LINA - FILHA DE PÃ
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
16.º Capítulo
Devido ao seu bom comportamento
perdoaram-lhe algum tempo. Na prisão fez a quarta classe do ensino primário,
aprendeu a bordar, descobriu que tinha jeito para o desenho, granjeou amigas e
inimigas.
No princípio ainda chegou a contactar com
o amante, por carta, mas à medida que o tempo ia passando ele deixou de dar
sinais de vida. Tentou saber o que acontecera e por fim deram-lhe a triste notícia:
ele morrera. Não chorou, mas teve pena do desgraçado. Afinal de contas até fora
bom para ela, ao ponto de estar disposto a casar. E, que ela soubesse, deixara
de se interessar por outras mulheres logo que se conheceram. Começava a sentir alguns
remorsos. Tanto mal ela fizera. «O demo
tentou-me e eu cedi; devia ter-lhe resistido.»
Um sacerdote católico, ainda jovem,
visitava as reclusas uma vez por semana. Com um sorriso de anjo, olhos vivos e
alegres, cativou aquelas mulheres carregadas de crimes. Durante algum tempo, a
Lina recusou falar com ele:
- Desculpe,
senhor padre, mas eu não sou crente; já fui, quando ainda era uma menina.
Agradeço que não me incomode.
O presbítero apenas lhe disse o seguinte:
- Lina: eu venho
aqui à prisão como amigo, mas se qualquer de vocês não desejar a minha
presença, eu não insisto. Se alguma vez quiser ter uma conversa comigo não
hesite: procure-me.
Sorriu para ela e retirou-se. Ele sabia que
não era fácil conquistar a confiança e amizade daquelas mulheres que tanto
sofreram e fizeram sofrer os outros. Quando visitava a prisão levava sempre uma
lembrança: um santinho, um rosário, uma medalha… Tudo feito de material barato,
pois a Igreja Católica só era rica em Roma. O Vaticano possuía tesouros incalculáveis.
O ministro das Finanças, sacerdote diplomado em Economia por uma das mais
célebres Universidades do planeta, sob a tutela e dependência do Papa, via-se
em palpos-de-aranha para administrar aqueles bens todos, que a guarda suíça
vigiava constantemente. Todos os países onde houvesse uma igreja católica
tinham de enviar para lá dinheiro, pois a despesa com aquele exército de
padres, bispos, cardeais, funcionários, etc., era imensa!
O padre Álvaro não queria saber disso
para nada; apenas desejava convencer aquelas almas a mudarem de rumo, a
reentrarem no caminho correto, em direção a Deus. Os seus pais, gente modesta,
não tinham dinheiro para ele estudar, por isso pediram ao padre da freguesia
para o levar para o Seminário. Tudo correu bem, e ei-lo agora sacerdote. Toda a
gente gostava dele e ele retribuía, apesar dos seus manifestos defeitos. Dizia
muitas vezes: «É certo que Deus criou o
ser humano à sua semelhança, mas deu-lhe o livre arbítrio, o que levou muitos
homens e mulheres a julgarem que eram superiores ao próprio Deus, a cometerem
barbaridades impensáveis!»
Conhecia
muitos filósofos que não perfilhavam essa tese; escreveram eles que Deus não
era todo-poderoso, por isso não podia conceber seres perfeitos. A prova estava
na existência de Satanás. Por que existia essa criatura se fazia mal aos seres
que Deus criara?! Era uma aparente contradição, uma perfeita aberração, mas ele
abraçara desde jovem essa tese e não a ia abandonar nunca.
**
Lina sentara-se na sala, onde as reclusas
costumavam ler, ou praticar atividades lúdicas, enquanto não eram chamadas para
a refeição da noite. Nessa ocasião passa o padre Álvaro. A reclusa chamou-o. Há
muito tempo que desejava conversar com ele, mas ainda não ousara fazê-lo.
- Senhor padre:
pode dar-me um minuto de atenção?
O sacerdote olhou para a Lina, ou “a minhota”,
como todos lhe chamavam na prisão, com aqueles olhos bondosos, e diz-lhe:
- Um minuto,
dois, o tempo que quiser, Lina. Eu estou sempre disponível para o meu
semelhante, até agradeço que falem comigo.
