ENTRE MORTOS E FERIDOS
(Dois anos de Guerra na Guiné-Bissau)
Romance histórico
Por Joaquim A. Rocha
// continuação de 2/01/2024...
16.º
Capítulo
CACHEU
Mais uma semana passara.
Velozmente. Lisboa estava a transformar-se. Viam-se por todo o lado
estrangeiros – queriam conhecer a cidade da revolução, do 25 de Abril. Os
negros também eram cada vez em maior número. Vinham de África à procura de um
trabalho, de uma ocupação, fugindo à fome e à guerra civil. Até se dizia que
metade dos cabo-verdianos já estava em Portugal! Os dois amigos continuavam,
como sempre, a encontrar-se:
- Boa tarde, amigo Cândido. Então hoje
vai-me falar de Cacheu. Era uma vila ou cidade?
- Uma pequeníssima cidade; berço de
nascimento de Honório Barreto, nascido ali a 24/4/1813 e falecido em Bissau a
26/4/1859. Um homem negro que ascendeu a Governador da Província e que ofereceu
a Portugal algumas parcelas do território da Guiné, sua pertença, ou adquiridos
aos nativos. Foi também tenente-coronel do exército (2.ª linha). A sua estátua ainda lá permanecia, não imponente,
apenas uma simples estátua de granito, com dois metros e meio de altura.
- O mais certo é que ela tenha sido
destruída depois da independência?!
- Duvido. Trata-se de um conterrâneo, a
sua vida decorreu no transato século. Se fosse agora, o Partido de Nino Vieira jamais
perdoaria a sua fidelidade à pátria de Eça de Queirós e de Aquilino. Quereria
realçar a diferença, destacar-se, destronar os heróis alheios, destruir os
símbolos do colonialismo.
- Tudo bem, mas ponhamos essas
especulações de lado – interrompe
Henrique, com receio de voltar à conversa fiada.
Cândido quase não o ouviu. Quando
estava inspirado, nada, nem ninguém, o parava. Era um conversador nato. Continua
ele:
- Cacheu, no ano de 1966, não era uma
cidade feia nem bonita. Aliás, chamar àquele conjunto de casebres escuros,
embora banhados por um sol resplandecente e pródigo, algumas ruas de terra
batida, uma miniatura de loja – taberna e mercearia – poucas centenas de
habitantes, cidade, mesmo no atrasado continente africano, tornava-se abusivo.
Na maior habitação abrigava-se a tropa. Ali perto existia um humilde mercado,
onde se vendia peixe e carne, e demais produtos da região. Havia também a antiga
fortaleza, com os seus canhões apontados para o mar. Junto à “cidade” viam-se
palhoças que albergavam numerosas famílias de autóctones: manjacos, brames e mancanhas.
- Tantas etnias! – exclama Henrique, estupefacto.
- E sabes que se distinguiam pelo
físico e pela cor?!
- Não, não sabia – confessa o jovem lisboeta.
- Contudo é verdade. Mas do que mais gostei
em Cacheu foi do rio que lhe deu o nome: largo e majestoso. Nele pescava-se
peixe e marisco com abundância. De vez, em quando, chegavam os barcos da
marinha, trazendo cerveja e víveres para os militares ali colocados. Uma festa,
quando aportavam! Bem-dispostos, folgazões, os marinheiros transportavam com
eles a alegria de viver – até parecia que não estávamos em guerra!
Em Cacheu arranjei logo um fio de pesca e anzóis. O isco ia comprá-lo ao
mercado: peixes, que cortava em pequenos bocados. Sentava-me na frágil
estrutura de madeira – pomposamente designada por cais – onde atracavam os
navios, e aí lançava a linha e ficava à espera que algum peixe esfomeado caísse
na ratoeira que eu lhe armara. Em todas as espécies animais existem criaturas
imprudentes e ingénuas – são essas as vítimas dos predadores. A natureza assim
nos moldou e nós não podemos alterar seja o que for, sob pena de provocarmos a nossa
autodestruição. Tudo obedece a uma lógica e a um ritmo constante; tudo caminha
para um equilíbrio, que pode ser instável se o ser humano adquirir mais poder e
contrariar as forças do universo. Mas que sei eu? Onde estão as certezas?
- Julgo que se o Homem não interviesse,
destruindo, algumas espécies tornar-se-iam autênticas pragas – diz Henrique,
exibindo os seus conhecimentos.
- És capaz de ter razão, mas o que é de
mais é moléstia. O ser humano tem de conter os seus ímpetos, não eliminando à
toa, senão a natureza vingar-se-á, e até – não tenhas disso quaisquer dúvidas –
os inocentes pagarão por um mal que não fizeram.
- E chegou a pescar alguma coisa de
jeito?! – pergunta Henrique, a rir,
ignorando os arrazoados do amigo.
- Pesquei alguns exemplares enormes! Um
deles, furioso por ter sido apanhado, furou-me o dedo mindinho da mão direita
quando o estava a tirar do anzol. Chamei-lhe todos os nomes feios que no
momento me vieram à ideia! Fui à enfermaria a correr e tive de apanhar uma
“pica” contra uma mais que provável infeção. Não havia muito tempo que levara
outra: uma carraça tinha-se-me pegado à pele, camuflada com os pelos da púbis,
a sugar-me o sangue, como se eu fosse um boi pastando tranquilamente na savana.
O paciente enfermeiro, de seu nome Ferreira, com uma pinça, meticulosamente,
arrancou-a do meu corpo. Disse-me: «Safaste-te
de boa; a cabrona não queria sair!»
- Os perigos que encerra África! E que
fazia ao peixe que pescava?!
- O que conseguia pescar, levava-o à
cozinha, grelhava-se e bem regado com umas cervejas transformava-se num verdadeiro
petisco.
- Até parecia que estavam no paraíso!
- Não obstante toda esta aparente
calma, continuávamos em acérrima zaragata com os “turras”. Daí partíamos para as matas de São Domingos, Susana,
Varela… que só falar delas os nossos cabelos ficavam em pé!
- Eram mais perigosas do que as
anteriores?!
- Todas elas eram problemáticas, mas
estas tinham a agravante de se situarem na fronteira com o Senegal, país que – tal como a República da Guiné – apoiava
aberta e decididamente o nosso adversário.
