LINA - FILHA DE PÃ
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
19.º Capítulo
No
ano seguinte, em Julho, foram todos – com exceção dos filhos do Senhor Doutor
Juiz – instalar-se nas Termas. Quase ninguém os reconheceu. Os primitivos donos
dos Hotéis já tinham perecido, agora eram os seus descendentes, ou outras pessoas,
por aquisição, ou trespasse, que os geriam. Notaram que havia menos hóspedes,
menos pessoal de serviço. O Senhor Doutor Juiz perguntou ao gerente:
- Há anos estive
aqui e este lugar estava a abarrotar de gente; agora quase que não se vê
ninguém! O que se passa?
- O que se passa,
Senhor Conselheiro, é que devido à guerra colonial os jovens emigraram.
Primeiro foram sozinhos, a maioria deles solteiros. Depois casaram com
raparigas de cá e levaram-nas para França, Luxemburgo, Alemanha, eu sei lá,
para os países onde laboravam. O concelho perdeu já metade da população. Por
este andar, daqui a uns anos, esta terra, que já teve mais de vinte mil
habitantes, ficará deserta.
- E os Hotéis? E
as Termas?! Pensa que vão acabar?
- Certamente. Não
tenho quaisquer dúvidas. Sem empregados não há Hotel que resista. Nós já
contratamos alguns de fora, mas por todo o país há menos gente, foge tudo, sobretudo
jovens, e aqueles que ficaram, ou vieram da guerra do ultramar, querem chorudos
ordenados, incompatíveis com os nossos lucros.
- A guerra
colonial, a emigração, rouba-nos os jovens; que irá ser deste país sem eles?
Lina pediu ao marido que a levasse à freguesia
onde nascera. Decidira não sair do carro, pois ainda podiam estar pessoas vivas
do seu tempo, podiam reconhecê-la, apesar de estar muito diferente daquilo que
fora. Ignorava se os irmãos moravam ali, talvez ainda morassem, pois com a sua
idade o mais certo era não terem emigrado. O marido aquiesceu, até gostou da
ideia, já lá fora há muitos anos, mal se lembrava, aproveitava para conhecer a
igreja do convento por dentro e os sítios por onde Lina andara na sua meninice.
Chamou o motorista e pediu-lhe que preparasse o automóvel, pois iam dar um passeio
ali por perto.
O Luís, assim se chamava o motorista,
correu a tratar do carro. Informou-se primeiro do estado das estradas
camarárias, dos caminhos, e chegou à conclusão que precisaria de ter muito
cuidado, pois o concelho estava pessimamente servido dessas vias. O Hotel
forneceu-lhe um mapa das freguesias, que ele estudou com cuidado. Depois do
almoço dirigiu-se para o automóvel. Passado pouco tempo apareceram os seus
patrões, acompanhados da filha, genro e netos. Foram em dois carros; um deles era
conduzido pelo engenheiro.
Daquele lugar do Couto dirigiram-se a
Prado Verde e dali subiram até à freguesa de Dernepa. A igreja do convento
estava aberta e assim aproveitaram para a visitar. Lina disse:
- Sabem uma
coisa: foi nesta igreja que me batizaram; e foi aqui que recebi a primeira
comunhão; aqui assisti a muitas missas. Está na mesma – nada mudou! E estão a
ver ao lado o convento? Dizem que ali viveram durante séculos frades e freiras.
No meu tempo de criança eram lá as salas de aula.
Perguntaram a umas pessoas se podiam levar
o carro mais acima, ao lugar onde Lina nascera.
- Isso é
impossível. Naquele caminho que veem, só entram carros de bois; só se forem
pela estrada de Castro da Serra. Tinham que ir à Vila e depois subiam pela Loja
Moderna. A seguir passavam a Ponte da Ferreira…
- Isso é muito
complicado, disse Lisete. Por acaso conhecem os senhores Acácio e Tomás?
