terça-feira, 15 de julho de 2025

QUADRAS AO DEUS-DARÁ

Por Joaquim A. Rocha







736

 

São Cristóvão, o gigante,

Era a bondade em pessoa;

Do bem-fazer era amante,

Da boa pinga e da broa.

 

737

 

São Cristóvão não é santo,

Queimaram seu pedestal;

Perdeu o direito ao manto,

Ao cajado e bornal.

 

738

 

São Cristóvão morreu virgem

Como a Santa Maria;

Nem em sonho, ou vertigem,

Soube o que era a folia!

 

739

 

Nunca alcancei alta fama,

Por causa da timidez;

Por ter nascido na lama,

Dum coito bruto, soez.

 

740

 

Fugi da fama um dia,

Vinha linda, sedutora;

Olhou para mim, sorria,

Eu, tolo, mandei-a embora!

 

741

 

Quem me dera viajar,

Percorrer o universo;

No lombo dum jaguar,

No coração de um verso.

 

742

 

Quem me dera viajar,

Percorrer o mundo inteiro;

Fazer versos, declamar,

No alto monte ou outeiro.

 

743

 

Conheci-te por engano,

Naquela noite de inverno;

Tomaste-me por garrano,

Um demónio do inferno!

 

744

 

Fugiste de mim, eu sei,

Por ser baixo e gordinho;

Ai se eu fora duque, rei,

Tratavas-me com carinho!

 

745

 

Já morei na Mouraria,

Em rua estreita e suja;

A noite parecia dia

Com os gritos da maruja.

 

746

 

Gramei três anos fardado,

E dois deles na Guiné;

Nunca passei de soldado,

Recebendo fraco pré.

 

747

 

Nunca ousei emigrar,

Não me sorriram os francos;

Nem palhotas habitar,

Calçar botas e tamancos.

 

748

 

Andei descalço em pequeno,

Calcei sapatos depois;

Comi cardo, comi feno,

Pevides e caracóis.

 

749

 

Fala-se em resiliência,

Sejam fracos, sejam fortes;

O que falta é ciência

Para evitar tantas mortes.

 

750

 

Os milagres dos santinhos

São invisíveis, discretos;

Estão velhos, mui velhinhos,

Tal como alguns decretos.

 

751

 

Entre a espada e parede

Estamos nós nesta vida;

Somos artistas sem rede,

Na hora da despedida.

 

752

 

Quem dera voltar atrás

Aos tempos da juventude;

Correr a todo o gás,

Beber vinho no almude.

 

753

 

Naquela maldita guerra

Havia muito bisnau;

Cortavam como uma serra,

                 Quebravam seixo calhau.

 

754

 

A cidade de Bissau

Era pequena e feia;

Com forma de bacalhau,

No tamanho era aldeia.

 

755

 

Tinha poucos habitantes

A cidade de Bissau;

Os brancos eram pedantes,

Os negros eram cacau.

 

756

 

Eu não sou pobre nem rico,

Apenas remediado;

Na tropa fui maçarico,

Simulacro de soldado.

 

757

 

O que se perdeu, perdeu…

Já nada se recupera;

É como casa que ardeu,

O rolar de uma esfera.

 

758

 

Percorri caminhos ínvios,

Tortuosos, lamacentos;

Canejas de pobres índios,

Causando-me mil tormentos.

 

759

 

As putas ganham dinheiro

Nicando a toda a hora;

Tem sangue o mealheiro

E a vida muita borra.

 

760

 

Incendiários malditos,

Bestas reles, sanguinárias;

Seres “humanos” proscritos,

 Feras, monstros, alimárias.

 

761

 

Ouvem-se gritos ao longe,

Muitos lobos a uivar;

Morreu a freira e o monge,

Muitos santinhos d´ altar.

 

762

 

As chamas sobem ao céu,

Fica tudo avermelhado;

Linda floresta morreu,

Ao som de um triste fado!

 

763

 

Ai quem me dera chorar,

No teu colo amoroso;

Pedir amor, implorar,

Chamar a mim todo o gozo.

 

764

 

A toupeira tem maus olhos,

Mas vê mais do que a gente;

Evita males, abrolhos,

Anda no mundo contente.

 

765

 

A toupeira fecha os olhos

Pra não ver o mal do mundo:

Desastres, guerras, rastolhos,

O terror, medo profundo.

 

766

 

Dom Quixote, Sancho Pança,

Fizeram-me rir a valer;

Entre sonho, esperança,

Várias mortes sem morrer!

 

767

 

Combateu moinhos de vento,

Namorou moças a fingir,

Às injustiças estava atento,

Queria seu povo brunir.

 

768

 

Quando era jovenzito

Carregava uma taleiga;

Agora nem galo ou “pito”,

Cinco quilos de manteiga!

 

769

 

Dizem-me constantemente

Que não gosto de animais;

Quem diz isso muito mente;

Adoro melros, pardais...

 

770

 

Adoro a liberdade,

Espaço limpo, decente;

Ah! Como eu tenho saudade

Das serras de antigamente.


// continua...

  

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