Numa das operações deparámos com os Felupes. Eu tremia como varas
verdes, sacudidas pelo vento, porque tinha ouvido dizer que os membros dessa
tribo usavam setas envenenadas e que não havia cura para esse veneno. Porém, nada
havia a temer. Eles, pelos vistos, eram neutrais, não tomavam partido. Só não
queriam que os brancos os prejudicassem, que os obrigassem a alterar a sua
maneira de viver. Se o tentassem, aí sim, teriam de enfrentar um inimigo poderoso.
- É um povo especial!
- Sem dúvida. Roupa, não usavam: apenas
uma simples tanga – feita de fibra natural, salvo erro – lhes cobria o pirilau
e o rabo.
Apesar de essa zona ser perigosíssima, como já te disse algures, não
era, mesmo assim, considerada a pior das piores; contudo, tivemos alguns
recontros com o mafarrico; sofremos algumas emboscadas, perdemos dois
camaradas; imensos feridos; continuámos a queimar, a destruir sem piedade,
diversas aldeias conotadas com os guerrilheiros do PAIGC, e fizemos também
alguns prisioneiros – a rotina!
- Que faziam aos presos?
- Os detidos eram geralmente
interrogados por indivíduos civis, por um agente (suponho que pertencente aos quadros da polícia política), de cor
negra, verdadeiro gigante. Um dia assisti, por casualidade, a um desses
bárbaros interrogatórios e fiquei estupefacto, de boca aberta: o brutamontes ia
matando o homem – até para cima dele saltou!
- Incrível! Desumano!
- Outros prisioneiros eram levados
connosco às operações, com o fim de nos indicarem (prometia-se-lhes a liberdade e proteção da tropa se aceitassem) os
locais onde se encontravam os postos avançados dos seus correligionários.
- E colaboraram convosco?!
- Nunca cederam. Pagaram, contudo, com
a vida tal recusa. A coerência exige muitos sacrifícios.
Numa dessas batidas pelo mato (há
tanto tempo e parece que foi ontem) levámos três suspeitos. Os nossos
guias, servindo-se da língua deles, pediram-lhes que denunciassem os seus
irmãos de Partido e nos conduzissem às suas posições. Responderam à solicitação
de forma ambígua. No entanto, lá os seguimos e às tantas os guias informam o
capitão: «Nosso capitão, os prisioneiros
estão a fazer-nos andar às voltas; nós já passámos por aqui há pouco!»
O caudilho, arrebatado, ferido no seu orgulho de oficial de carreira,
ordena: «Matem esses filhos da mãe.
Pensam que brincam connosco?!» Logo se ofereceram uns quantos voluntários.
Pasme-se: quase todos eles de cor negra! Usou-se um estratagema indigno para os
abater. De acordo com instruções do graduado, os guias informaram os cativos de
que «podiam ir embora em liberdade, já
não eram necessários, tinham cumprido com eficiência a sua tarefa.» Duvido
que eles tivessem acreditado. Não pareciam parvos e sabiam que em tempo de
guerra mercês, dádivas, não existem. Não tinham, todavia, alternativa. O destino
deles estava de antemão traçado. Olharam uns para os outros e iniciaram a
caminhada lentamente. Os guias, com um vozeirão de assustar o mais destemido,
berram: «Corram; o nosso capitão pode arrepender-se!»
Os homens começaram a correr como lebres, como danados, em ziguezague, na esperança
vã de salvarem a pele, mas as balas são mais rápidas. Uma verdadeira chuva
delas cai sobre as costas dos desgraçados. Nem sequer tempo os desgraçados tiveram
para dizer ai ou ui!
- Um verdadeiro assassínio – comenta Henrique.
- É também a minha opinião, mas de que
vale?! Esses crimes ficarão impunes para sempre. Mais: daqui a uns anos os oficiais
de um e de outro exército abraçar-se-ão como amigos! Tudo esquece.
*
O relógio continuou a dar as horas ininterruptamente, os dias
sucediam-se, embora parecessem longos, intermináveis, e nós começámos a ficar “velhos”, isto é, veteranos de guerra.
Para terminar este capítulo da minha passagem por Cacheu vou contar-te o
episódio do sargento Gordo: num desses patrulhamentos pela selva africana
deparámos com danoso pantanal – quase nos cobria! Pusemos a arma e a sacola dos
carregadores à cabeça e toca a atravessá-lo. Levantávamos com mil dificuldades
um pé para assim podermos colocá-lo mais à frente. Os militares mais altos
tinham, obviamente, menos problemas do que os baixos. Em fila indiana lá fomos
vencendo esse tétrico espaço que parecia nunca acabar. Se os “turras” aparecessem estaríamos tramados!
Eu, apesar de média estatura, tinha a vantagem de ser leve. O sargento
Gordo, pescoço de hipopótamo, o suor a escorrer-lhe pela careca abaixo, esse,
coitado, via-se aflito para conseguir mexer-se. Um a um, os homens iam
avançando, à exceção dele.
Como não suscitava nenhuma simpatia aos soldados (e quiçá aos outros sargentos e até aos oficiais), estes, quando
passavam por ele, sorriam disfarçadamente. Talvez pensassem: «Eis a nossa vingança; vai ter de se
humilhar, pedindo-nos auxílio.» De facto, e já convencido de que por si só
nada conseguiria, usando uma hipócrita máscara de menino bem comportado, pede
amavelmente: «Ajudem-me aqui, por favor;
não sou capaz de me ver livre desta lama pegajosa e repugnante.» Prestámos-lhe
socorro de seguida, porém, aquele sorriso zombeteiro, não abandonou os lábios
dos magalas.
- Ótima lição – exagera Henrique. – Espero bem que a tenha aprendido.
- O seu intelecto já estava demasiado
enferrujado para aprender fosse o que fosse. Mas, como as palavras são como as
cerejas, tenho mais um triste episódio para te narrar. Queres ouvir, ou já
estás cansado?
- Cansado, sim; mas ansioso por tudo
saber. Conte, conte; pode crer que fazia uma ideia errada do que lá tinha ocorrido.
