sábado, 4 de junho de 2022

 

ENTRE MORTOS E FERIDOS

(Dois anos de guerra na Guiné-Bissau)

 

Romance histórico

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Autor

 

Ficha técnica

 

 

 

 

Título: Entre Mortos e Feridos

 

Autor – Joaquim A. Rocha

 

Capa – fotografia do autor

 

Fotografias – vários autores

 

Execução gráfica –

 

Tiragem –

 

Depósito legal –

 

ISBN –

 

Data de edição –

 

Correio eletrónico: joaquim.a.rocha@sapo.pt

Blogue: Melgaço, Minha Terra

 

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Obras do autor

 

Obras a publicar

 

Poemas do Vento

Sonetos do Sol e da Lua

Quadras ao deus dará

Escritos Sobre Melgaço

Entre Mortos e Feridos (romance)

Lembranças Amargas (romance)

Gentes do Concelho de Melgaço (biografias)

Dicionário Enciclopédico de Melgaço

A Minha Vida em Imagens

A minha religião e outros escritos

Auto da Palina

Frágeis Elos (2.ª edição)

Melgaço: Padres, Monges e Frades

Os Ossos de Camões (tese de licenciatura)

O Fim de Um Sonho (conto)

 

Obras publicadas

 

Livros

 

Frágeis Elos (uma história familiar)

Dicionário Enciclopédico de Melgaço (I e II volumes)

Lina – Filha de Pã (romance)

Os Meus Sonetos e os do frade

Os Novos Lusíadas (…)

Melgacenses na I Grande Guerra,

e em outras guerras do século XX

(em colaboração com Walter Alves)

 

Separatas

 

A Origem de Algumas Famílias Melgacenses

A Febre Tifoide e os seus Protagonistas

Tomás das Quingostas (200 anos do seu nascimento)

A Provável Origem de Melgaço e de Paderne

 

Prefácios nos livros de José A. Cerdeira e do Dr. Augusto César Esteves:

 

Tomaz das Quingostas

O Buraco da Serpe

A Adversidade por Madrasta

O Sonhador dos Montes da Aguieira

Nas Páginas do Notícias de Melgaço

 

Colaborações

 

No Boletim dos Serviços Sociais da CGD

No Boletim Cultural da Câmara Municipal de Melgaço

No jornal “A Voz de Melgaço”

No jornal “Melgaço Hoje”

No jornal “Fronteira Notícias”

“Diário do Minho”

Artigo sobre o santuário da Peneda no livro Lugares Sagrados

 de Portugal I, editado pelo Círculo de Leitores em 2016.

                 

 

 

*

 

 

 

***

 

Advertência

 

 

  A narrativa que a seguir vai ler, caro leitor, contou-ma um antigo combatente da guerra colonial, hoje um homem já com alguma idade. Entregou-me cerca de cinquenta folhas de papel manuscritas e disse-me: “Leia isso; pode ser que o inspirem a escrever um romance”.

Fez questão de que o seu nome de batismo não figurasse no livro e não quis também que o verdadeiro número do seu batalhão e da sua companhia fossem revelados, mas permitiu que o nome da sua terra de nascimento aparecesse destacado.

Os topónimos das localidades mencionadas são todos autênticos, como genuínas são as designações dos rios.

As datas poder-se-ão considerar corretas. Os dias de viagem – seis – e o nome do paquete – Uíge – são igualmente dados exatos.

Este texto não se reclama de histórico, no sentido estrito de ciência, visto que a ficção romanesca teve aqui também cabimento. Se quisesse ser imodesto dir-vos-ia que o comparo àquele outro, já famoso, de Fernão Mendes Pinto, onde a realidade, a fantasia e a ficção se misturam e não se sabe bem onde uma começa e as outras acabam.

 Pode ser lido como um livro de ação, de pura guerra, inspirado em factos emocionalmente vividos, mas também como o percurso de um humilde artesão que, obrigado a abandonar o seu mester, vai relacionar-se com outro tipo de indivíduos, embora patrícios, isto é, da mesma pátria, com uma língua comum, praticamente da mesma idade, e a pouco-e-pouco se apercebe que só através do relacionamento se poderá apreender as subtilezas que definem as diferenças de caráter de cada um deles. E isso tem a ver, sobretudo, com a maneira como foram criados, o meio que os rodeia, rural ou urbano, enfim todo um percurso de vivência ou mesmo o seu indeterminismo.

     Espero sinceramente que não seja uma frustração para o leitor a leitura desta singular e despretensiosa obra literária.

     Quero também sublinhar que ela não foi escrita contra ninguém em particular; é, assim o espero, mais uma acha para a fogueira da luta contra todos os conflitos e a injustiça.

     O seu objetivo principal será dar a conhecer a toda a gente que o deseje, sobretudo aos mais novos, as aventuras e desventuras de um soldado, em especial aquelas que viveu no continente africano, durante cerca de dois anos, aquando do conflito armado entre as forças de libertação e o exército português, na então “província” da Guiné.

 

     Segundo as obras da especialidade, esta palavra «Guiné» deriva da povoação Gená, Genua, Ghenea, Djenné, Jenné, Jani ou Geni, fundada cerca de mil e quarenta, da era cristã, nas margens do Níger, grande centro comercial, antes de ser abafada pela prosperidade de Tombuctu.

