ENTRE MORTOS E FERIDOS
(Dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
Por Joaquim A. Rocha
// continuação de 4/07/2022...
3.º Capítulo
INFANTARIA 6
Uma semana passa depressa. É a
juventude. Na velhice o tempo já custa a passar, apesar de se saber que a morte
está próxima. Tudo isso está relacionado com a solidão e o sofrimento.
Depois de um aperto de mão, de um sorriso
conivente, ei-los sentados na mesa do Café. Cândido reinicia o relato:
- O quartel, enorme, situava-se na
freguesia de Custóias, ou Senhora da Hora, já não me lembro, a geografia nunca
foi o meu forte; sei que ficava no concelho de Matosinhos, a alguns quilómetros
do Porto. Havia aí mais asseio do que no CICA-1: as camas bem-feitas (andava amiúde um cabo a fazer a inspeção –
bastava um pormenor insignificante para ele mandar logo desfazer tudo e fazer
de novo), com as fronhas bem esticadas; armas sempre limpas e oleadas; todo
o equipamento sempre em ordem. Mas nas relações com os superiores, mesmo da
classe mais baixa: cabos, furriéis, sargentos, notava-se uma maior distância. A
bandalheira tinha acabado!
- E vocês, o que faziam durante o dia?
– perguntou Henrique, somente para
lembrar que estava ali.
- Metade do dia, entre as sete e as doze
horas, destinava-se a exercícios físicos, a manejar armas, montar e desmontar, e
fazer fogo; a outra metade, das treze às dezoito, empregava-se na condução.
- E as viaturas, estavam em bom estado?
- Eram velhas, pesadas, desprovidas de
conforto, com assentos mostrando as grossas molas, a cheirarem a óleo queimado;
deixavam - por vezes - ficar mal o nosso monitor. Eram autênticas carroças! Quedavam
avariadas nos sítios mais díspares, à espera que o mecânico aparecesse para
reparar a avaria, quando tinha conserto!
- Como é que o exército podia preparar
bons condutores com viaturas tão velhas e ruins?! – empertiga-se Henrique, num gesto de revolta.
- Eles finalmente compreenderam isso.
No estio de 1965 o governo adquiriu à França, ou à Alemanha, não sei bem, para
as Forças Armadas portuguesas, alguns carros novos. Faço ideia o que deve ter
custado ao Salazar! Forreta como era, esse dinheiro deve-o ter chorado o resto
da vida.
- A partir daí, carrinho novo em folha…
- Estás enganado! Eram poucos, não dava
para abastecer todos os quartéis do país. A nós só calhou um pesado e um jipe.
Tivemos de continuar com os trambolhos.
Mas continuando… Sargentos e
oficiais extremavam-se em antipatias. Consideravam, assim penso, o pobre soldado,
uma massa disforme, não pensante, com cérebros do tamanho de uma pulga. Tratavam-no
bem pior do que se trata o camelo no deserto: montando-o a seu belo prazer, sem
sequer para ele olhar – no entanto, não podiam dispensá-lo! Embora fosse a
razão de ser da sua profissão, jamais deixavam fugir uma oportunidade para
humilhá-lo, ao zé-ninguém, ao parolo, calcá-lo aos pés, espezinhá-lo, para lhe
mostrar que ali, no quartel, ele, soldado, igual ao sujo chão, não riscava
nada, era uma formiga à beira de um rinoceronte! Mina, de onde extraíam toda a
sua riqueza, faziam tudo para ignorá-lo; não o conseguindo, exigiam-lhe que vergasse
a cerviz!
- Você ficou traumatizado – sentenciou Henrique.
- Talvez; e não era para menos, meu
amigo. O pobre do tarata vivia o seu dia-a-dia amedrontado, inseguro. E não se
podia queixar a ninguém! Se se queixasse, fosse do que fosse, ai dele: seria
imediatamente trucidado, atirado à lúgubre masmorra, às leoas famintas, onde permaneceria
dias infindos, até ser devorado, ou transformado em mera serapilheira.
- Não havia pelo menos um oficial que
estimasse os subordinados?
- Bem, um ou outro superior, tratava o pobre
coitado com mais humanismo, com mais lisura – as exceções à regra. Porém, os
seus iguais, não gostavam dessas “cortesias”
e quase os odiavam por isso. Não perdoavam a sua “fraqueza”.