- Até 25 de Abril de 1974 estes eventos
não podiam ser descritos, não podiam circular livremente; depois o tempo
passou, cada qual foi para seu lado, a construir o futuro, a criar a família,
enfim!... Mas ouve:
Uma das operações mais traiçoeiras foi aquela em que se desencadeou uma
terrível tempestade: chuva, vento, trovoada – o inferno! O nosso objetivo seria
desalojar o inimigo de uma zona determinada, considerada estratégica pelos
peritos. Sabia-se que ele aí era forte e nós teríamos de lhe reduzir as forças
ou até torná-las nulas. Avançámos a pé, por entre caminhos estreitos, autênticas
veredas, e capim avantajado. De vez, em quando, ouvia-se o ruído da avioneta,
dentro da qual se encontrava, além do piloto, o segundo comandante do batalhão,
um major de estatura elevada e cheio de peneiras. Achava-se o máximo! Nem
Narciso, o da mitologia, filho de um rio e de uma ninfa, se adorava tanto! Esse
dito major, em aziago dia, na Vila de Teixeira Pinto, com toda a sua déspota
autoridade, chama-me e sarcasticamente pergunta: «Por que é que o soldado não traz o bivaque na cabeça?!» «Meu major – respondi eu, tremendo como
folhas de uma árvore em dia de vento – esqueci-me
dele, mas também não saio do quartel, só vou ali ao bar.» «Não quero saber aonde o soldado vai; volte
para trás e ponha-o na cabeça.» Não me deixava qualquer alternativa: «Sim, meu major.»
- Era severo – diz Henrique, agastado.
- Estes indivíduos, com o seu feitio
autoritário, têm a carreira garantida. Hoje é general e tem um cargo importante!
*
Lá do alto, do céu, falava com o nosso capitão, dando-lhe instruções
acerca da missão: «Vão muito bem, avancem»
- dizia num vozeirão que não deixava margem para dúvidas: era o líder! O
capitão, com uma voz vacilante, mas simultaneamente firme, respondia: «Meu major, com esta tempestade, julgo prudente
não continuar!» «Capitão: avance com
os seus homens; não será uma simples tempestade que nos impedirá de cumprir com
êxito os objetivos previamente delineados. Não admito hesitações: avancem!»
O oficial olhava para nós com uma certa insistência, notando-se-lhe nos
olhos a chama da revolta. Estava entre a espada e a parede: não podia
desobedecer ao seu superior hierárquico, mas custava-lhe mandar avançar, talvez
para o sepulcro, aqueles homens encharcados até à raiz dos cabelos e enervados
com a trovoada, cada vez mais ameaçadora, ventos ciclónicos, e chuvas como só
caem nessa parte do mundo. «Capitão!»
– novamente a voz do major – «o piloto
diz que tem de se retirar sob pena da avioneta cair; continue a cumprir as
minhas instruções e anule o poder inimigo; não aceito, nem admito, quaisquer
desculpas, nem fracassos, nem acanhamentos; amanhã conversamos.»
O aparelho voador retirou-se apressadamente. O meu comandante, colérico,
enraivecido, descarregou toda a sua fúria: «Seu
prepotente; pensas que estás a lidar com animálias?!» Virando-se para os
alferes e sargentos, diz-lhes: «Vamos
prosseguir, mas lentamente; pode ser que a tempestade amaine.» Felizmente,
ou talvez não, a chuva resolveu deixar de cair, e o céu, até então cinzento e
zangado, olhou para nós com outra cara. Lá fomos indo, e às tantas começámos a
notar que o carreiro se alargava, bifurcando-se em seguida, sinal de que estava
próxima uma tabanca. Não demorou muito a ouvir-se alguns tiros dispersos – os
vigias da aldeia (quase sempre
empoleirados em cima de altas árvores) comunicavam com os seus camaradas. Habituados
como estávamos a este tipo de receção, continuámos a marcha, não já como
homens, mas como verdadeiros predadores: a presa não estava longe! Mais cem
metros e deparámos com umas quantas habitações: dentro apenas existiam objetos
sem qualquer valor. O capitão recomenda: «Antes
de pegarmos fogo a esta bugiganga toda vamos primeiro verificar se há mais
palhoças; não quero que fique de pé uma que seja.» Ainda não acabara de
falar e eis que se faz ouvir, ali bem perto, o rebentamento de uma granada de
morteiro. «Abriguem-se!» - grita o
capitão a plenos pulmões.
Os rebentamentos não tinham fim. A bronca começara. Os “turras” conheciam a nossa posição no
terreno e massacravam-nos sem dó nem piedade. Das árvores tombavam estilhaços,
como de fruta madura se tratasse! Mais de meia hora depois o silêncio cúmplice
visitou-nos. Silêncio perverso. Mais morteiradas. «Pulhas!» Estavam mesmo dispostos a cavar ali a nossa sepultura,
cobrir-nos com a mortalha derradeira. E nem bazuca, nem os nossos terríveis
morteiros, muito menos as metralhadoras, serviriam em uma situação destas!
Estávamos na designada «zona de morte!»
Caímos nela que nem patinhos!
- Afinal o tal major não era tão bom
estratega como dera a entender!
- Pelos vistos não, amigo Henrique.
Bazófia tinha muita, mas saber… Continuando: julgo que esgotaram as munições,
ou então pensaram que para lição bastava! Fez-se o balanço da tragédia: seis
feridos, nenhum morto. E agora? Os helicópteros não levantavam voo devido às
rajadas de vento, e nós no coração, no âmago da floresta! Os enfermeiros fizeram
o que tinham a fazer; nós improvisamos macas e toca a transportar os colegas
atingidos – naquele local não podíamos permanecer mais tempo. O lugarejo ficou
para trás. Intacto! A nossa missão terminou em um fiasco, em uma derrota humilhante!
*
Quando chegámos ao quartel tínhamos à nossa espera o correio da
metrópole: da família, dos amigos, das madrinhas de guerra.
- E aquela moça, nunca mais recebeu
carta dela? – pergunta Henrique, com
subtil curiosidade.
- Sim, recebi. Estás a pensar em quê?!
Em namoro?! Nada disso, meu amigo. Eu ia alimentando um certo mistério, mas não
passava disso. Não pretendia prender-me tão cedo.
- Leia, leia, uma cartinha da Fernanda.