- Nós não
conhecemos, mas ali o dono da loja é de esse lugar. Vão lá e perguntem-lhe.
Dirigiram-se todos para o estabelecimento.
Ao balcão estava um senhor de idade. Perguntaram-lhe:
- O senhor
conhece os senhores Acácio e Tomás, de Pomarães?
- Não conheço eu
outra coisa. São meus amigos e clientes desde sempre. Agora estão sós com as
mulheres, os filhos foram para França. Se desejam falar com eles têm de ir a pé
até lá – uma boa hora de caminho. Mas posso fazer uma coisa: os senhores ficam
aqui à espera e eu mando lá um rapaz chamá-los. Eles conhecem os atalhos e põem-se
aqui num instante.
O juiz olhou para os restantes, a ver se
lhes notava alguma reação negativa, mas verificou que todos estavam dispostos
a esperar. Virou-se para o lojista e pediu-lhe:
- Então faça o
favor de mandar lá o miúdo; nós esperamos.
- E quem deve
anunciar?
- O moço que lhes
diga que estão aqui uns parentes à sua espera.
O comerciante resolveu tudo em frações de
segundos. Após isso, perguntou-lhes:
- Desejam comer
alguma coisa? Tenho presunto e fumeiro daqui, de boa qualidade, tudo caseirinho;
vinho verde, tinto e branco, também do lavrador. O pão, mistura de milho e
centeio, é feito em minha própria casa, pela minha mulher e pela empregada, em
forno de lenha, embora agora haja eletricidade, veio para cá há pouco tempo.
Olharam uns para os outros, sem saberem o
que fazer. Por fim o marido da Lisete diz ao dono da venda:
- Está bem,
arranje-nos a merenda. Traga apenas um pratinho para ver se a qualidade corresponde
às suas palavras.
O homem chamou pela cara-metade, num
vozeirão, visto que a mercearia e tasca estavam no rés-do-chão da moradia.
- Alexandrina,
traz broa e uns pratinhos lavados para uns clientes especiais; não te demores.
- Já vou, Arnaldo,
já vou.
Passados uns minutos apareceu a patroa.
Olhou, com olhos de águia, para aquelas pessoas, voltou a olhar e fixou-se na
Lina, que resolvera, após alguma hesitação, sair da viatura.
- Ia jurar que a
conheço, mas há tantas pessoas parecidas. Não, não é quem eu pensava. Não pode
ser.
Deixou de olhar e começou a limpar a mesa,
uma mesa retangular, com uma toalha aos quadradinhos. Distribuiu os pratos e
subiu ao primeiro andar a fim de trazer copos lavados. Notara que aqueles
clientes eram de facto especiais, gente fina, da cidade. «O que estariam ali a fazer?» - perguntou a ela própria, visto que
estava com receio de lhes perguntar diretamente. Lina ficara corada, mas
reagiu, perguntando-lhe:
- A senhora
chama-se Alexandrina? É engraçado que quando frequentei a escola, ali no
Convento, tinha uma colega com esse nome: uma autêntica traquina. Nenhuma de
nós concluiu a quarta classe na altura. É daqui?
A mulher voltou a olhar para ela
fixamente. Esforçou-se por se lembrar daqueles dois ou três anos que andara na
escola primária, sem ter aprendido nada, diga-se a verdade, das companheiras da
escola, da brincadeira. Por fim arriscou:
- Sou. Nasci aqui
perto. Não me diga que é a Lina, a filha da senhora Clara, que Deus lá tem no
céu. Se é ela está muito diferente, ninguém a reconhecerá por aqui, nem sequer
os seus irmãos. Era a minha colega de carteira, a minha maior amiga.
Lina
aproximou-se da mulher e abriu-lhe os braços. As lágrimas correram pela cara de
ambas.