     Este território foi descoberto, ou melhor, conquistado pelas armas, ocupado, uns anos antes do infante Dom Henrique morrer em 1460, ou seja, em 1446, por Nuno Tristão, acabando este por ser abatido pelos indígenas. Os felupes, tribo guineense, foram contactados por Álvaro Fernandes, também em 1446, ano em que por lá andavam Diogo Gomes e Cadamosto, no reinado, portanto, de D. Afonso V (1438-1481). No ano anterior, ou seja, em 1445, já Dinis Dias tinha atingido toda a costa da Guiné até ao Cabo Verde.      

     O nosso bem conhecido cronista do reino, Gomes Eanes de Zurara, que substituiu nessas funções a Fernão Lopes, servindo-se de relatos individuais, escreveu a «Crónica da Guiné», obra fundamental para o estudo dessa ex-colónia portuguesa.

     «O objetivo da obra é dar o conhecimento da conquista da Guiné enquanto facto realizado pelo infante e feito criador da atlantização e novo destino de Portugal…» (Luís Filipe Barreto, in Gomes Eanes de Zurara e o problema da Crónica da Guiné, STVDIA n.º 47, página 320).

“A Guiné Portuguesa foi uma das nossas colónias onde mais duramente se combateu desde o início da sua descoberta. Pode dizer-se que só há trinta anos foi inteiramente submetida ao nosso domínio efetivo. A pacificação foi levada a cabo pelo então capitão Teixeira Pinto.”

“Também ali (na Guiné) se procede a grandes obras públicas – estradas, hospitais, escolas, serviços de esgoto e abastecimento de água e outras obras de higienização, bairros de habitações para indígenas e europeus, etc.”

“A nossa província da Guiné, cuja extensão não ultrapassa a do Alentejo, é uma das mais prósperas sob o ponto de vista agrícola. A terra é fértil e copiosamente regada. Produz principalmente amendoim, para o fabrico de óleos, e arroz. Possui ainda excelente madeira para carpintaria e marcenaria.”

Tudo isso se pode ler no jornal “Noticias de Melgaço” número 763, de 20/01/1946, escrito por um ferrenho adepto do regime corporativista, que, provavelmente, nunca pôs os pés nesse território africano.     

     A área da Guiné-Bissau ronda os 36.000 km2 e a sua população não ultrapassaria (1998) um milhão de habitantes. O clima é tropical húmido, muito propício a doenças, das quais talvez as mais conhecidas, e que causam anualmente mais vítimas mortais, sejam o paludismo, varíola, lepra e febre-amarela.

 

     A guerra assemelha-se a Cila: «um monstro eterno, terrível, doloroso e feroz, contra quem não se pode lutar, nem há defesa possível.»

 

                                                                                                       Homero

 

     O poema que a seguir vou transcrever dá-nos uma ideia dos sentimentos que provoca a guerra no ser humano. Mas então, por que há guerra? De uma maneira geral, quem a provoca, fica na retaguarda, a enriquecer com os chorudos negócios que então se fazem. Nas fábricas labuta-se incansavelmente para produzir armas, munições, máquinas poderosas, instalações militares; nos laboratórios investigam-se novas armas mortíferas; nos campos trabalha-se sem descanso a fim de obter alimentos para as tropas. Enfim, tudo mexe, tudo se consome, e os empresários sem escrúpulos vão aumentando o seu pecúlio, tornam-se senhores do mundo! E o povo? Esse morre aos milhões, pelo canhão, pela fome e pela doença! As consequências de uma guerra prolongam-se por muitos anos. E agora, com as terríveis bombas atómicas, até o próprio planeta está em risco! E depois dizem que há deuses? Onde estão eles? Se os houvesse não permitiriam, com certeza, tais atrocidades contra os seres vivos, contra a natureza. Não, não existem. Ninguém tenha ilusões a esse respeito.

     As religiões também beneficiam com a guerra! É nessas ocasiões que aliciam mais pessoas, descrentes do humano; viram-se para o além, para uma suposta tábua de salvação, e abraçam a primeira igreja que lhes surge no caminho. Depois são sugados até ao tutano! E as revoluções proletárias não vingam, porque no seio dos trabalhadores há sempre aqueles que logo que começam a ver a cor ao dinheiro vestem outra casaca, passam para o campo oposto. Querem poleiro, e quando se apanham na mó de cima, parecem outros, já nem sequer reconhecem os antigos colegas. Tornam-se anti socialistas ferrenhos e terríveis capatazes! Vendem a alma ao diabo, tal como Fausto. Não conhecem a coerência e muito menos a honestidade de princípios. Enfim, o ser humano é volúvel, bailarino, incapaz de percorrer um só caminho. Anda aos ziguezagues, como a cobra, e como o réptil vai lançando o seu veneno aqui e ali, provocando a morte aos mais incautos.

     Bem, vamos ao poema. Não é nenhuma obra-prima, nem a isso aspira. O que a sua mensagem quer transmitir é simples: todos aqueles que são contra a guerra unam-se, previnam-se, não se deixem iludir pelas palavras do general, do político, do empresário ganancioso, ou até do filósofo da desgraça. Não aceitemos a diabólica frase «se queres a paz faz a guerra!» Não! A guerra jamais resolverá os nossos problemas; só traz malefícios, atrasa o desenvolvimento, embrutece.