O sofrido tempo, como tudo na vida, passava. Depois de termos percorrido
quase todas as estradas do norte e feito imenso fogo com a vetusta «mauser» na
carreira de tiro de Espinho, provocando-me dores insuportáveis nos frágeis
ombros, por pouco quebrando a omoplata…
- E não punha nada para se proteger? – pergunta com espanto o jovem Henrique.
- Eu usava, como me tinham sugerido
outros jovens, uma toalha por baixo da camisa, mas o diabólico instrutor deu
por isso. Ministrou-me uma tareia monumental: pontapés e bofetadas mil! Nunca
esquecerei esse dia. Ele berrava que nem um possesso: «quero ver se levas para a guerra a toalha, menino da mamã!»
- Não se trata assim um ser humano – lamenta Henrique, indignado com tamanha
agressividade.
- Nós não éramos considerados seres
humanos, mas sim máquinas de guerra, coisas execráveis, tratados pior, quem
sabe, do que os presos na cadeia! Nos discursos dos governantes nós éramos os
«Soldados de Portugal», com letra maiúscula; nos aquartelamentos éramos os cães
raivosos, a escumalha, sacos de lixo!
- E os outros, como reagiram?
- Ficaram indiferentes! Não era nada
com eles. Continuaram a disparar para aqueles alvos, bonecos de madeira,
parecidos connosco, os quais estavam a uma distância enorme, perto da praia. Eu
fui dos piores em tiro ao alvo, salvo erro. Para disparar bem é necessário que
o espírito esteja sossegado e haja uma motivação. Eu, na tropa, nunca estive
bem.
- Você é antimilitarista.
- Podes crê-lo. Fui sempre, desde que
nasci, praticamente. Nunca gostei de fardas militares, de gente que dá ordens
por tudo e por nada, de domadores de cérebros, de parasitas que vivem, a bem
dizer, do orçamento. Muito gastam, e produzem nada.
- Nem toda a gente estará de acordo
consigo. E das polícias? O que pensa delas? – perguntou Henrique com alguma expectativa.
- É diferente. A Polícia de Segurança
Pública, a Guarda Nacional Republicana, a Judiciária, e outras, são necessárias
para combater o banditismo, a ladroeira, os assassinos, etc. Não tem comparação,
embora eu, se tivesse poder, talvez fundisse a GNR (conotada com os militares) com a PSP. E outra coisa: criava (ou desenvolvia, caso já exista) uma
polícia marítima, com equipamentos sofisticados: ótimos helicópteros, lanchas
rápidas, etc., a fim de defender a nossa costa, tanto dos pescadores
estrangeiros que roubam o nosso pescado, como dos traficantes de droga, armas,
e prostituição, além de impedir a entrada de imigrantes clandestinos; criava
também uma polícia aérea, para vigiar, do ar, todo o nosso território e
prevenir incêndios. Ambas as polícias teriam um comando comum.
- E as Forças Armadas?! – interroga Henrique, incrédulo com aquilo que
ouvia.
- Acabava com elas, obviamente.
- Contudo, elas derrubaram o regime que
você tanto detestava – lembrou Henrique,
quase num desafio.
- É verdade, e ainda bem que me falas
nisso. Porém, não te esqueças que também foram elas que, em Maio de 1926,
derrubaram a 1.ª República, dando assim azo a que surgisse o chamado Estado
Novo. O “edifício” salazarista desmoronar-se-ia,
mais tarde ou mais cedo, por si próprio. «Nada
é eterno». Depois da morte do chefe, os seus herdeiros de regime já não se
entendiam. Era uma questão de tempo. Exemplos desses existem em todo o lado. Repara:
Marcelo Caetano não era bem visto pelos ultras e pelo diretor da PIDE/DGS –
algo iria acontecer brevemente; a situação política teria de se definir. Fosse
quem fosse que ganhasse o poder, algo teria de mudar. Por outro lado, os
militares que fizeram o 25 de Abril de 1974 não estavam todos, como sabes,
imbuídos do espírito revolucionário – muitos deles queriam era acabar com a guerra
colonial.
- Por quê? Sendo militares, deviam
gostar da guerra! – espicaça o jovem
Henrique.
- De certo modo gostavam. Simplesmente
já lá iam treze anos! Alguns desses militares de carreira tinham combatido em
Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Estavam cansados, fartos desses conflitos. E
outra coisa: aquela guerra não era clássica, não prestigiava quem nela combatia.
Os soldados da FRELIMO, por exemplo, andavam mal vestidos e alguns deles descalços!