- Ainda te lembras do nome dela! Vou
fazer-te a vontade, mas não estejas já a ver vestidos brancos, flores de laranjeira!
Fica, atento:
Querido afilhado
A continuação de boa saúde é esse o meu
desejo. Fiquei muito triste por ver que realmente demorei a escrever, mas isso
deve-se ao facto de ter andado adoentada, com gripe, sem vontade de coisa
alguma. Sabe que se tem apossado de mim uma certa nostalgia, uma tristeza
profunda que não sei explicar?! Mas não se aflija, são coisas passageiras, sem
importância, próprias das raparigas da minha idade. Mando-lhe um postal da
minha Vila, para a ficar a conhecer. É uma das mais lindas do nosso país. O
castelo é monumento nacional, a sua construção remonta ao século XII, segundo
dizem. À torre de menagem nunca subi, não que tenha medo, mas aquilo é muito
escuro, por isso não passei da porta por onde se entra; ora às muralhas já
tenho ido dezenas de vezes; e para mais, eu, que a minha casa não fica longe.
Daí avistam-se paisagens de sonho. Se algum dia cá vier vai ver que não minto,
nem exagero. Então a sua labuta tem sido muita? Deus queira que não, mas também
nós não podemos viver sem fazer nada, pois até distrai bastante e faz-nos
sentir responsável por aquilo que fazemos; eu, por exemplo, ando a praticar, devido
a não ter experiência, mas logo que me seja possível lutarei por um lugar de
categoria, bem pago. Quero ter uma boa posição, sou ambiciosa, sabe? Por hoje é
tudo, só lhe peço que tenha confiança em Deus, pois qualquer dia há de
regressar à sua terra, muito feliz e honrado por ter cumprido o dever para com
a nossa pátria. Receba muitos abraços da madrinha muito amiga.
Fernanda
Henrique ficou boquiaberto com o
conteúdo da missiva. Não esperava, de uma provinciana, uma prosa tão
escorreita. Comenta:
- A sua madrinha de guerra estava
politizada. Não obstante ser uma jovem, considerava o serviço militar uma honra,
até parece que sentia orgulho em si só pelo facto de se encontrar em África!
Não acha?
- Concordo plenamente contigo. Até te
digo mais: ela estava muito mais esclarecida politicamente do que eu. Quando deixei
a minha terra tinha os olhos completamente vedados à política. Queria lá saber
quem governava o país, se o fazia corretamente… - além de Salazar e do Carmona,
que só vira nos retratos, não conhecia mais nenhum governante! Ela sim, usava
uma linguagem cheia de subtileza, próxima da doutrina corporativista.
Provavelmente convivia, no trabalho e em casa, com pessoas afetas ao regime
então vigente.
- E as outras?!
- As outras madrinhas só pensavam no
namoro, no casamento. Esta era de facto especial, um mimo!
*
Ainda permanecemos mais algum tempo no burgo de Cacheu. Operações de
rotina, como lhe chamavam, havia-as de vez, em quando. Entrávamos nas tabancas
com a fúria do demo, e no regresso as labaredas avistavam-se a léguas de
distância. Alguns colegas traziam com eles catanas e outros objetos, sobretudo
figuras esculpidas em madeira, que por lá encontravam; eu nunca peguei em nada
– por escrúpulos, ou por superstição, não sei explicar. Continuei as minhas
pescarias no rio e a escrever cartas, muitas cartas: devia ser o soldado que
mais escrevia! Através dessa correspondência acompanhava o desenrolar do
conflito em Angola e Moçambique. Escreviam os meus conterrâneos:
«… Quanto
a isso, eu também não tive melhor sorte, pois encontro-me no norte, numa das
piores zonas, estou na região dos Dembos; no local onde estou só há dois civis
e uma sanzala de pretos, e o acampamento mais próximo do nosso fica a cinquenta
e sete quilómetros, de maneira que também tenho de alinhar para as operações,
já fui a algumas e temos tido bastantes problemas com os turras, mas o que é
preciso é chegarmos ao fim da comissão com o canastro direito e mais nada!»
«Por aqui continua tudo mais ou
menos na mesma, embora às vezes com bastante azar, pois em quase todas as
batidas tem havido porrada, e temos também a lamentar mais um morto…»
- Três frentes, três cemitérios!... – lamentava-se Henrique, bastante pungido.
- É verdade. As estatísticas oficiais
não divulgavam os números certos; temiam uma reação violenta do povo. Tomava
também conhecimento de tudo o que se passava na metrópole, sobretudo na minha
nunca esquecida terrinha. Sabes do que mais gostava? De ir fazer compras às
aldeias indígenas, àquelas, claro, onde se podia entrar sem correr grande
risco. Lá chegados, começava-se a discutir o preço: o porco, tanto; a galinha,
tanto; a vitela, tanto! Regateava-se como nas feiras portuguesas, por vezes não
se chegava a acordo. Contudo, regressava-se quase sempre com a camioneta a abarrotar
de géneros.
- Vocês não recebiam os víveres da
Manutenção Militar?
- Certamente, meu caro; tratava-se aqui
de adquirir produtos frescos e a baixo custo, quase ao preço da uva-mijona! Nem
sequer podes imaginar…
- Então os nativos não tinham noção do
valor das coisas?!
- Não te esqueças que essa gente nunca
fizera antes comércio; viviam no interior da mata africana, poucos eram aqueles
que nos entendiam. Por outro lado, julgo que tinham medo da tropa branca. Até
te digo mais: quando o nosso exército precisava de limpar as margens de uma
picada, de um caminho ou vereda, contratava vários homens de cor e sabes como
lhes pagavam? Com arroz! Um dia de trabalho, sol a sol, valia dois ou três quilos
de arroz! Consideravam-no a base da sua alimentação.
- Tão pouco? E eles não reclamavam?
- Penso que não; mas o que podiam eles
fazer? Queixar-se a quem? O exército português é que mandava, agia como bem lhe
apetecia e entendesse. E como era perigoso aquele trabalho! Os indígenas
andavam descalços, quase nus, a derrubar todo aquele imenso capim e arbustos à
catanada; por vezes eram mordidos pelas serpentes e desatavam aos gritos,
pensando que iam morrer – e decerto que alguns deles pereciam devido a essas causas.
