
ganhasse bem, pensaria nisso. Na terra tivera um princípio de namoro, mas fora
informado de que ela já casara com um emigrante. «Melhor!», pensava ele; «assim
não tenho compromissos com ninguém, sou completamente livre.» Claro que isso
disfarçava uma profunda frustração, mas não queria dar o braço a torcer. Aquela
rapariga, de uma beleza ímpar, dera-lhe a volta ao miolo, mas ele, tímido, não
agira a tempo, e perdeu-a. Agora já era tarde de mais. Provavelmente já seria
mãe de um ou dois filhos, com nomes franceses… Enfim, o melhor era esquecer.
No domingo, tal como combinara com Henrique,
lá foi ter à esplanada e sentou-se à espera do amigo. Sentia uma ânsia imensa
de lhe contar tudo, desabafar, desentulhar aquela amálgama de mazelas que lhe
obstruíam o peito. Quando ele se aproximou, disse-lhe, a rir:
- Já pensava que não vinhas; deves
estar farto de escutar a minha insípida história.
- Não diga isso, nem a brincar. A sua odisseia
militar é digna de ser escutada. Pena é que durante a semana a gente não se
possa encontrar, mas o trabalho não o permite. Continue, por favor…
- Tudo bem! Fico satisfeito por saber
que estás a gostar…
Dos mil que éramos no princípio, ficámos seiscentos. Aos restantes
quatrocentos, não classificados, enviaram para outros quartéis, onde seriam
treinados como atiradores. Esses seriam lançados para a guerra mais cedo,
dentro de cinco ou seis meses, como os leões para o circo de Roma no tempo de
Nero!
Logo a seguir à seleção, um oficial de secretaria, brincalhão nas horas
vagas, e pensando talvez que possuía carradas de graça, mas de mordaz humor,
tem o atrevimento de me perguntar: - «Preferes
outra especialidade, ou estás satisfeito com esta?»
Ingénuo até à medula, e nada
habituado a lidar com gente tão fina e de língua afiada, respondo
melifluamente: «Se pudesse escolher,
gostaria de ser operador-cripto, como foi o meu irmão.»
A gargalhada soa, sarcástica,
metálica, inumana! O monstro ria-se de mim! Na minha cara! As lágrimas vieram
céleres, fáceis, a meus olhos. Seria, podes crer, a última vez que isso me
aconteceria. Apercebi-me então que estava na selva e aí, nesse universo de maldade
e perversão, não se chora: resiste-se, faz-se das tripas coração, engolem-se
todos os sapos vivos e moribundos, aprende-se quase instantaneamente a eterna e
sublime arte da sobrevivência.
Os seiscentos mancebos aprovados foram divididos em três grupos de
duzentos cada um. O primeiro grupo ficava já no quartel; o segundo iria para
casa e voltaria em Fevereiro; os restantes duzentos rapazes apresentar-se-iam
em Março. Tudo matematicamente elaborado, milimétrico, perfeito! Na tropa não
se improvisa: é tudo pré-determinado, tudo feito a régua e esquadro.
Simularam um qualquer sorteio, e a mim calhou-me o terceiro grupo. Como
não tinha dinheiro em abundância, e porque também era poupado, quase forreta, e
não sabendo o que o futuro me reservava, decidi regressar à minha querida terra,
mas à boleia. Pus-me na berma da estrada e comecei a fazer o sinal
caraterístico, isto é, fechei os quatros dedos mais compridos da mão e com o
polegar bem esticado indicava a direção que pretendia seguir. Nunca antes andara
à boleia, mas vi outros fazerem o mesmo e logo se aprende, se adquire o jeito.
Nessa altura, e por razões óbvias, que não vêm ao caso, não se tornava tão
perigoso, como agora, tal procedimento.
Quem tinha carro, e eram poucos, sabia que a maioria do povo português
era pobre. Uma boleia era sempre bem-vinda, pois economizava uns cobres a quem
a recebia.