- Tantos anos,
tantos anos. Sabes o que se diz por aqui, e em todo o lado? Que já tinhas
morrido! Como estás diferente! O teu rosto calmo, o olhar sereno, os cabelos
todos brancos!
- Tu estás bem
conservada. E as outras, as nossas amigas? Que é feito delas?
- Andam por aí;
mas algumas foram com os maridos e filhos para França e para outros países. A
nossa freguesia já tem pouca gente, mesmo assim ainda é das maiores do concelho.
Não descurando as outras pessoas,
pede-lhes:
- Façam favor de
se sentar; vou lá em cima buscar uns guardanapos.
Lina estava indecisa se devia ou não
apresentar-lhe os familiares. Provavelmente cometera um erro ao identificar-se.
Pelos vistos, ninguém a reconhecia; podia andar à vontade.
Sentaram-se todos à mesa e começaram a petiscar.
Estava tudo ótimo. O Senhor Doutor Juiz fez sinal ao Luís para vir até ali
comer qualquer coisa.
De repente aparecem dois indivíduos. Eram
os irmãos da Lina. Entraram na mercearia e perguntaram ao amigo quem queria
falar com eles. À primeira vista pareciam rudes, estatura média, ombros largos,
as mãos calejadas pelo uso constante da enxada e do arado.
Lina levantou-se da mesa, e dirigiu-lhes a
palavra:
- Fui eu que vos
mandei chamar. Não se importam de ir ali fora, preciso de falar com vocês.
Eles entreolharam-se. «Quem seria aquela senhora, com ar fino, bem vestida e melhor penteada?»
Resolveram sair. Nada tinham a perder, por isso perguntaram-lhe:
- A senhora quer
alguma coisa de nós? Não nos faça perder tempo, olhe que temos muito trabalho
pela frente.
- Eu sei quanto
trabalho tendes a fazer; antes de vocês nascerem já eu andava nos recados. Não
vos lembrais de mim? Que raio de irmãos, que mal virei costas, me esqueceram!
Olharam para ela, com mais insistência, e
notaram que naquele rosto, naqueles olhos, na testa, existia qualquer coisa de
familiar. Um deles, o mais falador, perguntou-lhe:
- Irmãos?! Quem é
a senhora? Diga-nos primeiro quem é, e depois falamos.
- Sou a vossa
irmã, a Lina. Não se lembram de mim?
- Lina? A nossa
irmã? Mas a Lina morreu na cadeia, em Lisboa!
- Quem vos disse tal
coisa, palermas? E vós acreditastes? Que provas tendes disso? Devia dar-vos
dois pontapés nesse rabo, bem os merecíeis.
Ficaram perturbados: aquela era a Lina
que eles conheceram – a voz, os gestos, aquele olhar funesto.
- Lina! Tu estás
viva! Como é possível?! Vais voltar a viver aqui? Temos pouco, mas o que temos
reparte-se contigo. Não te preocupes.
Correram ambos para ela e abraçaram-na com
carinho. Ao fim, e ao cabo, e apesar da vergonha que passaram por causa dela,
ao ponto de evitarem ir à Vila, era sua irmã, filha do mesmo pai e da mesma
mãe.
- Deixai-vos
estar com aquilo que tendes; eu, felizmente, vivo bem, embora longe da minha
terra natal. Vim apenas aqui para vos ver e para visitar as campas dos nossos
avós, pais e tios, caso as tenhais conservado. Se não se importam venham comigo
ao cemitério e indiquem-mas.
Lina chamou os familiares, e apresentou-lhes
os irmãos. Conversaram durante uns minutos e às tantas o seu cunhado chamou-os
à parte e perguntou-lhes como ia a lavoura naquele ano.
- Má, muito má;
este ano vai ser um desastre, mas apareça por lá, arranja-se sempre um chouriço
e um garrafão de vinho. É pena o vosso carro não poder lá ir.