     Vamos finalmente ao poema:

 

Tu és a guerra

que a morte encerra

que o amor destrói;

tu és a serra

que a alma aterra

e não te dói;

és anti vida

árvore despida

coisa sem cor;

vives de sangue

e mesmo exangue

nunca mais morres;

vives para sempre

na nossa mente

nas veias corres;

foge de nós

dá-nos a voz

que nos roubaste;

torna-te ausente

deixa esta gente

que não criaste;

vai-te por fim

vai-te de mim

de todos nós;

queremos viver

não mais sofrer

vai-te… algoz!

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*

1.º Capítulo

 

A CAMINHO DA TROPA

 

     Estávamos no início da primavera. Anos oitenta do século XX. Era domingo. Numa mesa da esplanada de um velho Café, no Rossio, o Café Suíça, famoso em Portugal e mesmo além-fronteiras, dois homens conversavam animadamente. Um era alto, muito jovem ainda, e o outro mais velho, de estatura média, olhar melancólico. Ali perto via-se o Teatro D. Maria II, bastante danificado, a precisar de obras urgentes, indivíduos de raça negra vendendo alguns produtos exóticos, e não só; do outro lado estava o Café Nicola, onde Bocage, segundo dizem, passava horas, contando anedotas e lendo alguns dos seus mais picantes, até obscenos, poemas. Um dos conversadores distraiu-se momentaneamente ao passar muito perto uma bela alfacinha, de mini saia. Apercebendo-se da falta, da descortesia, solicita:

 

- Perdão! Dizia-me você, amigo Cândido…

- Dizia-te eu, caro Henrique, que em hoje em dia a vida militar, a chamada tropa, é quase uma brincadeira, e ainda bem, comparada com a que existia antes de 25 de Abril de 1974. A guerra que se travou durante treze longos anos entre as forças armadas portuguesas e as guerrilhas das ex-colónias: Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, determinava métodos de treino exaustivos, por vezes até violentos, obrigando o manso soldado a ser uma espécie de legionário romano, um samurai, agressivo, pois a vida que ele iria enfrentar em África seria de facto muitíssimo exigente, excecional mesmo! Dois e três dias sem quaisquer alimentos (as rações de combate, compostas por conservas de carne e peixe, poucos as conseguiam tragar, devido em parte à sua má qualidade; apenas se aproveitava o leite com chocolate e as bolachas, embora estas fossem muito secas), e, somente, um litro de água para o mesmo período (a água que se encontrava pelo caminho era péssima e ainda por cima podia conter veneno, ali posto pelo inimigo); caminhadas sem fim, por matas densas e perigosas; calor abrasador e constante… Enfim, o sofrimento humano na sua máxima expressão.

     Tudo por causa de um regime míope, fora do tempo e da lógica – um regime cem por cento absurdo, cujos protagonistas: Salazar, Caetano, e seus acólitos, servindo de péssimos conselheiros, não souberam, ou não quiseram, ver as realidades, acompanhar o progresso das nações. Condenaram à morte e ao padecimento infame, ignominioso, milhares e milhares de jovens, e levaram o luto a muitas e muitas casas portuguesas e africanas.

- Estou plenamente de acordo – disse Henrique, comovido.

- A teimosia, o rancor, a vaidade torpe, o orgulho mesquinho, paralisava-lhes o sentido da visão; o coração gélido, granítico, estiolava o seu sentir; os ouvidos moucos, barrava-lhes a audição.

- Ainda tentaram derrubar o regime, mas não conseguiram…

- É verdade. Houve algumas tentativas, mas falharam estrondosamente.

- Pudera! Segundo dizem eram anarquistas, os autores dos atentados.

- Parece que sim, pois os comunistas do PCP recebiam ordens de Moscovo, e só atuavam de acordo com elas. A União Soviética não desejava criar mais problemas com os Estados Unidos, ambos se temiam. Outrora, depois de D. João II, o planeta esteve dividido entre Portugal e a Espanha, através do Tratado de Tordesilhas; atualmente pertence a essas duas superpotências.

 

     Cândido, depois de uma breve pausa, esvaziando paulatinamente o copo de cerveja, continuou:

 

- Com o início da guerra colonial, em 1961, as famílias lusitanas assustaram-se deveras. Muitos jovens, sobretudo da província, fugiram apavorados. Para quê combater em Africa? – perguntavam-se!

     Buscaram terras da outra Europa: França, Alemanha, Suíça, Bélgica, Luxemburgo, etc., e também da América, sobretudo o Canadá; qualquer país seria bom, desde que houvesse paz. Preferiam o trabalho rude, bruto, quase a escravatura, a uma guerra que pouco ou nada lhes dizia. Além disso, sempre amealhariam algum dinheiro.  

- As gentes provincianas viram sempre o continente africano como terra de negros, para onde embarcavam alguns colonos brancos – fugidos da lavoura ingrata, da fome ruim e cíclica, com o objetivo de conseguirem alguma fortuna, o bem-estar – ou os condenados ao degredo; nunca sentiram Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, como terra portuguesa, apesar de todas as propagandas do regime salazarista... – lembrou, afoitamente, Henrique.

