ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
romance histórico
Por Joaquim A. Rocha
// continuação...
- Em breve soubemos a razão dessa
ordem. Os canhões dos quartéis mais próximos começaram a canhonear sem descanso
a mata ali a dois passos. Pareceu-me que estavam a destruir o mundo e que a
abóbada celeste ruía e desabava sobre nós! O festival teve a duração aproximada
de uma hora.
- Ficou tudo de rastos!... – assevera o jovem ouvinte.
- Muitas árvores caíram, como corpos
sem vida, aumentando ainda mais o barulho ensurdecedor; as outras árvores
choravam baixinho, como que pedindo à mãe natureza protecção. Os incêndios
alastravam um pouco por toda a parte; o crepitar das chamas tornava tudo aquilo
num espectáculo dantesco, e um certo silêncio, conivente, aterrorizava-nos.
- Que cenário fantástico!... Até parece
irreal.
- Aquele aparente silêncio durou apenas
minutos. Foi breve! O som de aviões a jacto fez-se ouvir quase de seguida. A
aviação militar colaborava freneticamente numa das maiores operações, senão a
maior, que até aí se levara a cabo na ex-província portuguesa.
Os ágeis aviões (chamávamos-lhes
“fiats”, porque possuíam motor dessa marca), apareciam e desapareciam a uma
velocidade jamais vista. Os seus canhões e metralhadoras de bordo disparavam
ainda mais rápido, se possível! Tudo com uma precisão milimétrica. Parecia
incrível, mesmo inacreditável, como não nos atingiam! Bastaria um pequeno erro
e alguns de nós seriam cortados como batatas para fritar!
Ao romper do dia os pilotos retiraram-se. Recebemos então ordens para
avançar. Andámos mais ou menos quinhentos metros e eis que o tiroteio começa.
- Como era possível, depois daquele
massacre?!
- Também eu me interrogo: como se podia
admitir, depois daquilo tudo, haver ainda turras vivos?!!! Eu a pensar que
tinham sido completamente dizimados. Mas, não, estavam ali à nossa espera, como
gatos que já viveram seis vidas e a última que lhes resta querem-na vender bem
cara, ou mesmo preservá-la.
De pé, de rastos, de qualquer maneira, fomos avançando, avançando…
Gritávamos como possessos a fim de afugentar o temor e porventura o inimigo.
Ouviam-se gritos lancinantes por todo o lado. Havia feridos, mortos, desesperados.
Era o caos, a loucura. Lembro-me de ter rebolado pelo chão à procura de um
abrigo: uma árvore amiga, uma trincheira, bagabaga, a fim de proteger o meu
corpo; o espírito estava destroçado!
Henrique estava comovido com o
relato do seu amigo. «As guerras são terríveis», pensava ele. E tudo se podia
resolver a bem, se houvesse diálogo. Mas não, é através da violência que o ser
humano tenta resolver e concertar tudo! Para desanuviar, pergunta ao antigo
combatente:
- Pronunciou uma palavra para mim
totalmente desconhecida. O que são bagabagas?!
- São termiteiras em forma de pirâmide ou
cogumelo, construídas pela térmita ou formiga branca, que chegam a atingir
cerca de cinco metros de altura e cuja dureza faz lembrar o cimento.
- Daí vocês nelas se refugiarem… - conclui o jovem.
- Salvaram a vida a muitos soldados. As
balas e as granadas de bazuca não penetravam a sua couraça. Somente as granadas
de morteiro nos poderiam atingir, devido à sua trajectória. Mas continuando:
levanto-me com mil cuidados e começo a disparar em direcção a vultos que se
movimentavam ali perto. Tão desesperado estava, e desenquadrado, que já não
sabia se eram meus companheiros ou meus adversários. Deixei de dar ao gatilho.
Uma voz amiga chama-me: «vem para este lado, encontras-te entre fogo cruzado!»
- Que perigo! Teve imensa sorte. Podia
ter sido o seu fim.
- É verdade. A rastejar (afinal aqueles ensaios no CICA-1 e
Infantaria 6 tinham servido para alguma coisa) lá me encaminho para a sua
beira. Segreda-me: «os gajos já fogem.»
Nunca fui muito ousado, não tenho vergonha de o confessar. Porém, no
meio da refrega, operava-se em mim uma verdadeira mudança, uma metamorfose
completa: parecia, e era, outro! Agia segundo as ordens superiores recebidas e
também de acordo com o meu instinto de sobrevivência. Não quero com isto dizer
que aqueles que foram atingidos ou morreram fossem taradinhos, ineptos, que
descurassem a sua auto defesa, que se deixassem atingir. Não! Quero dizer
apenas que mesmo em guerra nunca se deve perder o sentido prático da vida. A
cobardia, num momento de desespero, pode transformar-se num acto de coragem!
Rastejar nas matas da Guiné-Bissau, esconder o nosso corpo das mortíferas balas,
não pode ter o mesmo significado que ajoelhar ou ser subserviente a fim de
conseguir benesses de um patrão ou de alguém influente na sociedade.
- Existe uma fronteira ténue entre o
heroísmo e a cobardia... Quanto tempo permaneceram nesse local maldito?
- Não te querendo mentir, suponho que
estivemos no Cantanhez dois dias e duas noites. A mim, como é óbvio, pareceu-me
ter ali permanecido dois anos! Cheio de fome, de sede, de angústia, de cansaço,
de tudo; a resistência, física e moral, estava a chegar quase ao fim, ao seu
limite.
- E resultados? – quis saber Henrique.
- Segundo boatos que correram mais
tarde, as coisas parece que não tinham resultado tão bem como os planos
previamente elaborados o previam. Alguns mortos e muitos feridos do nosso lado,
o mesmo acontecendo do lado oposto, eis o balanço final da peleja. Quanto aos
custos financeiros da operação faço apenas uma leve ideia.
- Então não houve vencedor?!
- Nunca soube, e decerto jamais o
saberei, se fomos nós os vencedores ou os vencidos! Quanto a mim houve uma
espécie de empate mas, ao invés do que se passa no desporto, onde por vezes
esse resultado agrada às duas partes, na guerra real o empate não agrada a
ninguém. Os generais contendores só aceitam bem a vitória.
Penso que não valerá a pena estar a descrever-te em pormenor a batalha.
Aliás, os filmes, sobretudo sobre a guerra no Vietname (respeitando as devidas proporções), com requintes tecnológicos, e
efeitos especiais, dar-te-ão as imagens que eu não seria capaz de te dar. Nesta
conversa informal não posso, nem terei capacidade e talento para te transmitir
o ambiente psicológico, o drama de jovens a quem não deixaram gozar a vida a
que tinham direito, a indignação versus resignação contida em nossos olhares.
Ah!, meu amigo: estúpida guerra que tanta juventude ceifou ingloriamente, e
tantos males, físicos e morais, causou!
// continua...
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