O magistrado compreendeu de imediato a
situação daquela gente: viviam com algumas carências. Esperou que a esposa viesse
do cemitério e depois segredou-lhe:
- Os teus manos
não vivem em abundância. Não seria melhor dares-lhe algum dinheiro? Eu não lhes
ofereci com receio que não compreendessem o meu gesto. Tu és irmã deles…
- És um santo
homem, marido. Dar-lhe-emos o que pudermos.
Lina chamou os irmãos e pediu-lhes para
aceitarem o dinheiro. Disse-lhes:
- Não se trata de
uma esmola. Isto é um empréstimo. Quando puderem pagar, pagam. E mais: se virem
que aqui estão com dificuldades, o meu genro arranja-vos trabalho na Quinta.
Tirou da mala papel e caneta e escreveu a morada de sua filha, com quem já
falara antes acerca desse assunto.
Lisete aproximou-se dos tios e corroborou
tudo aquilo que sua mãe já lhes dissera.
- Tios: se o
trabalho aqui escassear não se preocupem – temos uma Quinta enorme, quartos não
faltam, apareçam por lá.
Além da direção, ficaram também com o
número de telefone. Aproximava-se a hora da refeição no Hotel e por isso
retiraram-se.
Os dois irmãos nem acreditavam no que lhes
estava a acontecer. Pensavam que a irmã ia meter-se lá em casa, que também lhe
pertencia, pois nunca fizeram partilhas, ia comer o pouco que eles tinham, e
para além disso, o mais grave, seria o falatório da vizinhança: «O bandalho regressou da Penitenciária!»
«Não há duvida – o diabo protege-a! Estar
viva ao fim de tantos anos na prisão!»
Enfim, esperavam o pior. Receberem dinheiro
da irmã? E oferecerem-lhe trabalho numa grande Quinta? E a sobrinha? Aquela
senhora era aquela rapariguinha que fora um dia trabalhar no Hotel? Como os
anos tinham passado! Tudo mudara – até as pessoas! E eles tinham ficado ali,
não arredaram pé daqueles terrenos agrícolas, daquela casa de granito a cair de
velha, laborando de sol a sol. E para quê? Afinal de contas o que tinham de seu?
- Acácio – filosofa
Tomás – o destino prega-nos destas partidas. Brinca connosco. A nossa irmã,
cheia de crimes e atirada durante anos e anos para uma masmorra, aparece-nos
agora aqui cheia de dinheiro, bom carro, com motorista, casada com o Senhor Doutor
Juiz, que a abandonara grávida, quando ela era ainda uma garota, com a filha
casada com um Senhor Engenheiro, ricos, poderosos, com uma grande propriedade,
e nós?
- Perguntas bem, Tomás:
e nós? Há mais de quarenta anos que trabalhamos as terras de sol a sol, ainda
temos as duas pesqueiras no rio Minho, e para quê? Um ano ruim e eis-nos quase
a mendigar uma esmola! Raios partam esta vida!
- Apesar de tudo,
eu nunca deixarei a nossa velha casa, os nossos campos, as vinhas, tudo que é
nosso. Prefiro o pouco aqui do que o muito noutro lado.
- Também acho; concordo
inteiramente contigo. Continuaremos na nossa labuta, independentes, sem recebermos
ordens de ninguém. Lina e Lisete, mais os maridos e filhos, que nos venham
visitar; a casa não é grande, mas caberão lá todos. Na mesa de pobre há sempre
lugar para mais um.
Lina e os familiares estiveram nas Termas durante duas semanas e meia. Dificilmente voltariam lá, pois verificaram que já se ouvia o toque de finados para elas. Era o fim de uma época áurea para aquele local paradisíaco. Talvez um dia voltasse ao seu apogeu, quem sabe, mas já eles estariam na graça do Senhor, ou no inferno a alimentar a fogueira da mãe do demo.
