terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

POEMAS DO VENTO

Por Joaquim A. Rocha


 


91

 

ODIVELAS

 

Odivelas, Odivelas,

vais subindo pelos montes,

como outrora as caravelas

em busca de horizontes.

Vais beber a outras fontes,

desfraldaste as tuas velas;

vais subindo pelos montes

na rota das caravelas!

Assemelhas-te a donzelas

em busca do seu amado:

como elas, hás sonhado;

hás partido, como elas!

 

3/11/1980

 

92

 

Criança feia…

 

o que te enfreia

o que te para?

Hás de ser homem,

não lobisomem,

não uma apara!

Sorri prà vida,

nunca esquecida

que és filho seu;

o mundo é duro,

é inseguro…

mas também teu!

Tens de lutar,

gemer, chorar,

perder às vezes;

hás de beber,

até às fezes,

mesmo sem querer,

o amargo fel;

e o doce mel

provarás;

amor terás,

e a tristeza.

A natureza

chorar-te-á

quando morreres.

Criança feia

esqueceste o velho

parte o espelho

e vem prà aldeia!

 

1980

 

93

 

CAMARADA MAO

 

Confia em nós ó grande camarada,

pois o povo grita já em uníssono;

desfila pelas ruas da alvorada,

valente, disciplinado, barítono.

 

Caminha seguro – não apressado,

em busca do pólen tão merecido;

bandeira rubra, braço arregaçado,

e nos seus lábios o hino querido.

 

Não busca o que lhe não é devido

(povo milenarmente humilhado

e agora de punho forte erguido).

 

Exige o pão – sempre recusado;

a paz, palavra que não tem sentido

para o explorador insaciado.

 

A habitação – promessa esquecida

pelos donos do poder inventado…

negando assim ao povo uma guarida!

 

A educação – eternamente adiada,

porque, na mão do povo, é soldado

que derruba a capitalista armada!

 

21/4/1979

 

94

 

CANSAÇO ESPIRITUAL

 

Tenho o espírito fragmentado,

tenho o meu eu fora de mim;

tenho o ânimo dispersado,

entre um princípio e um fim!

 

Deixo-me estar aonde estou,

sem um sopro de talento;

e se corro para o vento,

inda sou mais eu do que sou!

 

Julho de 1979

 

95

 

ELEIÇÕES

 

Por quê, povo português,

que de saber não rebentas,

negas a luz outra vez,

 é a noite que sustentas?

 

Eu não sei por que sebentas

estudas, aprendes, lês;

eu só sei que representas

este país ao invés!

 

De que te sonhos te alimentas?

Não de pão, que não o vês!

Que histórias doces inventas

se em histórias não crês!

 

Até a dor atormentas,

porque a dita não se fez

pra ser feliz nas tormentas,

pra ser lobo, se ela é rês!

 

Deixa de ser masoquista:

diz ao cérebro que veja

a legião parasita

que te suga, canga e peja!

 

9/10/1980

 

96

 

AQUELES OLHOS

 

Aqueles olhos que me olham

como nunca tivessem olhado:

grandes, estranhos, estranhados!

são olhos virgens de olhar;

são olhos esbugalhados

que olham pra não errar!

 

97

 

EUSÉBIO

 

Eusébio – grande jogador.

Foi enorme, mas já não é;

da Europa foi o maior.

Do mundo não: foi Pelé.

 

Era a negra pantera,

o terror do adversário;

era o vulcão, era a fera,

o pirata, o corsário!

 

A sua fama espalhou-se

pelos quatro cantos da Terra.

Morreu! O mito gerou-se:

eis o que a fama encerra!

 

1978

 

98

 

O PRINCÍPIO DA MUDANÇA

 

Tira o coco, milionário,

um enterro vai a passar;

é de um bravo operário,

filho da terra e do mar.

 

Morreu a noite passada,

cansado de trabalhar;

deixou a mulher sem nada,

filhos, de fome a chorar.

 

Foste tu quem o chupou,

quem o seu sangue bebeu;

foste tu quem o roubou,

quem no caixão o meteu.

 

Mas aguarda, milionário,

que teu fim está a chegar;

já se avista o proletário

de punho firme no ar!

  

10/10/1980

 

99

 

DÁ-ME, LARA

 

Dá-me Lara, os teus lábios,

para eu os poder beijar;

dá-me Lara, os teus peitos

para eu os poder trincar.

 

Dá-me Lara, o teu colo,

para nele eu repousar;

dá-me Lara, o teu leito,

para eu nele me deitar.

 

Dá-me Lara, o teu corpo,

para eu o saborear;

dá-me Lara, o teu fogo,

pra com fogo o apagar.

 

Dá-me Lara, a esperança

de tudo em ti disfrutar;

 amar-te, na madrugada,

ter-te em noites de luar!