Os
automóveis passavam como bólides, indiferentes e alheios àquele braço
estendido, àquele olhar de criança desprotegida. Carros de quatro ou cinco
lugares apenas transportando uma ou duas pessoas! A viatura pertencia-lhes,
dela podiam fazer o que bem quisessem, mas afinal de contas a solidariedade, o
humanismo cristão tão apregoado no púlpito, tornavam-se em meros conceitos esvaziados
de conteúdo. Por outro lado, um jovem fardado, um soldado da pátria, que iria
brevemente defender o território nacional, ameaçado por bandidos, como os salazaristas
diziam, por hostes de negros, sedentos de poder, merecia o apoio de todos os
portugueses. Mas não! Passavam e não me viam! Não queriam que um pobre soldado se
sentasse a seu lado, eles, que tinham carro, logo outro estatuto!
Já desesperado, eis que um automóvel ligeiro, com alguns anos, mas ainda
com bom aspeto, para junto de mim. O condutor, homem de meia-idade,
complacente, interroga-me: «Para onde se
dirige?» Eu, ainda incrédulo, algo desconfiado, respondo-lhe: «Vou para Melgaço.» O senhor, com uma voz
algo emocionada, diz-me: «Para Melgaço!
Que coincidência, sou precisamente de lá,
embora resida e tenha o meu emprego no Porto; vou neste preciso momento fazer
uma visita a minha irmã, a Brígida, conhece?»
Respondi que sim, por sinal conhecia-a muito bem. Em uma cidadezinha tão
pequena como a nossa toda a gente se conhecia, éramos todos vizinhos e amigos.
Era proprietária de uma loja de louças junto à igreja matriz, ali pertinho do
castelo medieval, o qual, segundo reza a História, fora mandado construir por
D. Afonso Henriques, o nosso primeiro rei. Esse monarca também dera ao concelho,
em 1183, um foral, que era uma espécie de constituição concelhia. Eu tinha
apenas a sexta classe, ou seja, a quarta classe mais dois anos de um curso
noturno «curso complementar de
aprendizagem agrícola», mas sabia alguma coisa de História, porque gostava
dessa disciplina e tinha como livro de cabeceira uma História de Portugal.
A senhora Brígida era mãe da Teresinha, como nós lhe chamávamos carinhosamente.
O pai da menina, ninguém sabia concretamente quem era, falava-se em um contrabandista,
talvez um padre, era um segredo bem guardado, provavelmente já teria morrido,
ou então mudara-se para outra terra.
O senhor estava radiante com a minha companhia. Pelo caminho conversámos
sem parar. Ele, mais do que eu. Era pracista, ou técnico de vendas, como agora
se diz. Tinha duas filhas adolescentes, mostrou-me as fotografias, amorosas, «acompanham-me sempre», disse com
ternura.
Convidou-me a ir a sua casa
quando voltasse ao Porto. Teria muito
gosto nisso, fazia questão em apresentar-me à esposa e filhas. Era sempre
bom ter alguém da mesma terra para conversar, lembrar aqueles tempos felizes,
mas de relativa miséria, tempos que jamais voltariam, dizia ele.
- Claro que foi visitar esse senhor e a
família – interrompeu Henrique, atento ao
desenrolar da história.
- Não fui! Por timidez, para não
incomodar. Só muito mais tarde me apercebi que a presença de um patrício no nosso
lar, quando se vive longe, nos traz imensa alegria e nunca aborrecimento. Essas
coisas aprendem-se por experiência própria. Uma pessoa da nossa terra, um conterrâneo,
é um pedacinho dessa mesma terra, faz parte do nosso ser, é uma molécula viva
da antiga memória coletiva.
- Está a filosofar, mas talvez seja
verdade o que acaba de dizer – concorda o moço.
Cândido quase não o ouviu. As
memórias irrompiam, como nascentes de um rio caudaloso. Prosseguiu:
- Chegamos finalmente a Melgaço. Nos
anos sessenta do século XX era uma Vila minúscula, sem alma, triste e
semidesértica! Os jovens tinham emigrado. As raparigas, em grupo, aos domingos
à tarde, pareciam andorinhas na primavera procurando o seu companheiro para,
juntos, construírem o seu ninho. As fadas do lar, atingidas no âmago do seu
peito, choravam amargamente. Umas… porque tinham os seus rebentos por essa
Europa fora; as outras, em menor número, porque eles combatiam em Angola,
Moçambique e Guiné-Bissau. As mães estão sempre em pranto quando os seus
meninos estão ausentes.