- É completamente verdade o que acabas de dizer. Mas voltando aos jovens que “saltaram” para o estrangeiro. Alguns desses países europeus também já tinham sentido na pele, durante quase seis anos, de 1939 a 1945, a guerra vil e madrasta. Por isso, os seus naturais, compreendiam os portugueses que assim procediam. Por outro lado, precisavam deles, da sua energia, para reconstruírem os seus destroçados países. Os lusos, incultos, não eram exigentes, quer no salário, quer no trabalho a executar, obedeciam com facilidade, olhos sempre baixos, humildes, tornando-se, por isso, simpáticos aos olhos dos seus patrões. Sabes que ainda há pouco tempo li, em um jornal antigo, que desde 1845 vem consignado na nossa legislação o princípio da obrigatoriedade do ensino primário; a monarquia tropeçou sempre na dificuldade de não poder tornar efetivo esse princípio, dando motivo a que uma representante da França junto da Corte portuguesa comunicasse ao seu país que a monarquia portuguesa mantinha sistematicamente o povo na ignorância. A República, em 1910, tendo ao leme o Dr. Afonso Costa, trouxe novo dinamismo ao país, nessa e noutras áreas, mas foi sol de pouca dura…

 

     Nova pausa, mais uma imperial, acompanhada de tremoços, porque o marisco, o verdadeiro, não o do Eusébio, era caro. De repente, Henrique pergunta:

 

- E você, Cândido, por que não emigrou?

 

     Colhido de surpresa, titubeou, mas acaba por responder:

 

- Eu… bem, não tendo os dez, ou onze, mil escudos para o passador, isto é, para a pessoa, ou pessoas, que se encarregavam de levar para o estrangeiro os candidatos a emigrante, clandestinamente, lá vou, como um tenro cordeirinho, gado sob a canga do dono, à inspeção militar, ficando, como seria de esperar, apurado para todo o serviço.

 

     E continuou, emocionado:

 

- Em Janeiro de 1965, cabeça rapada…

 

     Aqui, Henrique interrompeu-o, para lhe perguntar:

 

- Era obrigatório, nesse tempo, ir sem cabelo algum?

 

     Cândido riu-se, e respondeu-lhe:

 

- Não! Eu não quis entregar o meu basto couro cabeludo a um qualquer barbeiro improvisado, daqueles que se geravam no quartel. Na minha terra havia bons barbeiros, mais competentes, mais humanos. Na tropa, segundo me tinham informado, o soldado ficava a sangrar que nem um porco no dia da matança!

- Estou a ver… observa Henrique, com um longo sorriso nos lábios.

- … Levava a guia de marcha na algibeira, nas mãos carregava uma pequena e retangular mala de cartão. Coitada; para ela este acontecimento vinha em boa hora, pois viajara tão pouco!               

 

     Henrique, irónico, pergunta:

 

- E a barba, ia com ela à Fidel?

 

     Cândido responde com alguma tristeza:

 

- Pobre de mim! Era imberbe! Ela apareceria, timidamente, como as frutas serôdias: fora do tempo! Mas continuemos: - deixo a minha querida cidadelha, amargurado, lágrimas nos olhos… Não te rias, chorei mesmo! – e entro na camioneta que me transportará até à estação do caminho de ferro, em Monção; aí tomo o comboio descendente, que me levará até à cidade invicta.

- Deve ser uma sensação estranha – diz Henrique, como falando para si próprio.

- Podes crer que é. No percurso vou encontrando outros recrutas, mancebos, com os quais, timidamente, enceto conversa e início de forte ou efémera amizade. Futuramente serão, tal como eu, conhecidos e chamados pelos topónimos das suas terras de nascimento, ou pelos respetivos números de caderneta. Chegados à grande cidade do norte, já amigos, lá vamos para o quartel em grupo. Algumas pessoas do povo, ao verem-nos passar, comentam com ar compassivo: «mais carne para canhão – infelizes

 

     Henrique, silencioso e atento, pensava para si mesmo que bom fora ter nascido uns anos depois; quando a guerra terminara tinha ele dezassete anos. Como estudante, ainda experimentara alguns dissabores, mas nunca fora preso, felizmente. Curioso, perguntou:

 

- Como sabiam onde ficava o quartel?

- Não sabíamos; íamos perguntando aos tripeiros, pelo caminho. Lá chegados, atabalhoadamente, apresentámos as nossas credenciais a um homem fardado, com divisas, mais tarde soubemos que era sargento. À primeira impressão, pareceu-nos arrogante e autoritário, com o rei na barriga. Dá-nos as primeiras ordens, que soam a duras chicotadas: «Para a parada, formar imediatamente

     Assustados, como raposas acossadas, sem sabermos bem o que era a formatura, embora alguns na escola já tivessem andado na mocidade portuguesa, obedecemos prontamente, como autómatos. O sargento equivalia a uma espécie de tratador de animais no circo – tentava domesticar-nos para depois nós nos ajoelharmos doce e passivamente perante ele e demais superiores, cumprindo as suas ordens sem pestanejar. Mais tarde viemos a saber que havia dois tipos de sargentos: os que tinham alguns estudos e aqueles que apenas tinham a quarta classe.

- E qual era a diferença? – pergunta Henrique, com imensa curiosidade.

- A diferença é abismal. Os primeiros entravam na tropa como cabos milicianos; depois da recruta e especialidade passavam a furriéis milicianos; no fim do serviço militar, por várias razões, entre elas terem gostado daquela atividade, ou aspirarem a postos elevados nas Forças Armadas, requeriam a sua continuação e passavam a sargentos – normalmente atingiam o máximo nesta classe, e alguns deles chegavam mesmo a oficiais. Andavam quase todos nas secretarias.