Sabes que não podiam matar a pequena cobra verde?
- Porquê?! – interroga Henrique, com alguma curiosidade.
- Porque ela representava para a sua
crença um deus, ou o espírito de um seu antepassado. No princípio não compreendia
o seu pavor, só depois é que perguntei e me esclareceram.
- A mitologia africana, pelos vistos, é
mais rica do que os europeus pensavam.
- Podes crê-lo, meu amigo; podes
crê-lo. E ainda muita coisa está por descobrir e pesquisar. Os estudiosos desta
matéria têm em África um vastíssimo manancial de investigação. Tinha muita pena
desses desgraçados, mas o que podia fazer? Nós próprios, soldados, como te
disse, éramos no dia-a-dia maltratados, humilhados, pelos oficiais e por alguns
sargentos! As coisas agora são muito diferentes, dizem; há uma certa dignidade,
respeito pelo inferior hierárquico. A democracia pluralista assim o aconselha,
embora dentro dos quartéis a disciplina militar tenha de ser mantida de acordo
com os velhos parâmetros, sob pena de tudo desmoronar.
- Não se iluda, meu caro Cândido.
Melhorou, mas «tropa é tropa!» A
disciplina militar, como disse, e bem, terá sempre de existir, de outro modo
alguns subordinados perderiam o respeito pelos seus superiores, o exército
esfrangalhava-se. Quer que lhe conte o que se passou num conhecido quartel, já
depois do 25 de Abril? É óbvio que eu não assisti, mas contaram-me. Ouça então:
o comandante do aquartelamento achou por bem que todas as praças e sargentos,
bem como os oficiais, passassem a comer do mesmo rancho e nas mesmas mesas – a
democracia assim o impunha. Ora, o que aconteceu? Nos primeiros dias as coisas
correram bem; os soldados estavam um pouco inibidos, desconfiados, pensavam que
aquela decisão tinha provindo de um doido ou de alguém que temia represálias
políticas.
Passou-se uma semana; os soldados, à medida que os dias decorriam, iam
adquirindo uma postura diferente, um certo à-vontade. Ao cabo de duas semanas
começaram a abusar: primeiro com dichotes e gargalhadas; depois atirando
caroços de azeitonas uns aos outros; a partir daí deixaram de respeitar fosse
quem fosse. O comandante teve de suspender a ordem dada e fez voltar tudo ao
modelo anterior.
- Conclusão: os soldados (na sua maior
parte com ínfimas habilitações literárias), oriundos de famílias humildes, não
estão preparados para conviver com pessoas mais civilizadas, mais educadas. São
o espelho do povo português, etc.
- Conclui bem, amigo Cândido. Tiveram
uma oportunidade e não a souberam agarrar; dificilmente terão outra. A democracia
não é compatível com a vida militar.
- Por isso é que eu defendo com
convicção o fim dos exércitos. Quando estes se extinguirem (e segundo as minhas previsões isso levará
muito tempo), também terminarão as guerras. Mas agora, e para desanuviar um
pouco, vou ler-te mais uma carta da madrinha Fernanda. Lá vai:
Querido afilhado
Recebi a sua carta e fiquei muito contente por saber que estava de
perfeita saúde, pois é esse o meu maior desejo. Ficou muito triste por não lhe
ter mandado a minha foto, pois bem, vou satisfazer o seu desejo, mando-lhe uma
de meio corpo, só agora é que a consegui, sei que o vou desiludir, pois não sou
nenhuma cara bonita, bem pelo contrário, depois mando-lhe uma de corpo inteiro,
e não há de demorar muito tempo. Cá na minha terrinha não há muitas distrações
para a gente se divertir, principalmente no verão, vai todo o mundo para a
praia, só fica aqui a que não pode ir, ou não quer. De inverno, apesar de não
se poder andar sempre a passear, vai-se ao cinema. Não julgue que tenho
namorado, não, ainda sou muito nova e se tiver de me casar não há de ser antes
dos vinte e tal anos, mas não se pode afirmar isso, pois nós não sabemos o dia de amanhã; amigos e amigas tenho
muitos, mas para namorar nem pensar nisso, considero que não são o feitio de
homem que eu quero. Então não pôde continuar os seus estudos, quando sair da
tropa poderá continuá-los, só é preciso força de vontade. Eu estou a pensar
acabar o quinto ano, já o podia ter feito se deixasse as brincadeiras e
estudasse, mas quando se é novo não se pensa muito no futuro. Vou fazer-lhe uma
pergunta e quero que me responda na próxima carta: em que dia do mês o meu
afilhado faz anos? Penso que a pergunta não é indiscreta, seria se fosse
dirigida a uma senhora, mas como não é, mande-me dizer; a sua querida madrinha
comemora as suas dezanove risonhas primaveras a cinco de Abril e Deus queira
que isso aconteça por muitos e muitos anos. Não acha? Muitos abraços da sua madrinha,
muito amiga.
Fernanda
- Uma madrinha muito espevitada, não há
dúvidas! Mas o meu amigo Cândido também alimentava esse princípio de “flirt”. Estou certo?
- Se tivesses estado na guerra colonial
com certeza que não estarias agora com esse ar irónico. Nós precisávamos destas
coisas, alimentar ilusões, fazer nascer sonhos que só durariam o tempo da
comissão, ou o das rosas de Malherbe, poeta que viveu entre 1555 e 1628. Escreveu ele: «Mais
elle était du monde où les plus belles choses/Ont le pire destin/Et rose elle a
vécu ce que vivent les roses/L’espace d’un matin.» O espaço de uma
manhã! Quem se apaixona vendo uma fotografia, lendo meia dúzia de palavras mais
ou menos bem escritas? Ninguém!
- Não é bem assim; você próprio me
disse que alguns soldados acabaram por casar com as madrinhas de guerra.
- Disse, disse; mas não te esqueças que
eram todos da mesma terra ou da região das madrinhas. Eu não escrevi a
raparigas de Melgaço porque não sabia nessa ocasião se para lá voltava. Por
outro lado, conhecendo-as, não teria coragem de as iludir. Regressemos à guerra…
- Antes de prosseguir, e embora pareça
mesquinho o que lhe vou perguntar, uma das coisas que me têm dito é que vocês
em África entregavam a roupa para lavar e passar a ferro a lavadeiras
profissionais. Há quem diga também que essas mulheres se tornavam vossas
amantes. É verdade?!
