terça-feira, 11 de abril de 2017

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
romance histórico
 
Por Joaquim A. Rocha




// continuação...

- Em breve soubemos a razão dessa ordem. Os canhões dos quartéis mais próximos começaram a canhonear sem descanso a mata ali a dois passos. Pareceu-me que estavam a destruir o mundo e que a abóbada celeste ruía e desabava sobre nós! O festival teve a duração aproximada de uma hora.

- Ficou tudo de rastos!... – assevera o jovem ouvinte.

- Muitas árvores caíram, como corpos sem vida, aumentando ainda mais o barulho ensurdecedor; as outras árvores choravam baixinho, como que pedindo à mãe natureza protecção. Os incêndios alastravam um pouco por toda a parte; o crepitar das chamas tornava tudo aquilo num espectáculo dantesco, e um certo silêncio, conivente, aterrorizava-nos.

- Que cenário fantástico!... Até parece irreal.

- Aquele aparente silêncio durou apenas minutos. Foi breve! O som de aviões a jacto fez-se ouvir quase de seguida. A aviação militar colaborava freneticamente numa das maiores operações, senão a maior, que até aí se levara a cabo na ex-província portuguesa.

     Os ágeis aviões (chamávamos-lhes “fiats”, porque possuíam motor dessa marca), apareciam e desapareciam a uma velocidade jamais vista. Os seus canhões e metralhadoras de bordo disparavam ainda mais rápido, se possível! Tudo com uma precisão milimétrica. Parecia incrível, mesmo inacreditável, como não nos atingiam! Bastaria um pequeno erro e alguns de nós seriam cortados como batatas para fritar!

     Ao romper do dia os pilotos retiraram-se. Recebemos então ordens para avançar. Andámos mais ou menos quinhentos metros e eis que o tiroteio começa.

- Como era possível, depois daquele massacre?!

- Também eu me interrogo: como se podia admitir, depois daquilo tudo, haver ainda turras vivos?!!! Eu a pensar que tinham sido completamente dizimados. Mas, não, estavam ali à nossa espera, como gatos que já viveram seis vidas e a última que lhes resta querem-na vender bem cara, ou mesmo preservá-la.

     De pé, de rastos, de qualquer maneira, fomos avançando, avançando… Gritávamos como possessos a fim de afugentar o temor e porventura o inimigo. Ouviam-se gritos lancinantes por todo o lado. Havia feridos, mortos, desesperados. Era o caos, a loucura. Lembro-me de ter rebolado pelo chão à procura de um abrigo: uma árvore amiga, uma trincheira, bagabaga, a fim de proteger o meu corpo; o espírito estava destroçado!

     Henrique estava comovido com o relato do seu amigo. «As guerras são terríveis», pensava ele. E tudo se podia resolver a bem, se houvesse diálogo. Mas não, é através da violência que o ser humano tenta resolver e concertar tudo! Para desanuviar, pergunta ao antigo combatente:

- Pronunciou uma palavra para mim totalmente desconhecida. O que são bagabagas?!

- São termiteiras em forma de pirâmide ou cogumelo, construídas pela térmita ou formiga branca, que chegam a atingir cerca de cinco metros de altura e cuja dureza faz lembrar o cimento.

- Daí vocês nelas se refugiarem… - conclui o jovem.

- Salvaram a vida a muitos soldados. As balas e as granadas de bazuca não penetravam a sua couraça. Somente as granadas de morteiro nos poderiam atingir, devido à sua trajectória. Mas continuando: levanto-me com mil cuidados e começo a disparar em direcção a vultos que se movimentavam ali perto. Tão desesperado estava, e desenquadrado, que já não sabia se eram meus companheiros ou meus adversários. Deixei de dar ao gatilho. Uma voz amiga chama-me: «vem para este lado, encontras-te entre fogo cruzado!»

- Que perigo! Teve imensa sorte. Podia ter sido o seu fim.

- É verdade. A rastejar (afinal aqueles ensaios no CICA-1 e Infantaria 6 tinham servido para alguma coisa) lá me encaminho para a sua beira. Segreda-me: «os gajos já fogem.»

     Nunca fui muito ousado, não tenho vergonha de o confessar. Porém, no meio da refrega, operava-se em mim uma verdadeira mudança, uma metamorfose completa: parecia, e era, outro! Agia segundo as ordens superiores recebidas e também de acordo com o meu instinto de sobrevivência. Não quero com isto dizer que aqueles que foram atingidos ou morreram fossem taradinhos, ineptos, que descurassem a sua auto defesa, que se deixassem atingir. Não! Quero dizer apenas que mesmo em guerra nunca se deve perder o sentido prático da vida. A cobardia, num momento de desespero, pode transformar-se num acto de coragem! Rastejar nas matas da Guiné-Bissau, esconder o nosso corpo das mortíferas balas, não pode ter o mesmo significado que ajoelhar ou ser subserviente a fim de conseguir benesses de um patrão ou de alguém influente na sociedade.

- Existe uma fronteira ténue entre o heroísmo e a cobardia... Quanto tempo permaneceram nesse local maldito?

- Não te querendo mentir, suponho que estivemos no Cantanhez dois dias e duas noites. A mim, como é óbvio, pareceu-me ter ali permanecido dois anos! Cheio de fome, de sede, de angústia, de cansaço, de tudo; a resistência, física e moral, estava a chegar quase ao fim, ao seu limite.

- E resultados? – quis saber Henrique.

- Segundo boatos que correram mais tarde, as coisas parece que não tinham resultado tão bem como os planos previamente elaborados o previam. Alguns mortos e muitos feridos do nosso lado, o mesmo acontecendo do lado oposto, eis o balanço final da peleja. Quanto aos custos financeiros da operação faço apenas uma leve ideia.        

- Então não houve vencedor?!

- Nunca soube, e decerto jamais o saberei, se fomos nós os vencedores ou os vencidos! Quanto a mim houve uma espécie de empate mas, ao invés do que se passa no desporto, onde por vezes esse resultado agrada às duas partes, na guerra real o empate não agrada a ninguém. Os generais contendores só aceitam bem a vitória.

     Penso que não valerá a pena estar a descrever-te em pormenor a batalha. Aliás, os filmes, sobretudo sobre a guerra no Vietname (respeitando as devidas proporções), com requintes tecnológicos, e efeitos especiais, dar-te-ão as imagens que eu não seria capaz de te dar. Nesta conversa informal não posso, nem terei capacidade e talento para te transmitir o ambiente psicológico, o drama de jovens a quem não deixaram gozar a vida a que tinham direito, a indignação versus resignação contida em nossos olhares. Ah!, meu amigo: estúpida guerra que tanta juventude ceifou ingloriamente, e tantos males, físicos e morais, causou!
  // continua...
 

Sem comentários:

Enviar um comentário