     No caso dos segundos, os que apenas podiam apresentar a terceira ou quarta classe do ensino primário como habilitações, ingressavam na tropa como simples soldados recrutas. No final do serviço militar, sem qualquer expectativa de futuro, a não ser voltarem para o campo ou para a fábrica, apresentavam um requerimento e ficavam na tropa. Passavam primeiramente a cabos e só mais tarde, muitos anos depois, após concurso, a sargentos – mas muitos deles não conseguiam chegar lá! Eram conhecidos por “chicos” ou “lateiros” e raramente iam para os serviços administrativos; a maior parte dava instrução aos recrutas, ou eram motoristas de um oficial superior. Eram pouco cultos, salvo raras exceções. Eram estes que davam ordens por tudo e por nada aos magalas!  

- Mas vocês, nessa altura, já eram obedientes por natureza – observa Henrique.

- Nem todos. Os do meio rural, sim; os da cidade, porque também lá havia alguns, eram lixados. Com vinte anos apenas, já tinham vivido muita coisa. Mas voltando ao sargento: no quartel, tornava-se um reizinho! Dava ordens à direita e à esquerda, gritava, gesticulava, enfim estava no seu mundo.  

- Vocês andavam em uma fona! – comenta Henrique, ironicamente.

- É verdade; numa roda-viva! Não nos dava descanso!

- Havia exceções – aventa o moço.

- Naturalmente. Conheci alguns desses sargentos, humanos, atenciosos. Ficaram no exército porque ganhavam mais ou menos e usufruíam de algumas regalias: alimentação, vestuário, ordenado mensal... Com a quarta classe, muitas vezes obtida como adulto, no próprio exército, não teriam grandes hipóteses de arranjar bons empregos, de angariar uns cobres, a não ser na emigração; assim, com aquela patente, ficavam praticamente equiparados a professores do ensino primário! O trabalho não os matava; aquilo para eles já era rotineiro. Além disso, tinham licenças a fim de irem gozar umas férias e visitar a família.

- E a guerra?

- A guerra trouxe-lhes alguns benefícios materiais, embora arriscassem – não todos – a vida. Mas continuando… Fizemos vários exercícios antes de envergarmos as cinzentas fardas: de escrita, de cálculo, de agilidade mental e visual (os chamados testes psicotécnicos), e os imprescindíveis exames médicos.

- Passou a tudo, com uma perna às costas – arriscou Henrique.

- Passar, passei, mas não foi fácil. De acordo com aqueles que analisaram as minhas provas, eu daria um razoável condutor auto rodas. Seria, depois de longos treinos, a minha “ilustre” especialidade. Nunca, até então, tinha conduzido um carro, nem sequer fazia a mínima ideia do que era pegar num volante de um automóvel! Eu era pobre como Job, mal ganhava para comer e vestir, quanto mais para ter carro. Na minha pequena vila somente meia dúzia de pessoas possuía automóvel: o juiz, o médico, o doutor delegado, um ou dois padres, e os contrabandistas ricos. Estes últimos, sim, possuíam carros ligeiros, e também pesados, nos quais transportavam as mercadorias para Espanha.                       

- «Terra de raia, terra de contrabando» - aponta Henrique, filosoficamente.

- Assim é, meu amigo. Os espanhóis, durante a guerra civil, que durou, como sabes, de 1936 a 1939, compravam tudo: azeite, galinhas, ovos, milho, café, sabão, pedras de isqueiro, tabaco… Até tripas! Alguns contrabandistas enriqueceram, outros, perdulários, gastaram tudo com amantes e negócios mal geridos – não tiveram cabeça!

- Há quem diga que houve corrupção… - acicata o rapaz.

- Houve… e muita! O soldado da Guarda-Fiscal ganhava um ordenado de miséria. Se fosse solteiro, e vivesse em casa dos pais, ia-se aguentando; mas quando casava, e vinham os filhos, o vencimento não dava para nada. Na década de sessenta auferiam pouco mais do que mil escudos por mês! Só dava para a bucha! A mulher, pouco mais do que analfabeta, não tinha emprego, tratava da comida, da roupa, dos filhos… e da horta; quase todos possuíam uma hortinha onde colhiam hortaliça (couves, repolhos, alface), cebola, tomate, pimentos, etc.

     A instrução dos filhos não ia além do ensino primário, pois mandá-los para a cidade – Viana do Castelo ou Braga – era privilégio de poucos. Não causava qualquer surpresa ver-se um descendente de um elemento da Guarda-Fiscal a trabalhar na agricultura, ou como simples empregado de balcão, sobretudo nas cidades de Lisboa e Porto, ou noutras atividades humildes. Os empregos bem remunerados e de prestígio estavam nas mãos dos grandes senhores.

- E não foi sempre assim? – pergunta Henrique.

- Suponho que sim, mas não está certo. A minoria, tudo domina; a maioria trabalha e obedece!

- Nesse caso… – impacientou-se Henrique, já cansado de tantos rodeios.

- Como ia dizendo, os guardas, segundo consta, fechavam os olhos mediante uma verba paga pelos grandes contrabandistas, porque aos pequenos, como não davam um centavo, a esses, se os apanhassem, não lhes perdoavam: tudo apreendido e multa para cima. Alguém tinha de desempenhar o papel de bode expiatório do sistema. Mas voltando ao assunto inicial…

    

     Aqui, Henrique, olhando para o relógio, dá um pequeno grito:

 

- Santo Antoninho! Tenho de me encontrar com a Rita, a minha prima. Ia-me esquecendo. Desculpe Cândido, a conversa estava interessante, mas será retomada na próxima oportunidade, se assim o desejar.

- Vai-te embora, homem; não se deve fazer esperar as senhoras, sobretudo as primas – comenta com graça e ironia. - Voltar-nos-emos a encontrar no próximo fim-de-semana.

