terça-feira, 11 de junho de 2024

QUADRAS AO DEUS DARÁ

Por Joaquim A. Rocha 



436

 

A mentira e a verdade

Confundem-se normalmente.

Mentem por necessidade,

O ignorante e o crente.

 

437

 

A mentira piedosa

Nunca fez mal a ninguém;

Não me mintas, Generosa,

Quem te roubou o vintém?

 

438

 

Cuidado com a má-língua,

Sempre pronta a fazer mal;

Do seu dizer nasce a íngua,

E mil pragas em caudal.

 

439

 

Namorei com a tristeza,

Numa noite sem luar;

Não sei se tinha beleza,

Se estava por pentear.

 

440

 

A tristeza é muito bela,

Bonita como a baleia;

Nesta vida é caravela,

Fugindo da vil sereia.

 

441

 

Eu só gosto da tristeza

Por ela gostar de mim;

É um amor sem certeza,

Sem princípio e sem fim.

 

442

 

O Jesus veio à Terra

Ensinar-nos a amar;

Em Madalena aterra

Com promessas de casar.

 

443

 

O Jesus veio à Terra

Ensinar-nos a sofrer;

Em Madalena aterra,

Com vontade de a ter.

 

444

 

Nascem filhos, nascem netos,

Uns são congos, outros bantos;

E um dos seus tetranetos

Ama belzebus e santos.

 

445

 

Não há alegria em casa,

Foi morar pra outro lado;

Vive no inferno em brasa,

Chorando meu triste fado.

 

446

 

Escrito pelo destino,

Foi a minha vida inteira;

Ainda eu era menino,

Chupava na chuchadeira.

 

447

 

Entre a sorte e o azar,

Foi correndo minha vida;

Sofri na mata, no mar,

Nos olhos duma atrevida.

 

448

 

Tive madrinhas de guerra,

Umas feias, outras não;

Umas moravam na serra,

Outras, no meu coração.

 

449

 

Hoje é dia de São João,

Toda a gente canta, dança;

Somente o meu coração

A tanto não se abalança.

 

450

 

A Rusga de São Vicente

Traz alegria a este povo.

É orgulho desta gente:

Do velho e do mais novo.

 

451

 

A sua roupa colorida

Lembra avezinhas do céu;

Tem as mil cores da vida:

Exceto no seu chapéu.

 

452

 

A Rusga de São Vicente

Nasceu pra alegrar o povo;

Canta e dança, mui contente,

É energia, sangue novo.

 

453

 

Ó Redondo, redondinho,

Há muito que não te vejo;

Quero beber do teu vinho

E dar às moças o pejo.

 

454

 

Já tive cem namoradas,

E nenhuma me agradou;

São agora «águas passadas»

Um filme que terminou.

 

455

 

Ai que vontade eu tenho

De chorar sobre o teu colo;

Não sei porque me detenho,

Se é por medo ou por dolo.

 

456

 

Não sei contar anedotas,

Já não faço rir ninguém;

Às putas chamo-lhes potas,

Uísque de Sacavém.

 

457

 

Fui moço de sapateiro,

Mas sapatos, nunca fiz;

Ai se eu fora escudeiro

Na corte de Dom Diniz.

 

458

 

Na linda casa d’Orates

Toda a gente vive bem;

Bebem poemas de vates,

E discursos de Belém. 

 

459

 

Na linda casa d’Orates

Nem todos se tratam bem;

“Gil, por favor, não me mates,

Não sou carne do acém”!

 

460

 

Na linda casa d’Orates

Vive uma má feiticeira;

Assusta a gente de Rates,

E até a Terra inteira!

 

461

 

Na estranha casa d’Orates

Mora um rato e companheira,

Adoram Baco e Penates,

E uma vaca leiteira.

 

462

 

Na negra casa d’Orates

Vivi eu a vida inteira;

Tudo eram malas-artes,

Piolhice, bebedeira!

 

463

 

Na farta casa d’Orates

Come-se bem, à francesa:

Cebolas, couves, tomates,

Morangos e framboesa.