 

16/4/1979

 

100

 

A DIALÉTICA DA VIDA

 

As águas saíram do seu leito!

O rio tornou-se mar!

Cobriu vales, planícies…

e galgou montanhas!

Lentamente, porém, regressou.

Hoje repousa, serenamente,

no seu antigo leito.

As terras podem, doravante,

ser semeadas.

Os frutos serão abundantes.

A dialética tornou-se ilógica!

 

19/12/1978

 

101

 

A DIOGO BERNARDES

(Horas breves de meu contentamento)

 

Diogo, Diogo,

teu ardor é fogo;

Bernardes, Bernardes,

no fogo que ardes,

também eu nele ardo!

E vê que não tardo,

porque ansioso,

não sou receoso;

nele me extingo,

e o sonho distingo

da realidade…

Há nisto verdade

ou impera a fantasia?

Mas o que é a agonia

que ambos sentimos?

Porque não fugimos

desta tal desgraça?

O tempo já passa

e nós permanecemos!

Será que morremos

neste fogo eterno?

Isto é o inferno

de todos nós!!!

Mas não estamos sós,

connosco há cem mil,

basta só o perfil

para os distinguir;

não adianta fugir

desse amor cruel,

porque ele é mel,

e por isso doce;

e se mais não fosse

só isso bastava,

e justificava

a nossa paixão;

feita de ilusão,

 tornada tormento,

e a cada momento

matando em nós

o orgulho e a voz;

submetendo-nos,

sem qualquer pudor.

É ela o amor,

é ela o tormento,

que em cada momento,

com asas de vento,

vai fugindo de nós.

 

22/3/1980


 

102

 

QUERO SOMENTE O SILÊNCIO

 

Por quê aguardar aqui – sozinho –

e não busco, incansável, o teu corpo?

Por quê, inacessível, me escondo?

Cobardia, insensibilidade, resignação?

O mundo espera algo de mim: eu sei!

E fico. Como um porco no seu leito de mato!

Como um rato nos esgotos da cidade!

Tenho a pele dura e a cabeça.

Por quê incomodar-me? Os outros…

Os outros são sempre os outros!

Só nós contamos! Egoísmo?

Egocentrismo?

Eu já não caminho para a morte!

O Tempo não tem mais significado!

Mesmo que fique, nada aguardo.

Apenas permaneço. Incomodo?

É o meu espaço. O ar que respiro

volto a devolvê-lo ao ar;

os alimentos restituo-os à terra…

Até as palavras ingeridas eu vomito!

Nada me resta…

De vós, quero somente o silêncio!

 

Julho de 1979

 

103

 

Quero fazer-te um poema…

 

o mais lindo, o melhor;

não importa qual o tema,

não interessa seu rigor.

Mas não sei se saberei!

Humildemente o confesso.

Mil folhas já rascunhei,

um milhão já eu rasguei,

e até dinheiro já peço!

Tentativas, faço mil…

Outras tantas são fracasso;

como o talento é vil…

foi todo para Picasso!

O que eu vou fazer?

Desistir de tal ideia?

Antes prefiro morrer,

ou ir parar à cadeia!

Nem que esteja um ano a fio

a tentar tal proeza,

hei de acender o pavio,

 manter sempre a vela acesa.

E mesmo que os outros digam

que não o conseguirei…

Digam o que quer que digam

jamais eu desistirei!

Hei de fazer-te um poema

onde as rosas apareçam,

e os cravos floresçam,

para que algo valha a pena.

Hei de falar-te de amor,

entre os homens, entre as aves;

não vou falar-te de dor,

dessas coisas já tu sabes!

Quero fazer-te um poema

onde os espinhos se omitam;

e no qual surja este lema:

«a vida é bela – persistam

Vou falar-te de canções,

daquelas de antigamente;

que derretem corações,

fazem dormir toda a gente.

Vou falar-te de avezinhas

construindo os seus ninhos;

vou falar-te de avozinhas

embalando os netinhos.

Vou falar-te das estrelas,

espalhadas pelos céus;

tão fulgurantes, tão belas,

parecendo os olhos teus!

Vou falar-te de tudo isso

e falar-te de muito mais;

e se algo quedar omisso,

serão por certo meus ais!

 

 6/8/1979 

 

104

 

OS MUNDOS

 

O mundo, o universo,

está dentro de nós;

nós o concebemos,

nós o concretizamos,

nós o gozamos,

nós o odiamos,

nós o destruímos

e reconstruímos!

 

Há outros mundos:

os imaginários,

os impingidos,

os procurados,

os necessários,

os desnecessários,

os desmedidos,

os insuficientes,

os ausentes,

os superiores,

os inferiores,

os ordinários,

os extraordinários,

os ideais,

os irreais,

os reencontrados,

o mundo dos outros!

 

// continua...

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