 

       Henrique, com um sorriso de orelha a orelha, diz-lhe:

 

- Com pena minha, a Rita já tem noivo. Para que saiba, eu não tenho sorte nem com o jogo, nem com as mulheres.

- Pobrezinho! Que pena eu tenho de ti.

 

     E assim se despediram, a rir.  

 

      Cândido ficou só e pensativo. Sempre que abordava o tema da guerra ficava triste, absorto, incapaz de reagir durante algum tempo. Aquela ferida dolorosa funcionava como uma úlcera; só o tempo, pensava ele, seria o remédio para a cura. De qualquer forma tivera sorte, não fora ferido, estava ali, vivo e com alguma saúde, apesar daquelas dores de estômago, que, de vez, em quando, o incomodavam. Quantos companheiros vira tombar, quantos tinham vindo para a metrópole feridos. Quantos! O melhor era ir dar uma volta pela cidade, ver as montras na Rua do Ouro e Rua Augusta, subir depois ao Chiado, à tardinha acendiam as luzes, que bonito tudo aquilo ficava, era sempre festa. Na sua terra, a mais bonita do mundo, mas medieval, coitada, não havia luzes à noite. Candeeiros aqui e ali, alguns com as lâmpadas fundidas; mal alumiavam as poucas ruas que havia. As lojas não tinham praticamente vitrinas, e as que tinham não estavam decoradas – ninguém se importava com isso!

     Olhou para o relógio, a sua “cebola”, como o designava, e alarmou-se: estava na hora de jantar. Os restaurantes ao domingo não gostavam de fechar tarde – cliente que não chegasse a tempo, não era atendido. Claro que havia restaurantes que só encerravam às tantas, mas esses eram os de luxo, não eram para a sua magra bolsa. Ele ia às tascas, às tabernas, sentava-se naquelas mesas quadradas, com uma toalha de pano ruim, aos quadradinhos, que já fora lavada milhares de vezes. Já o conheciam:

 

- Então que vai hoje, senhor Cândido?

- O senhor Sousa já sabe: o mesmo de sempre. Para não variar. Olá menina Quitéria, sempre linda.  

     A rapariga ficava ruborizada, um piropo daqueles sabia-lhe bem, embora pensasse de si para si que dali nada viria de concreto, de namoro ou casamento. Canté! Com um empregado de escritório. Ela, apenas com a 3.ª classe, estava condenada a casar com um moço de mesa, como ela, ou com um operário, ou talvez, quem sabe, com um estivador, profissões muito mal remuneradas e de baixo prestígio.

      Passado pouco tempo era-lhe servido o frango com arroz e batatas fritas, um simulacro de salada: alface, tomate e cebola, muito vinagre e pouco azeite, ruim, o pior que havia, misturado com óleo, que ficava mais em conta. Depois do jantar dava mais uma volta pelas ruas, pejadas de gente, e ia deitar-se. O quarto era pequeno, a cama pequeníssima e pouco confortável. Quem sabe se um dia a sorte surgiria, sorrateira; comprava o seu apartamento, deitar-se-ia numa cama larga, ao lado da sua mulher, bonita, sorridente, culta… Quem sabe?

     No dia seguinte, segunda-feira, levantou-se às seis e meia da manhã, ainda ensonado, bebera-lhe bem no dia anterior, e dirige-se à casa de banho a fim de cortar a barba, agora já composta, e tomar o seu duche. Como a casa tinha mais hóspedes, teria de esperar a sua vez, com paciência. Haveria que dar tempo ao tempo, viriam melhores dias, a esperança era a sua companheira inseparável. Já passara por pior!           

        A semana passou-a como sempre: escritório de dia e aulas à noite, na Escola Comercial Veiga Beirão. Aquele curso era interessante, permitir-lhe-ia ser ajudante de contabilista, e o ordenado seria melhor do que agora, que mal dava para comer e pagar o quarto. O grande problema residia nos professores: alguns mal preparados cientificamente, outros, embora com grandes conhecimentos, estavam cansados depois de um dia de trabalho no Banco ou na Companhia de Seguros. Enfim, o ensino noturno era o parente pobre do sistema educativo. O esforço individual era a chave para obter bons resultados – sem ele ficar-se-ia pelo caminho. Namorar não queria, era ainda cedo; quando ganhasse bem, pensaria nisso. Na terra tivera um princípio de namoro, mas fora informado de que ela já casara com um emigrante. «Melhor!», pensava ele; «assim não tenho compromissos com ninguém, sou completamente livre.» Claro que isso disfarçava uma profunda frustração, mas não queria dar o braço a torcer. Aquela rapariga, de uma beleza ímpar, dera-lhe a volta ao miolo, mas ele, tímido, não agira a tempo, e perdeu-a. Agora já era tarde de mais. Provavelmente já seria mãe de um ou dois filhos, com nomes franceses… Enfim, o melhor era esquecer.

 

       No domingo, tal como combinara com Henrique, lá foi ter à esplanada e sentou-se à espera do amigo. Sentia uma ânsia imensa de lhe contar tudo, desabafar, desentulhar aquela amálgama de mazelas que lhe obstruíam o peito. Quando ele se aproximou, disse-lhe, a rir:

 

- Já pensava que não vinhas; deves estar farto de escutar a minha insípida história.