**
Os anos passam depressa, sobretudo quando se
vive bem consigo próprio, em harmonia. Lina e o Doutor Juiz envelheceram
juntos, já tinham bisnetos. Um dia a filha mais nova de Pã diz para o marido:
- Diogo Nuno:
qualquer dia teremos que prestar contas ao Desconhecido. Duvido que Ele me perdoe
todo o mal que causei aos outros. Se me sobreviveres, gostaria que fizesses
tudo que estiver ao teu alcance no sentido de eu ser sepultada no cemitério da
minha freguesia, e na campa ficasse gravado: «Aqui jaz Lina, a mulher mais perversa que existiu em Melcarte. Perdoai-lhe.»
- Não é justo o
que me pedes, esposa; não terei coragem sequer de mandar gravar isso no teu sepulcro.
E quanto ao desejo de seres sepultada na tua freguesia de nascimento, isso não
vai ser possível, pois como sabes temos os nossos jazigos de família; nenhum
membro é enterrado noutro cemitério. É uma tradição com imensos anos de
existência.
- É assim que eu
o desejo e assim se cumprirá. Vou fazer o mesmíssimo pedido à nossa filha.
Certamente que não me vai negar esta minha última vontade.
- Eu, quando expirar,
quero ser sepultado a teu lado. Em vida, estivemos demasiado tempo separados;
depois de mortos devemos estar lado a lado, até à eternidade.
- Lamento, mas
não vai acontecer assim. Após a morte os nossos caminhos serão diferentes: eu
vou seguir um rumo e tu seguirás outro. Eu sei isso já há algum tempo; não to
disse antes para não te alarmares. Digo-to neste momento porque chegou a hora
da partida.
- Eu
abandonei-te, maldito seja esse dia, e agora abandonas-me tu. Porquê?!
- A razão é
simples e complexa simultaneamente: os nossos destinos cruzaram-se por mero acaso.
Os nossos corações bateram ao mesmo ritmo e nossos corpos uniram-se. Tu, porque
oriundo de um meio mais elevado, prenhe de preconceitos, desprezaste o meu
corpo e levaste contigo meu coração – esse pertenceu-te sempre. Agora chegou o
momento da rutura. Os nossos corpos deixarão de pertencer-nos: já estou a
vê-los serem devorados pelos vermes; os nossos corações deixarão de pulsar.
Restarão as nossas almas, fluído ideal, voando, como aves, pelos espaços
siderais, à procura do Ente Puro, do Eterno Desconhecido, buscando a doce harmonia,
a paz.
- E não podemos
seguir juntos em busca desse Ente Puro?
- É impossível!
Nós somos apenas fragmentos de um todo; cada pedacinho busca encontrar-se com
outro, e depois com outro, até formar um painel perfeito, que possa ser
admirado por outros fragmentos que por ali esvoaçam.
- Isso significa
que nós pertencemos a um todo, que outrora, em tempo incerto, foi despedaçado!
Daí a atração!
- Exatamente. A
atração não é mais do que a juntura de dois minúsculos corpos para, unidos,
serem mais poderosos e assim poderem mais facilmente atraírem outros.
- E o
conhecimento? Quem foi que nos deu o conhecimento?
- Ninguém! As Escolas,
as Universidades, apenas põem à disposição dos seus alunos aquele saber que
gerações e gerações de seres, todos os entes vivos, vieram acumulando ao longo
de milénios. O alfa e beta, ou seja: o conhecimento total, jamais se disponibilizou
para a espécie humana. É por essa razão que, após a morte física do corpo, que
voltará à primitiva forma, a chamada alma, ou espírito, o tal fluído ideal,
parte para uma caminhada interminável em busca daquilo que ainda não sabe.
- Então a morte e
a vida…
- São apenas
rostos da mesma realidade; um antes e um depois. Repara nas plantas: surge o
inverno e elas atrofiam-se; vem a primavera e renascem! Há animais que
hibernam! São apenas efeitos do mesmo fenómeno: a raiz permanece.