- Não me quero furtar à tua questão,
mas essa resposta fica para depois, se não te importas. Agora vamos à vida que
se faz tarde.
*
17.º Capítulo
AS LAVADEIRAS
Após uns dias sem se verem, os
dois amigos retomam a conversa, como habitualmente à mesa de um Café na Baixa
Lisboeta. O verão já se fora, e agora tinham de ficar na parte de dentro,
respirando o ar impuro, poluído, motivado sobretudo pelo maldito fumo do tabaco.
Não sei que dera aos portugueses, cada vez fumavam mais, agora até as raparigas
e senhoras o faziam, mesmo na rua, numa exibição bacoca, parola, prejudicando a
sua saúde e a dos outros! O efeito já se começava a notar, sobretudo nos
dentes. O dinheiro para essa droga não sei aonde o iam buscar, pois cada maço
custava os olhos da cara e a malta nova não tinha quaisquer rendimentos. É
provável que fosse parte do dinheiro que os pais lhe davam para se alimentarem
na cantina da Escola, eu sei lá! Alguns médicos iam aconselhando os jovens a
deixarem de fumar, pois, o mais certo, era virem a sofrer do coração, cancro, e
até os dentes perdem o protetor esmalte e tornam-se amarelados! Depois de se
cumprimentarem, Cândido dirigiu-se ao amigo com estas palavras simpáticas:
- Louvo a tua insaciável curiosidade
relativamente à vida do soldado enquanto combatente nas matas africanas. Quanto
às lavadeiras vou contar-te aquilo que sei. No que me diz respeito, eu
entregava de facto a roupa a lavadeiras, mas jamais olhei para elas como potenciais
amantes. Digo-te mais: sempre manifestei algum receio em ter relações de tipo
íntimo com essas mulheres. Não por me achar superior, ou um anjo, mas sim por
causa das doenças venéreas. Preferia a abstinência. Nesse tempo não distribuíam
preservativos, mas sim umas bisnagas para se usarem após a cópula. A sua
eficácia era diminuta, não ofereciam grandes garantias.
- Os seus colegas da altura não seriam
assim tão castos… - tenta tirar nabos da
púcara o jovem interlocutor.
- É provável que um ou outro, os mais
aventureiros, quiçá os mais imprudentes, esquecessem os perigos que desse ato
adviriam; arriscavam a sua saúde pelo simples prazer carnal – era com eles! As
lavadeiras negras sempre me mereceram o máximo respeito e consideração.
Trabalhadoras conscientes, procuravam servir o melhor possível, nunca tive
queixa delas. Muitas dessas mulheres tinham uma caterva de filhos,
provavelmente mães solteiras, dava-lhes as minhas rações de combate (carne de porco e de vaca, atum, sardinhas,
chouriço, etc., tudo isso em latas de
conserva), além de lhes pagar o preço de tabela.
- Que era baixo, suponho – quis saber Henrique.
- Tudo é relativo; se levassem muito
caro também não lhe poderíamos entregar a roupa. Os nossos ordenados eram curtos,
como sabes. Moravam quase sempre perto dos tropas e os seus rendimentos
provinham exclusivamente desse trabalho. As inúmeras crianças aguardavam
pacientemente que acabássemos de comer para depois requisitarem os restos, não
os das marmitas, mas sim aquela comida que sobrava nas terrinas e caldeirões.
- Depois da independência, essas
crianças ficaram sem essa fonte de alimentos…
- É verdade; mas isso já não é problema
nosso. Por outro lado, aquilo não se podia prolongar eternamente. Que estudem,
que trabalhem, que se tornem independentes economicamente. Ninguém pode, nem
deve, viver uma vida inteira à sombra do rancho dos militares: é aviltante,
indigno de um ser humano. A igualdade entre as raças passa sem dúvida pela
negação da subserviência. A mendicidade submerge a dignidade; o homem negro tem
de compreender isso.
- Você exalta-se com facilidade!... – observa Henrique.
- Empolgo-me um bocado, é certo; mas a
minha indignação é motivada pelo servilismo de alguns: sejam amarelos, brancos,
negros, vermelhos, ou de outra qualquer cor ou raça. O ser humano deve
emancipar-se; somos todos donos do planeta e, por isso, sem exceção, temos
direito a nele residir com dignidade.
- Estou plenamente de acordo consigo,
amigo Cândido. O planeta Terra é de todos os seus habitantes, mas nem todos
pensam assim... Mas falava-me das lavadeiras…
- Como já te disse anteriormente, a
maioria dos soldados, cabos, furriéis e sargentos, dava a sua roupa a lavar às
lavadeiras africanas. Os oficiais, como ganhavam bem, contratavam, a maior
parte deles, empregada doméstica; as esposas, quando casados, habitavam numa
das cidades mais próximas do acampamento. Sabes que se contava uma história de
adultério acerca de um destes casais, separados periodicamente devido à guerra?
- Uma história de faca e alguidar,
calculo!
- Mais ou menos. Queres ouvir?
- Quero, quero… – diz Henrique, eufórico.
- Pois bem: um oficial, suponho que
alferes miliciano, foi mobilizado para a Guiné logo depois de ter rebentado a
insurreição armada. Como era casado, e a mulher pouco mais de vinte anos teria,
resolveu chamá-la para a sua beira, não fosse um gabiru rondar-lhe a porta.
Arrendou uma casa numa pequena cidade, Mansoa, salvo erro, e espera com ansiedade
e pacientemente que a esposa chegue. Abraços e beijos, misturados com grossas
lágrimas de alegria. Passava um dia ou dois em casa, quinze dias no mato, e o
tempo ia assim decorrendo. Certo dia, ou melhor, certa noite, aparece de
surpresa no lar. Metralhadora a tiracolo, fatigado, mete a chave à porta e
entra. Ouve uns suspiros estranhos, pensou que a sua mulherzinha sonhava: «sonha comigo, possivelmente!» - sussurrou.