- Não diga isso, nem a brincar. A sua odisseia militar é digna de ser escutada. Pena é que durante a semana a gente não se possa encontrar, mas o trabalho não o permite. Continue, por favor…

- Tudo bem! Fico satisfeito por saber que estás a gostar…

     Dos mil que éramos no princípio, ficámos seiscentos. Aos restantes quatrocentos, não classificados, enviaram para outros quartéis, onde seriam treinados como atiradores. Esses seriam lançados para a guerra mais cedo, dentro de cinco ou seis meses, como os leões para o circo de Roma no tempo de Nero!

        Logo a seguir à seleção, um oficial de secretaria, brincalhão nas horas vagas, e pensando talvez que possuía carradas de graça, mas de mordaz humor, tem o atrevimento de me perguntar: - «Preferes outra especialidade, ou estás satisfeito com esta

     Ingénuo até à medula, e nada habituado a lidar com gente tão fina e de língua afiada, respondo melifluamente: «Se pudesse escolher, gostaria de ser operador-cripto, como foi o meu irmão

     A gargalhada soa, sarcástica, metálica, inumana! O monstro ria-se de mim! Na minha cara! As lágrimas vieram céleres, fáceis, a meus olhos. Seria, podes crer, a última vez que isso me aconteceria. Apercebi-me então que estava na selva e aí, nesse universo de maldade e perversão, não se chora: resiste-se, faz-se das tripas coração, engolem-se todos os sapos vivos e moribundos, aprende-se quase instantaneamente a eterna e sublime arte da sobrevivência.

     Os seiscentos mancebos aprovados foram divididos em três grupos de duzentos cada um. O primeiro grupo ficava já no quartel; o segundo iria para casa e voltaria em Fevereiro; os restantes duzentos rapazes apresentar-se-iam em Março. Tudo matematicamente elaborado, milimétrico, perfeito! Na tropa não se improvisa: é tudo pré-determinado, tudo feito a régua e esquadro.

     Simularam um qualquer sorteio, e a mim calhou-me o terceiro grupo. Como não tinha dinheiro em abundância, e porque também era poupado, quase forreta, e não sabendo o que o futuro me reservava, decidi regressar à minha querida terra, mas à boleia. Pus-me na berma da estrada e comecei a fazer o sinal caraterístico, isto é, fechei os quatros dedos mais compridos da mão e com o polegar bem esticado indicava a direção que pretendia seguir. Nunca antes andara à boleia, mas vi outros fazerem o mesmo e logo se aprende, se adquire o jeito. Nessa altura, e por razões óbvias, que não vêm ao caso, não se tornava tão perigoso, como agora, tal procedimento.

    Quem tinha carro, e eram poucos, sabia que a maioria do povo português era pobre. Uma boleia era sempre bem-vinda, pois economizava uns cobres a quem a recebia.

     Os automóveis passavam como bólides, indiferentes e alheios àquele braço estendido, àquele olhar de criança desprotegida. Carros de quatro ou cinco lugares apenas transportando uma ou duas pessoas! A viatura pertencia-lhes, dela podiam fazer o que bem quisessem, mas afinal de contas a solidariedade, o humanismo cristão tão apregoado no púlpito, tornavam-se em meros conceitos esvaziados de conteúdo. Por outro lado, um jovem fardado, um soldado da pátria, que iria brevemente defender o território nacional, ameaçado por bandidos, como os salazaristas diziam, por hostes de negros, sedentos de poder, merecia o apoio de todos os portugueses. Mas não! Passavam e não me viam! Não queriam que um pobre soldado se sentasse a seu lado, eles, que tinham carro, logo outro estatuto!

     Já desesperado, eis que um automóvel ligeiro, com alguns anos, mas ainda com bom aspeto, para junto de mim. O condutor, homem de meia-idade, complacente, interroga-me: «Para onde se dirige?» Eu, ainda incrédulo, algo desconfiado, respondo-lhe: «Vou para Melgaço.» O senhor, com uma voz algo emocionada, diz-me: «Para Melgaço! Que coincidência, sou precisamente de lá, embora resida e tenha o meu emprego no Porto; vou neste preciso momento fazer uma visita a minha irmã, a Brígida, conhece

    Respondi que sim, por sinal conhecia-a muito bem. Em uma cidadezinha tão pequena como a nossa toda a gente se conhecia, éramos todos vizinhos e amigos. Era proprietária de uma loja de louças junto à igreja matriz, ali pertinho do castelo medieval, o qual, segundo reza a História, fora mandado construir por D. Afonso Henriques, o nosso primeiro rei. Esse monarca também dera ao concelho, em 1183, um foral, que era uma espécie de constituição concelhia. Eu tinha apenas a sexta classe, ou seja, a quarta classe mais dois anos de um curso noturno «curso complementar de aprendizagem agrícola», mas sabia alguma coisa de História, porque gostava dessa disciplina e tinha como livro de cabeceira uma História de Portugal.

     A senhora Brígida era mãe da Teresinha, como nós lhe chamávamos carinhosamente. O pai da menina, ninguém sabia concretamente quem era, falava-se em um contrabandista, talvez um padre, era um segredo bem guardado, provavelmente já teria morrido, ou então mudara-se para outra terra.

     O senhor estava radiante com a minha companhia. Pelo caminho conversámos sem parar. Ele, mais do que eu. Era pracista, ou técnico de vendas, como agora se diz. Tinha duas filhas adolescentes, mostrou-me as fotografias, amorosas, «acompanham-me sempre», disse com ternura.