- Obrigada. Sabe:
eu cometi muitos erros ao longo da minha vida. Nasci no seio de uma família de
camponeses e jornaleiros, pobres, mas honestos, e todos esperavam que continuasse,
tal como eles, na senda do bem. A minha rebeldia, contudo, não permitiu que eu
seguisse esse caminho. Frequentei a escola pouco tempo, depois andei aos
recados dos crescidos, a guardar cabras e ovelhas, a ajudar a minha mãe nos
trabalhos domésticos. Ainda eu era bastante nova quando o meu pai morre, doente
dos pulmões e alcoólico. O meu destino estava traçado: tive de ir servir, para
ajudar em casa. E sabe para onde a minha mãe, pobre coitada, me levou? Para
casa de um juiz. Era um homem jovem, bonito, solteiro, bem-falante, e estava
sozinho. Ao fim de uns meses já eu lhe pertencia. Possuiu-me e ao cabo de nove
meses dei à luz uma criança do sexo feminino.
O padre interrompeu-a, a fim de lhe
perguntar:
- E a Lina, por
que não fugiu de casa do seu patrão? Não lhe faltariam casas sérias para trabalhar.
Ela pensou um bocado e respondeu-lhe:
- A razão, senhor
padre Álvaro, é que eu estava loucamente apaixonada por o Senhor Doutor Juiz.
Antes de ele me desejar já eu o desejara! Era uma adolescente, via então o
mundo cor-de-rosa. Ele era um modelo de perfeição, irresistível. Sonhava com
ele todas as noites.
- Não me diga que
lhe passou pela cabeça que o magistrado a pediria em casamento?
- Talvez! Eu
sabia, pelo menos tinha a noção, que entre os dois existia um universo de diferenças,
mas quem não sonha naquelas idades? Já viu?! A filha de camponeses casada com
um Senhor Doutor Juiz, ainda, por cima, um homem novo, bonito, culto.
- Era como nos
contos de fadas!
- Isso mesmo,
como nos contos de fadas: ele era o meu príncipe, e eu era a gata borralheira.
- Como é bom
sonhar, Lina, mas a realidade não se compadece com sonhos. Um juiz contrai
matrimónio com uma senhora da sua condição, da alta sociedade… A Lina,
analfabeta, inculta, não correspondia aos seus padrões; usou-a apenas para
obter prazer carnal. Sem querer, a sua mãe meteu-a na boca do lobo, e os lobos
são feras, seres brutos, sem sentimentos.
- A vida, padre
Álvaro, é um jogo de interesses. Depois de ter entrado neste estabelecimento
prisional, de onde provavelmente sairei num caixão para o cemitério, comecei a
pensar no meu passado e cheguei a uma terrível conclusão: alguém me manipulou,
alguém me obrigou a fazer aquilo que eu no fundo, bem no fundo do meu ser, não
queria, não desejava pôr em prática.
- E quem acha que
é esse alguém? Não se está certamente a referir a Deus ou ao Diabo?!
- Talvez sim e
talvez não… Para si, que é homem santo, será fácil deduzir que nós, humanos,
navegamos ao sabor de duas forças colossais, a que chamam o bem e o mal… Mas
será assim? E o destino? Quem comanda o destino? Não será o destino uma terceira
força, cuja energia se renova constantemente, dia a dia, hora a hora, minuto a
minuto?
- Quer significar
com isso que o destino é sinónimo de natureza?!
- Exatamente. Segundo
o meu critério, destino e natureza são uma só força.
- E Deus e o
Diabo, qual é o seu papel então?
- Quanto a mim,
padre Álvaro, são os instrumentos que o destino usa para alcançar os seus fins.
- Onde quer
chegar, Lina?
- Repare: a
natureza cria, mas também destrói. E quem, qual de nós a acusa, lhe aponta o
dedo? Ninguém! Resignamo-nos com tudo o que ela nos dá ou subtrai; no entanto
acusamos o demo pelo mal que nos faz e louvamos a deus pelo bem que nos concede!
- Bem pensado,
minha amiga. Apenas se esqueceu de um pormenor: é que Deus criou tudo aquilo
que existe no universo.
- Se aceitarmos
isso como verdadeiro, aceitamos também que deus criou o bem e o mal, a saúde e
a doença, a fome e a fartura, a guerra… Quem desejaria um deus desse quilate?
- Lina, não se
trata de um desejo: nós não temos escolha!
- E onde cabe o
livre arbítrio? As opções que a gente toma, as decisões que mudam para sempre o
nosso rumo, são pré-determinadas?