Pousa a arma nas costas de uma
cadeira e prepara-se para se descalçar. Os gemidos e ais aumentam de intensidade
e ele fica confuso. Pega na arma, pé ante pé, e dirige-se para o quarto de
dormir. Parece-lhe ser de lá que provêm os tais ruídos. Arreda a porta e o que
os seus olhos veem, embora numa meio escuridão, são dois corpos nus, juntos,
enleados, movendo-se, ora lenta, ora com frenesim. As suas bocas ora se beijam
ora deixam escapar gritinhos de prazer e êxtase. O nosso homem ficou bloqueado,
estupefacto, não querendo acreditar no que via: «Não, não estou aqui, deliro!»
Ergue a arma e aponta: pum! Dispara todas as balas do carregador. O
sangue dos amantes esguichou por todo o quarto, a cama ficou num poço de
líquido vermelho, vermelho!
- Terrífico desfecho, esse! E o
oficial, que fez a seguir? – pergunta
Henrique, bastante comovido, quase não acreditando naquilo que ouvira.
- Há quem diga que ele se suicidou após
esse ato de desespero. Uma outra versão diz que ele se entregou às autoridades
militares, cujo tribunal o condenou a uma comissão em Angola ou Moçambique,
onde morreu em combate.
- Se soubessem o nome dele, seria fácil
seguir-lhe o rasto…
- Ninguém sabe, somente os militares, e
esses abafaram o caso.
- Que ela lembra outras histórias similares,
verídicas, isso lembra. E tomaram conhecimento, ao menos, do nome do alvejado,
do amante da adúltera?
- Aí as coisas complicam-se. Há quem
diga que se tratava de um rapaz negro, de vinte anos de idade, criado do casal,
muito habilidoso na cozinha, sorridente, simpático, bem-parecido.
- Pelos vistos, também era exímio na
cama…
- São apenas boatos. Se foi esse rapaz,
fora batizado não havia muito tempo, a solicitação da senhora, por sinal bastante
religiosa, muito temente a Deus.
- Então, se o moço recebeu o banho na
pia batismal, o pecado era menor…
- Brinca, brinca, maroto!
- Contudo, apontam outros suspeitos?
- Também se falava em colegas:
solteiros, com um clima quentíssimo, muito piripiri na comida, afrodisíaco por
excelência, enfim! São apenas suposições. A verdade, só os altos graduados a
souberam.
- Muito interessante essa sua
historieta. E as…
- Já sei: as lavadeiras. Algumas delas
estragavam uma camisa, umas calças, mas que se havia de fazer? Não possuíam os
ferros de engomar que agora existem, a eletricidade, e a vapor, e não dominavam
ainda todas as técnicas de tal mester. Mas também os preços que cobravam não
eram de molde a exigir-lhes perfeição. Quanto ao resto, bem: algumas viram
aumentar o rol de filhos, os mulatos, a cor que não pode negar a sua origem.
São eles que atestam a passagem do homem branco pela terra dos negros. Até se
dizia que uma dessas mulheres veio com seu filho a Portugal à procura do
militar que lho arranjara… Tretas!
- Repugnava-lhe casar com uma mulher de
cor negra?
- A essa pergunta não é fácil
responder. Penso, no entanto, que seria um verdadeiro disparate um branco casar
com uma negra do mato se tencionasse vir para Portugal. Sabes por quê? Porque
ela não iria adaptar-se facilmente à vida europeia. E como apresentá-la aos
pais? «Eis aqui a minha esposa. Não fala
a nossa língua, não sabe o que é morar numa casa de pedra, como a nossa, com
divisórias, ignora o que é uma casa de banho! Vivia em uma palhota de barro
amassado, coberta de capim.» E depois? Seria uma confusão tremenda.
- Até podia dar certo – retruca Henrique.
- Desde que ele ficasse a residir em
África, não digo que não. E isto que te estou a dizer nada tem a ver com racismo,
mas sim com culturas, com maneiras de gerir a vida: os negros que residem na
selva são muito infelizes quando se encontram longe de África, do seu meio
natural.
*
18.º Capítulo
A CAMINHO DE CONTUBOEL
Alguns dias depois do último aperto de mão, os dois amigos voltam a reencontrar-se.
Henrique está cada vez mais familiarizado com a história de Cândido, começa a
compreender melhor aquilo que se passou na guerra colonial. Nunca lhe passara
pela cabeça que os soldados tivessem penado tanto. «De facto – pensava ele –,
não há nada como a paz.» Dirigindo-se ao amigo, saúda-o cordialmente:
- Boa tarde, Cândido. Então, vamos
continuar a história?
- De boa vontade; já está quase a
chegar ao fim. Tu já deves estar saturado de ouvi-la…
- Pelo contrário, estou entusiasmado;
até merecia ser publicada em romance.
- Quem sabe! Mas uma coisa é narrar-ta
assim, oralmente; outra coisa bem diferente é escrevê-la. Os verdadeiros
escritores já nascem com esse dom, têm apenas de desenvolver as técnicas
narrativas e adquirir um vocabulário rico e adequado à história que vão contar.
Camilo e Eça na prosa, e Camões e Antero na poesia, são raros, apenas aparecem
de quando, em vez. Eu, até hoje, somente escrevi umas cartas, uns pequenos
artigos e poemas para a Revista dos Serviços Sociais da minha Empresa, nada
mais! Terei um caminho imenso a percorrer para lá chegar.
- Nada se alcança sem sacrifícios e
persistência - filosofa o jovem.
- Isso é verdade. Mas continuemos: encontrávamo-nos
na colónia há cerca de catorze meses quando veio a ordem de Bissau para irmos
para Contuboel, pequena localidade a alguns quilómetros da cidade de Bafatá; esta
pequeníssima cidade situa-se junto ao rio Geba – o purgatório, depois do
inferno em chamas! Perto dessa simpática aldeia achava-se a fronteira com o
Senegal. Nessa altura era seu Presidente da República o poeta Léopold Sédar Senghor.
- Político e poeta – acrescenta Henrique.