    Convidou-me a ir a sua casa quando voltasse ao Porto. Teria muito gosto nisso, fazia questão em apresentar-me à esposa e filhas. Era sempre bom ter alguém da mesma terra para conversar, lembrar aqueles tempos felizes, mas de relativa miséria, tempos que jamais voltariam, dizia ele.

- Claro que foi visitar esse senhor e a família – interrompeu Henrique, atento ao desenrolar da história.

- Não fui! Por timidez, para não incomodar. Só muito mais tarde me apercebi que a presença de um patrício no nosso lar, quando se vive longe, nos traz imensa alegria e nunca aborrecimento. Essas coisas aprendem-se por experiência própria. Uma pessoa da nossa terra, um conterrâneo, é um pedacinho dessa mesma terra, faz parte do nosso ser, é uma molécula viva da antiga memória coletiva.

- Está a filosofar, mas talvez seja verdade o que acaba de dizer – concorda o moço.

     Cândido quase não o ouviu. As memórias irrompiam, como nascentes de um rio caudaloso. Prosseguiu:

 

- Chegamos finalmente a Melgaço. Nos anos sessenta do século XX era uma Vila minúscula, sem alma, triste e semidesértica! Os jovens tinham emigrado. As raparigas, em grupo, aos domingos à tarde, pareciam andorinhas na primavera procurando o seu companheiro para, juntos, construírem o seu ninho. As fadas do lar, atingidas no âmago do seu peito, choravam amargamente. Umas… porque tinham os seus rebentos por essa Europa fora; as outras, em menor número, porque eles combatiam em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. As mães estão sempre em pranto quando os seus meninos estão ausentes.

- Eu nunca passei por essa experiência – lembra Henrique. - Estive sempre com a minha mãe. Quem sabe, um dia…

- Não tenhas pressa, rapaz; é bom viver com os nossos pais, com aqueles que o são, porque há criaturas que não merecem esse nome. Mas é melhor não abordar esse assunto, pois quando falo disso fico sempre triste.

- Continue com a sua narrativa – propôs Henrique, amavelmente, verificando que o seu amigo estava deveras emocionado.

- Durante o período que estive na terra natal trabalhei arduamente, a fim de juntar uns tostões. Os preços praticados eram baixos, não dava para amealhar; os meus clientes eram pobres, quase todos pequenos agricultores, mesmo assim ainda consegui umas centenas de escudos. O implacável calendário ia-me informando de que o dia de regressar ao CICA-1, assim se designava o quartel, se aproximava vertiginosamente. Andava taciturno e pensativo. Que raio, por que não podia fugir, ir para França ou Alemanha, como os outros foram?! Que força, maldito fado, me obrigava a caminhar em direções opostas à minha vontade, ao meu sentir, à minha maneira de ser, à minha ingénita passividade? Estaria a ser posto à prova por entidades superiores, divinas?! – pensava eu, temeroso, mergulhado ainda na fase do obscurantismo religioso!  

     Não lera, só alguns anos mais tarde isso aconteceu, Bertrand Russell (Porque Não Sou Cristão), nem o surpreendente romance “Jean Barois”, de Roger Martin du Gard, editado pelas Éditions Gallimard em 1914.

- Nem Marx, Engels, Lenine, Estaline, Mão Tsé-Tung…

- Antes de 25 de Abril de 1974 não se podiam ler essas obras em Portugal. A igreja católica portuguesa, sobretudo a sua hierarquia, e a PIDE, estavam atentos, as livrarias não podiam colocar à venda esses livros, sob pena de ficarem sem eles e arranjarem problemas graves com a “justiça”. A censura era implacável, meu amigo. Se alguém estivesse sob suspeita, a sua vida tornava-se em um inferno, corria perigo. A sua casa podia ser invadida a qualquer momento, submetê-lo-iam à tortura do sono, podia, inclusive, ir parar ao aljube, ao Tarrafal, essa maldita colónia penal de Cabo Verde...

- Mas não eram apenas os militantes do Partido Comunista os alvos da PIDE? – perguntou Henrique, cheio de dúvidas.

- Qualquer um podia sê-lo, desde que mantivesse um comportamento social que suscitasse suspeitas aos esbirros de Salazar. Para eles, os que estavam contra o regime, eram todos comunistas!

     Mas, dizia eu, que essas leituras me ajudaram a compreender o mundo. Eu estava de olhos fechados, completamente! O padre Emiliano, o «santinho», como as beatas lhe chamavam, mais as catequistas, obstruíram o meu cérebro de criança. Tudo era pecado: desobedecer, recusar, pensar! Ter imaginação era considerado heresia! Até brincadeiras inocentes eram, por vezes, vistas com maus olhos. A repressão era o pão-nosso de cada dia. Tínhamos de rezar o credo, a salve-rainha, eu sei lá, como castigo! E a cana-da-índia funcionava sempre: na escola e na catequese. Há pecados mortais e não mortais. Um deles, que alguns padres jamais cumpriram, é aquele que diz: «Não cobiçarás a mulher do próximo»! Quanto a mim os padres católicos deviam casar, para saberem o que é amar um filho, e o que custa educá-los com dignidade.

- Esses grandes sábios ajudaram-no a libertar-se desse jugo irracional, dessa escravatura do espírito…

- Em parte sim; o resto é a experiência, o rolar dos anos, o contacto com os outros, os altos e baixos da vida, a infinita curiosidade. Muitas pessoas não querem sair do fosso – ficam lá, chafurdando! É cómodo.  // continua...              

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