 

464

 

A velha casa d’Orates

É agora um pombal;

Lembra montanhas de Gates,

Enferrujado punhal.

 

465

 

Dai-me carinho e amor,

Um abracinho sem fim;

Dai-me um beijo, uma flor,

Uma rosa do jardim.

 

466

 

Nunca lhe chamei papá

Àquele que me gerou;

Sou filho da besta má,

E de mais ninguém eu sou!

 

467

 

Anda aí vírus à solta

Matando imensa gente;

É a raiva, a revolta,

Que ninguém quer nem consente.

 

468

 

Esses pequenos bichinhos

Transtornam a nossa vida;

São magros e pequeninhos,

Mas travam luta aguerrida.

 

469

 

Não há como combate-los,

Não temos armas para tal;

Não há torres, nem castelos,

Que nos livrem deste mal.

 

470

 

Não há rezas, padres-nossos,

Que evitem a infeção;

Chupam-nos até aos ossos,

Matam nosso coração.

 

471

 

Mas unidos nesta berra

Dar-lhe-emos luta sem fim;

Iremos para outra era

Nas asas dum serafim.

 

472

 

Treparemos alta serra,

Para o cimo da montanha;

Soldados todos da Terra,

Munidos de fera sanha.

 

473

 

O ser humano é forte,

Filho de Hércules, Sansão;

Quando ele quer, vence a morte,

A pantera e o leão. 

 

474

 

Os deuses são nossos pais,

Não nos vão deixar morrer;

Somos filhos de imortais,

Somos a nata do ser.

 

475

 

Negros, brancos, amarelos,

Vermelhos e os mulatos,

Todos com os seus martelos

Matarão os vírus chatos.

 

476

 

Ai que coisa tão bizarra:

Por causa de um bichinho,

Já ninguém toca guitarra,

Só bebe malgas de vinho!

 

477

 

Fecharam casas de fado,

Lojas de roupa, cabarés;

Fecharam em todo o lado,

As tabernas, os Cafés.

 

478

 

As ruas estão desertas,

Tudo isto é um mistério;

Só há farmácias abertas,

E a porta do cemitério.

 

479

 

A malta fechou-se em casa,

Com medo do vírus mau;

O bicho, que não tem asa,

Tem a arte dum bisnau.

 

480

 

É esperto, inteligente,

Anda calado, não berra;

Tem um plano na vil mente,

Dominar toda esta Terra.

 

481

 

Bicharoco de outro mundo

Não nos faças muito mal;

Deixa em paz o Edmundo,

Os filhos de Portugal. 

 

482

 

Respeita a nossa grei,

Cultura e património;

Estuda bem nossa lei,

As facetas do demónio.

 

483

 

Tenho fígado de cão,

E dentes de crocodilo;

A cabeça é de leão,

As asas são de um grilo.

 

484

 

Sou uma espécie de gente,

Semelhante ao chacal;

Não sou deus nem sou semente,

Como eu não há igual.

 

485

 

Todos os anos eu cresço

Um centímetro, ou dois;

Como deus, não envelheço,

Sou jovem como vós sois.

 

486

 

Eu já fui a Trás-os-Montes,

Dia treze, sexta-feira;

Visitei o padre Fontes,

E uma velha gaiteira.

 

487

 

Eu já fui a Trás-os-Montes,

Numa noite sem luar;

Encontrei o padre Fontes,

De joelhos a rezar.

 

488

 

Esconjurou minha alma,

Cheia de pecados mortais;

Disse-me com muita calma

Que eu matara mil pardais.

 

489

 

Atirei pedras a cães,

Dei pontapés a mil gatos;

Dei paus a filhos das mães,

Limpei sangue dos sapatos.

 

490

 

«Se quiseres ir prò céu,

Terás de rezar com fé;

Deixares de ser incréu,

Ires a Lurdes a pé.»

 

491

 

«Dares esmolas aos pobres,

Amar igreja e padres;

Respeitar ricos e nobres,

Dormir com freiras e frades.»


// continua...

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