ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
AS MARIAS DA FONTE DE CHAVIÃES
A introdução tem a ver com aquilo que eu vou escrever a seguir: Chaviães, junto ao rio Minho, é uma das freguesias mais antigas de Melgaço. Com uma população média de seiscentos a setecentos habitantes no século XIX, vivendo do seu trabalho agrícola e da pesca no rio Minho, além da pirotecnia, não dava azo a grandes notícias. No entanto, aquela lei da saúde não agradou àquela gente humilde. Comentavam: «Que raio, depois de mortos sermos enterrados fora da igreja, do local sagrado, é demais! Nós não somos cães, nem gatos, temos alma.» Os padres estavam receosos: por um lado queriam cumprir a lei, mas por outro lado bem gostariam de contrariar aquela “gentalha” do liberalismo que tanto mal lhes causara. E o povo era maleável, era preciso lançar a semente da revolta; eles sabiam que os cadáveres sepultados na igreja poderiam provocar graves doenças, mas não desejavam colaborar com os políticos saídos da revolução de 1820 – isso nunca! Os anos foram passando, o conflito entre o governo de Lisboa e o poder local, sobretudo com alguns concelhos conservadores do norte do país, estava latente, mas a distância e a dificuldade nos transportes e comunicações da altura iam adiando a execução das leis nacionais. O cura de Chaviães, Bernardo António Rodrigues Passos, irmão do médico Passos, ia gerindo as suas contradições conforme podia. No dia 31/1/1885 convenceu a família de Maria Caetana a enterrá-la no adro da igreja. A população não gostou, mas as coisas ficaram por ali. Em Março do mesmo ano Ludovina Rosa também foi sepultada no adro. O povo bufava! No dia 1/5/1885 também foi sepultado no adro Vitorino José Esteves. Foi a gota de água que fez transbordar o copo. No dia 16 desse mês e ano ia a enterrar António Jacinto Gonçalves; porém, as mulheres, munidas de enxadas, forquilhas, ferros, ancinhos, e outras alfaias agrícolas, invadiram o templo sagrado, abriram uma cova no chão da igreja e ali enterraram o cadáver. O padre Bernardo limitou-se a ser um mero espectador. No assento de óbito escreveu: «… dando eu disto parte à autoridade administrativa em meu ofício de 19 do mesmo mês de Maio.» A revolta das mulheres da freguesia de Chaviães surpreendeu algumas pessoas, mas não todas. Sabia-se que essa lei nunca fora bem aceite na província. Enterrar os mortos fora da igreja, em espaços livres, onde os cães e porcos, e galinhas, e outros animais, andavam à vontade, passeando-se por cima das campas, levantava sérios problemas de consciência. A religião era assunto sério. A autoridade administrativa, ciente do seu dever, interveio duramente: as revoltosas teriam de se resignar; a saúde das populações, em um tempo em que a higiene pessoal e coletiva deixavam muito a desejar, estava acima das crenças. Os próximos três enterramentos foram de facto feitos no adro da igreja – 14 de Junho, 23 de Agosto e 13 de Setembro de 1885; mas no dia 21 de Outubro faleceu Maria das Dores Simões, com apenas trinta e cinco (35) anos de idade, esposa de Luís António Alves e mãe de uma menina. As “amazonas” de Chaviães, e provavelmente de outras freguesias vizinhas, armadas com tudo aquilo que apanharam a jeito, acompanharam o funeral e obrigaram o pároco a enterrar o corpo na igreja! Escreveu ele: «e foi sepultada dentro da igreja de Chaviães por causa do mulherio revoltado que obstou ao enterramento fora dela.» Nos próximos enterramentos o vigário escreveria: «… e foi sepultada dentro da igreja desta freguesia por causa retro mencionada»; «e foi sepultada dentro da igreja (…) pelo motivo retro indicado»; «… e foi sepultada dentro da igreja por causa do obstáculo já indicado»; «… por força maior obstar a ser fora.» Cansado de repetir a mesma lengalenga o abade escreveu, depois de 25 de Outubro de 1886: «e foi sepultada na igreja na falta de cemitério público.» Era uma desculpa. Naquele tempo os cemitérios ficavam baratíssimos: a mão-de-obra era abundante e mal paga, os terrenos praticamente oferecidos, e as campas eram rasas; o coveiro exercia simultaneamente outra profissão. O problema residia na fé: os cristãos estavam convencidos de que a alma do defunto ficaria desprotegida, não iria para o purgatório ou para o céu caso o corpo não fosse sepultado na igreja! Com o tempo, e o avanço da ciência, as coisas alteraram-se, para melhor, os cemitérios foram murados, e no seu interior erigida uma capela, mas apesar de tudo o obscurantismo, a superstição, ainda anda por aí! // continua...
Artigo publicado no jornal “Fronteira Notícias”, n.º 10, de
8/4/2005.
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