- Eu nunca passei por essa experiência
– lembra Henrique. - Estive sempre
com a minha mãe. Quem sabe, um dia…
- Não tenhas pressa, rapaz; é bom viver
com os nossos pais, com aqueles que o são, porque há criaturas que não merecem
esse nome. Mas é melhor não abordar esse assunto, pois quando falo disso fico
sempre triste.
- Continue com a sua narrativa – propôs Henrique, amavelmente, verificando
que o seu amigo estava deveras emocionado.
- Durante o período que estive na terra
natal trabalhei arduamente, a fim de juntar uns tostões. Os preços praticados eram
baixos, não dava para amealhar; os meus clientes eram pobres, quase todos
pequenos agricultores, mesmo assim ainda consegui umas centenas de escudos. O
implacável calendário ia-me informando de que o dia de regressar ao CICA-1,
assim se designava o quartel, se aproximava vertiginosamente. Andava taciturno
e pensativo. Que raio, por que não podia fugir, ir para França ou Alemanha,
como os outros foram?! Que força, maldito fado, me obrigava a caminhar em
direções opostas à minha vontade, ao meu sentir, à minha maneira de ser, à
minha ingénita passividade? Estaria a ser posto à prova por entidades
superiores, divinas?! – pensava eu, temeroso,
mergulhado ainda na fase do obscurantismo religioso!
Não lera, só alguns anos mais tarde isso aconteceu, Bertrand Russell (Porque Não Sou Cristão), nem o surpreendente romance “Jean Barois”, de Roger Martin du Gard, editado pelas Éditions Gallimard
em 1914.
- Nem Marx, Engels, Lenine, Estaline, Mão
Tsé-Tung…
- Antes de 25 de Abril de 1974 não se
podiam ler essas obras em Portugal. A igreja católica portuguesa, sobretudo a
sua hierarquia, e a PIDE, estavam atentos, as livrarias não podiam colocar à
venda esses livros, sob pena de ficarem sem eles e arranjarem problemas graves com
a “justiça”. A censura era
implacável, meu amigo. Se alguém estivesse sob suspeita, a sua vida tornava-se em
um inferno, corria perigo. A sua casa podia ser invadida a qualquer momento,
submetê-lo-iam à tortura do sono, podia, inclusive, ir parar ao aljube, ao
Tarrafal, essa maldita colónia penal de Cabo Verde...
- Mas não eram apenas os militantes do
Partido Comunista os alvos da PIDE? – perguntou
Henrique, cheio de dúvidas.
- Qualquer um podia sê-lo, desde que
mantivesse um comportamento social que suscitasse suspeitas aos esbirros de
Salazar. Para eles, os que estavam contra o regime, eram todos comunistas!
Mas, dizia eu, que essas leituras
me ajudaram a compreender o mundo. Eu estava de olhos fechados, completamente!
O padre Emiliano, o «santinho», como
as beatas lhe chamavam, mais as catequistas, obstruíram o meu cérebro de
criança. Tudo era pecado: desobedecer, recusar, pensar! Ter imaginação era
considerado heresia! Até brincadeiras inocentes eram, por vezes, vistas com
maus olhos. A repressão era o pão-nosso de cada dia. Tínhamos de rezar o credo,
a salve-rainha, eu sei lá, como castigo! E a cana-da-índia funcionava sempre:
na escola e na catequese. Há pecados mortais e não mortais. Um deles, que
alguns padres jamais cumpriram, é aquele que diz: «Não cobiçarás a mulher do próximo»! Quanto a mim os padres
católicos deviam casar, para saberem o que é amar um filho, e o que custa
educá-los com dignidade.
- Esses grandes sábios ajudaram-no a
libertar-se desse jugo irracional, dessa escravatura do espírito…
- Em parte sim; o resto é a experiência,
o rolar dos anos, o contacto com os outros, os altos e baixos da vida, a infinita
curiosidade. Muitas pessoas não querem sair do fosso – ficam lá, chafurdando! É
cómodo. // continua...
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