- Nunca li nada dele, mas há quem diga
que escreve bem. Nessa região, a prática da guerra, se é lícito dizê-lo, tinha
um cariz diferente. A razão dessa diferença consistia sobretudo no facto de
nessa zona a mata ser menos densa, com mais espaços abertos, talvez com mais
população ligada ao homem branco, isto é, mais dependente materialmente do
negócio, do comércio em geral, em suma: uma população mais europeizada, e
também islamizada. Aqui até era mais fácil lidar com os africanos, pois alguns
deles falavam a nossa língua, o que não acontecia no norte. A Companhia seguiu
então para o seu novo destino e a mim enviaram-me para os adidos, unidade perto
do Hospital, a fim de ser submetido a tratamento e arrancar os dentes cariados.
- Finalmente! Deve ter sofrido muito.
- Se sofri. Só eu é que sei quanto. Não
me lembro quantos dias lá estive, presumo que uma semana. Dos adidos (quartel onde iam parar centenas de militares
de todas as Companhias que atuavam na Guiné-Bissau) saíam a toda a hora
viaturas para a capital, a estrada era asfaltada, não corríamos nenhuns riscos,
a não ser o que provinha das altas velocidades que os condutores, embriagados
pela emotividade, imprimiam às máquinas. Pelo que me disseram, e depois eu confirmei
isso mesmo, os desastres ocorriam nesse troço com alguma regularidade. Depois
daquela curta convivência com camaradas de todos os batalhões repartidos pela
ex-colónia, ouvindo relatos de duras batalhas e pequenos episódios do quotidiano,
e depois de ter feito tratamento ao estômago e me extraírem dois dentes, chegou
o dia da partida. Tinha de me juntar novamente à Companhia. De Bissau até perto
de Bafatá fui, ao longo do rio, em um barco da marinha. A lancha, a certa
altura, não pôde prosseguir porque a partir daí o rio tinha pouca profundidade
e apresentava-se demasiado estreito. Desembarcámos, eu e demais colegas de
outros regimentos, e dirigimo-nos para o quartel ali próximo. O nome desse belo
lugar, não o conservei na minha memória.
- Talvez tenha o nome do rio! – aventou Henrique.
- Não sei. É possível. Dali fui
transportado em jipe até Bafatá por uma estrada novinha em folha que, apesar de
ser de terra batida, poder-se-ia considerar uma das melhores da ex-província.
Pelo caminho avistámos alguns macacos, tão corpulentos que até pareciam
chimpanzés. Olharam para nós com alguma desconfiança e desataram a correr, aos
guinchos, pelo interior da floresta. Por graça, disse ao motorista: «E se lhes déssemos uns tiros?!» Parou o
jipe e, mais entusiasmado ainda do que eu, aquiesceu: «É para já, camarada!» Descemos e andámos uns bons metros, atirando,
atirando, sem acertar em nenhum. Fiquei satisfeito. Apesar de ter sido eu a
sugerir tal disparate, tal tolice, não gostaria de ver morrer um bicho que
nenhum mal nos fizera e que se encontrava a passear tranquilamente no seu habitat
natural. Regressámos ao jipe e seguimos caminho. Bafatá parecia estar em festa.
Gente movimentando-se, lojas escancaradas ao público, viaturas militares de um
lado para o outro. Enfim, via-se bem que não estávamos no mato. Cidade é
cidade, mesmo sendo, como esta, uma pequena urbe.
- Até parece que tinha terminado a malvada
guerra!
- Não, não acabara, infelizmente. No
entanto ali havia mais sossego. Os militares não pareciam tão acabrunhados como
no norte; riam-se, diziam chalaças acerca dos guerrilheiros, embora os
temessem, pois com frequência havia tremendas escaramuças, das quais resultavam
feridos e mortos. Constava que os homens de Amílcar Cabral…
- Viria a ser assassinado a 20 de
Janeiro de 1973 – lembra Henrique, com
alguma tristeza no seu semblante, pois simpatizava com ele.
- É verdade. Oxalá essa morte nunca
tivesse acontecido; mas isso já é outra história. Quando ele foi abatido já eu
tinha regressado da Guiné havia seis anos! Ia então dizer-te que os paigecês afixavam
avisos nos caminhos, ameaçando de morte a nossa gente; nunca li nenhum, mas
acredito que seja autêntica essa informação. Algumas vezes desloquei-me em
serviço a esta minúscula cidade, altura em que todos aproveitavam para visitar
as «pegas», como ironicamente as
designava o furriel Galhardo, o “escangalhado”,
como entre nós, praças, era conhecido, porque ao andar, e devido talvez à sua
coluna pouco direita, dava sempre a sensação de ir cair ora para um lado, ora
para outro!
Cândido levantou-se da cadeira e
tentou imitar o furriel, mas desajeitadamente. Henrique achou graça, e riu-se a
bom rir. Depois de um momento hilariante, continuou:
No princípio eu não sabia do que se tratava; pega, para mim, era uma ave
dos campos. Por que razão chamariam esse nome a estas mulheres de vida fácil?!
- Caríssimo Cândido: afinal a maldita
prostituição está espalhada por todos os continentes!
- Infelizmente é verdade; olha que a
tendência é para aumentar. E arrasta consigo outros malefícios… A droga, por
exemplo! A dicotomia entre pobres e ricos acentua-se dia a dia
assustadoramente. Em muitos países: de África, Ásia, América Latina, as
raparigas iniciam a sua prática aos doze, treze anos! É o fim das civilizações alicerçadas
na moral!
- Isso acontece sobretudo no chamado
terceiro mundo…
- No segundo, e até no primeiro! A
prostituição é uma praga que acompanha o ser humano ao longo dos séculos. E não
há uma explicação racional para este fenómeno. Como é que uma mulher vende o
seu corpo por dinheiro? E como é que um homem vai manter relações sexuais com
uma fulana que pertence por uns minutos a quem lhe paga?!
- E o risco que correm… as doenças,
devidas quase sempre por falta de higiene.
- E a dignidade, Henrique, a dignidade!
E acima de tudo as crianças que nascem desses atos impuros. Não foram
desejadas, ninguém as quer, nem a mãe nem a sociedade. Nascem com um estigma,
com a marca da maldição. Salvo raríssimas exceções, serão umas miseráveis, a
escumalha, a cloaca…
- E por sua vez trarão ao mundo outros
seres!
A noite aproximava-se vertiginosamente, e os dois amigos tiveram de se despedir mais uma vez. // continua...
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