- Lina: você
começa a confundir-me, mas que quer ouvir de mim? Deseja ouvir da minha boca
palavras de conforto ou apenas ambiguidades, incertezas, desconstruções?
- Não sei, padre
Álvaro; eu apenas quero reencontrar-me, saber quem sou, quem ousou servir-se de
mim para exercer o mal sobre os meus semelhantes.
- As respostas a
essas complexas questões, encontrá-las-á ao longo da sua vida. Só Deus poderá
satisfazer essa sua ânsia na procura da verdade. Minha amiga: os caminhos não
são fáceis de percorrer: existem neles inúmeros escolhos, barreiras quase
intransponíveis, mil e um perigos incalculáveis.
- Obrigada por
esta conversa, padre Álvaro. Se não se importa voltaremos a conversar mais
tarde, estou a ficar cansada.
- Eu também lhe
agradeço, minha amiga; gostei muito de conversar consigo.
O eclesiástico retirou-se. Lina ficou a
meditar na conversa que acabara de ter com o religioso. De facto, os caminhos
da vida eram sinuosos, com altos e baixos, e a culpa, se é que existia culpa,
teria de ser equitativamente repartida por todos os intervenientes. Ela fora um
joguete nas mãos do juiz e depois tornara-se ela própria uma manipuladora de
fantoches! Porquê? Para se vingar do mal que lhe fizeram? E por que não se
vingara na pessoa do magistrado?! Afinal de contas fora ele que a transformara
num demónio.
Agora era tarde para voltar atrás, para
remediar o mal que fizera a tanta gente. Ali, naquela imensa prisão, com
mulheres e homens do piorio que havia na sociedade portuguesa, gente sem
escrúpulos, sedentos de sangue, só havia uma coisa a fazer: estar vigilante,
lutar pela sobrevivência.
Nessa noite dormiu pessimamente. Fez uma
retrospetiva da sua caminhada, arrependeu-se de todo o mal que causara, e
decidiu a partir daí seguir outro rumo. Era imperioso dar uma guinada de muitos
graus. Mesmo na cadeia, poderia ser útil aos outros. Dirigiu-se a uma
funcionária e disse-lhe:
- D. Amabélia:
venho inscrever-me como voluntária para a enfermaria; agradeço que vocês me
dêem essa oportunidade. Estou disposta a sacrificar-me pelos outros, como forma
de arrependimento.
A empregada olhou para o seu rosto,
sobretudo para os seus olhos, e verificou que havia sinceridade nas palavras da
reclusa. Dirigiu-lhe então a palavra:
- Isso não
depende de mim, mas vou transmitir aos meus chefes a sua disponibilidade. Quero
apenas avisá-la de uma coisa: esse trabalho não é fácil; muitas das mulheres
que vão parar à enfermaria são portadoras de doenças terríveis, muitas delas
morrem ali, depois de enormes sofrimentos. A Lina tem trabalhado nas oficinas,
toda a gente gosta dos objetos que faz, o senhor diretor está satisfeito com o
seu comportamento, até pode acontecer que lhe perdoem alguns anos da sua pena.
Não estrague tudo, ao aceitar tal tarefa – o mais certo é ser contaminada.
- Estou decidida
e nada me fará voltar atrás: cometi muitos crimes e quero pagar à sociedade a
minha dívida – não posso ressuscitar quem morreu, mas posso minorar o
sofrimento das minhas colegas de infortúnio.
- Tudo bem, Lina;
passe cá amanhã que já devo ter uma resposta para si.
No dia seguinte lá estava na secretaria da
Penitenciária. O pedido fora aceite. A partir desse dia iria ser ajudante de
enfermeira, mas primeiro teria de assistir a aulas de enfermagem. Ficou
radiante. Para ela era como se tivesse recebido um prémio. Dedicar-se aos outros,
sobretudo quando mais precisavam de apoio, era agora o seu objetivo. Se alguém
de Melcarte fosse visitá-la (o que nunca até ao presente momento acontecera – nem
filha, nem os próprios irmãos), não a reconheceriam. Os seus olhos agora eram
calmos, meigos; a sua boca perdera aquele esgar de troça que outrora a
caraterizara; as suas palavras tornaram-se sábias. Adquirira conhecimentos
profundos sobre a psicologia humana, como se tivesse estudado anos seguidos nas
melhores universidades do continente europeu.