- Dizes bem: a
raiz! Estamos todos ligados, seres humanos ou não, à mesma raiz, ou seja, à
mesma origem ancestral.
- E é essa origem
que os fragmentos procuram, numa incessante caminhada sem fim, porque a origem,
o alfa, se ainda existe, está algures, em parte incerta, fora talvez do nosso
alcance.
- E as religiões,
qual é o seu papel?
- As religiões
são a ponte para uma procura, embora infrutífera, do caminho para uma felicidade
sem fim. Como os resultados são nulos, recorre-se à fé; face ao fracasso, surge
o desespero, que conduz à revolta, à tirania por vezes.
- Lina: hoje tive
a melhor lição da minha vida. Finalmente compreendi a razão da nossa existência,
da nossa rotação. A deriva é apenas aparente. Tudo tende para o mesmo objetivo:
a busca do ventre comum.
Naquela noite ninguém dormira em casa da Lisete e do engenheiro. Expirara, por volta das vinte e três horas, o Senhor Doutor Juiz Conselheiro. Tinha setenta e cinco anos de idade. Tal como era tradição, a urna foi colocada no jazigo de família, onde se podiam ler nomes de antepassados famosos.
Todos choraram a sua morte, menos a sua
viúva. Lina sabia que as lágrimas eram o espelho da alma e a sua já não morava
no seu corpo. Partira, havia algum tempo, para os confins do universo. O
funeral foi grandioso: toda a família, um exército de padres, o bispo da
diocese, que fez questão em acompanhar à sua última morada o ilustre juiz,
muita gente, conhecidos e desconhecidos, os quais manifestaram vontade de se
despedirem daquele homem que revolucionara a jurisprudência em toda a Europa.
As suas obras, conhecidíssimas nos meios forenses, eram aconselhadas em todas
as Faculdades de Direito por esse planeta fora. Em muitas ruas e praças já
figurava o seu nome. Enfim, morrera um sábio.
Lina faleceu cerca de dois anos depois. A vinte
e três de Janeiro de mil novecentos e setenta e nove; no dia em que completava
cinquenta e nove anos de idade. Depois da morte do marido passara a residir com
a filha e genro. Fazia uma vida muito recatada, ouvia música, via televisão,
mas os seus olhos já tinham dificuldade em distinguir as imagens, por isso
pusera de lado o ecrã. Antes de morrer falou com a filha acerca do funeral:
- Lisete: aproxima-se
a despedida. Vivi mais do que estava previsto. O meu percurso, como sabes, não
foi fácil, mas por fim alcancei a paz interior. Tu foste muito importante na
minha vida e na vida do teu pai. Faço votos para que continues a ser feliz
junto do teu marido, filhos e netos. Não quero um enterro como o do teu pai,
nem quero ser sepultada a seu lado. Ele era um homem famoso, um cientista, e eu
sou uma pobre mulher de aldeia. Ele será recordado ao longo dos séculos pelas
suas obras científicas e eu serei recordada, pelo menos em Melcarte, pelos meus
nefandos crimes. Por isso não te esqueças: manda colocar meu corpo de defunta
no cemitério da freguesia onde nasci. E na campa, rasa, ficará gravado o que
aqui está escrito neste papel. Não te esqueças de cumprir o que agora te peço.
**
A filha, apesar de contrariada, cumpriu a
sua última vontade. Levou o seu corpo para Melcarte, a fim de ser sepultada no
cemitério de Dernepa, em campa rasa, perto dos seus pais e avós. E depois de
tantos anos ainda hoje se pode ler, na pedra de mármore, embora com alguma
dificuldade, pois os invernos rigorosos foram apagando aquela memória: «Aqui jaz Lina, a mulher mais perversa que
existiu em Melcarte. Perdoai-lhe.»
Há quem afirme que da sua sepultura se
exalava um odor suave, apaziguador, e se ouvia uma música celestial... Lendas!
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