Era respeitada por todos: guardas
prisionais, pessoal administrativo, colegas de cativeiro. Até já, por mais de
uma vez, o diretor a tinha apresentado como modelo a seguir pelas outras.
Ao fim de uns anos de ajudante de
enfermeira, em que a sua dedicação, carinho, e – segundo constava – algumas
curas milagrosas, o diretor mandou chamá-la. Os cabelos da Lina estavam agora
completamente brancos, algumas rugas surgiam aqui e ali, a lembrar-lhe que o
tempo passa inexoravelmente.
Dirigiu-se ao gabinete, acompanhada por
duas guardas da prisão, não que tivessem qualquer receio de ela ir praticar
algum mal, mas sim por fazer parte das regras, e qual não foi o seu espanto ao
ver junto do Senhor Diretor uma estampa de senhora, sorrindo para ela. Ficou
estupefacta: alguém, do mundo civilizado, sorria para ela, como se nunca
tivesse cometido um crime! Estava novamente a sonhar. Não podia ser: ela
armara-se de todos os instrumentos ao seu alcance para evitar essas fantasias.
Pecara perante a natureza e a sociedade e por isso continuava a pagar pelos
seus crimes. Abraçara a realidade, os sonhos eram propriedade dos outros – ela
não os merecia.
A senhora dá dois passos na sua direção.
Os seus olhos estão arrasados de lágrimas. Abre os braços para a Lina e
exclama:
- Mãe! Minha mãe!
Não se lembra de mim? Sou sua filha, a Lisete.
- Lisete! Minha
querida filha! Tu aqui! Perdoas à tua mãe todo o mal que te fez? Perdoas?
- Perdoo;
perdoo-lhe tudo. Ainda estamos a tempo de sermos felizes; nunca mais a deixarei.
- Minha querida
filha, vem visitar-me quando puderes, gostaria que me contasses tudo sobre a
tua vida. Já tenho netos?
Lisete ia novamente falar, mas o Diretor
impediu-a amavelmente; agora era a sua vez. Olhou para a Lina fixamente, com um
sorriso nos lábios, e disse-lhe:
- Sua felizarda:
a partir deste momento é uma mulher livre. Cumpriu muitos anos de prisão,
modificou-se, para melhor, hoje pode frequentar a sociedade sem receio de
recaídas. O seu caráter é forte e saberá enfrentar de cara erguida a adversidade.
Para tal, vai ter uma preciosa ajuda: a sua filha vai levá-la para a casa dela,
onde viverá o resto dos seus dias em paz e tranquilidade.
Lina desatou a chorar. Abraçou-se à filha,
como se fosse a âncora que lhe faltava para encarar a realidade exterior. Onde
moraria ela? Em Melcarte não seria, quase de certeza. As suas roupas, a maneira
de falar, a sua elegância, desmentiam essa possibilidade. A pronúncia da raia, junto
à Galiza, notava-se logo quando alguém falava. A sua filha vivia na cidade, nos
meios cultos e desenvolvidos. Dirigiu-se ao Director com delicadeza, com o
máximo respeito, para lhe dizer:
- Apesar de ter
entrado neste estabelecimento prisional como reclusa, aqui aprendi muito e não
quero, por essa razão, deixar de agradecer ao Senhor Diretor, pessoal
administrativo, guardas, e até às minhas colegas de infortúnio, toda a atenção
que me dispensaram ao longo destes anos. Nunca pensei sair daqui viva.
Aconteceu, e fico satisfeita por isso. Reencontrei a minha filha, a quem tanto
mal fiz, e tudo irei tentar para que ela não se arrependa jamais de hoje estar
aqui, neste gabinete, a fim de me levar com ela. Adeus senhor Diretor; espero
que cada vez tenha menos prisioneiros, pois será sinal de que as pessoas estão
a melhorar.
Pegou na mão da Lisete, cumprimentou o
Diretor, e retirou-se. Quando estavam no corredor diz à filha:
- Lisete: espera
aqui um bocadinho. Vou despedir-me das minhas camaradas e das empregadas.
- Vá mãe, vá; eu
aguardo aqui por si.
Despediu-se, com abraços, de toda aquela
gente. As lágrimas corriam por todos aqueles rostos. Algumas disseram-lhe: «És uma santa, Lina; és uma santa!» // continua...
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