Se não fossem ajudados por vários governos, morriam à fome. Um oficial desse
exército, em termos de eficácia, não valia um soldado americano. Os combatentes
de Angola não se entendiam entre si! O MPLA tanto odiava o exército português
como o da UNITA!
O pequenino Napoleão Bonaparte granjeou
prestígio porque venceu algumas batalhas a generais famosos; não é o mesmo que ganhar
a maltrapilhos! Além disso, a África não é para brincadeiras, é perigosíssima:
o clima, as febres... E há outra coisa: o governo, como estavam a faltar
oficiais de carreira: alferes, tenentes e capitães, toca a promover milicianos
a esses postos, sem terem passado pela Academia Militar! Eu conheci um alferes
que tinha apenas o 3.º ou 4.º ano do liceu! Fora o melhor aluno no curso de
furriéis, um militarista ferrenho, cara de pau, e por isso passou para a escola
de oficiais; se continuasse na tropa, não sei, logo seria promovido a tenente,
e a seguir a capitão!
- Com tão poucas habilitações
literárias?!
- Estás a ver agora por que os
militares de carreira derrubaram o regime? Não foi certamente pelos nossos
lindos olhos, para implementar em Portugal o socialismo científico, ou uma
democracia a sério. Os militares são conservadores, por natureza. Agem como os
médicos, os juízes, etc. – tentam preservar a sua classe, aumentar os privilégios,
o prestígio...
- O Cândido é demolidor!
- Nem por isso! Sou justo, pelo menos
tento sê-lo. Mas deixemos isso, esses assuntos são para os especialistas na
matéria, eu sou apenas um empregado de escritório e um estudante do Curso
Comercial (técnico de contas). Mas sabes que em Infantaria Seis me aconteceram
duas coisas que nunca mais esqueci. Uma desagradável e outra assim-assim. A
primeira foi quando barrei o meu casqueiro com o doce de cereja que a minha mãe
me mandara. Logo que dou uma dentada, parto um molar. A velhota não se apercebera
e deixara lá dentro um caroço. O dente, pouco a pouco, foi apodrecendo, causou-me
dores intensas, noites sem dormir.
- E por que não foi tratá-lo?
- Também eu queria. Mas aonde? Expus o
caso ao enfermeiro e ele disse-me para ir aguentando, o exército não tinha
médicos dentistas, e se os tinha não tratavam os dentes dos soldados.
- E os particulares?
- Para esses tinha de se marcar
consulta, perder horas, e os preços eram proibitivos, não estavam ao alcance
das nossas bolsas.
- Valia mais arrancá-lo.
- Foi o que eu fiz, mas em África, no
Hospital Militar de Bissau. E aí já foram dois! Um contagiara o outro.
- Mais uma razão para odiar a tropa.
- Sim, mais uma razão a acrescer às
outras. Mas deixa-me contar-te aquele episódio engraçado, mas ao mesmo tempo
esclarecedor. Como estava perto do Porto, que eu já conhecia mais ou menos, na
noite de São João, em Junho, não quis perder essa oportunidade, única talvez,
de conhecer uma das maiores manifestações de alegria no país inteiro.
Queria ver «in loco» essa famosíssima festa. Depois do jantar, servido às
dezoito horas, uma feijoada de porco (só
a cabeça e orelhas, porque a parte nobre ia toda para as messes), sigo, com
mais alguns camaradas, em direção ao centro da cidade nortenha. Percorríamos
esse longo trajeto a pé! Não é que o dinheiro do ordenado não desse para
chamarmos um táxi; ganhávamos três ou quatro escudos por mês, uma autêntica “fortuna”, simplesmente nós gostávamos de
caminhar!
- Estou a ver! Para fazerem a digestão
da feijoada! – ironiza Henrique.
- O táxi custaria trinta ou quarenta
escudos. Isso não lucrava eu em dez meses! Mas continuando… Pelo caminho íamos
na galhofa, atirando piropos às sopeiras que apareciam às varandas dos prédios
ou na rua, umas bonitas e outras feias, enfim, divertíamo-nos à nossa maneira.
A cidade invicta lembrava (de acordo com
o que vira no cinema) Pequim, Nova Iorque, Londres, Tóquio… um mar de
gente, o bulício, a barafunda. Em certas ruas quase já não se podia andar. Nem
queria crer. Habituado a um meio calmo, aquilo mexia comigo, deixava-me intranquilo.
Tantas luzes, e tamanha cacetada de alho-porro na cabeça, estavam a pôr-me
tonto, completamente perturbado. Empurra daqui, empurra dali, graçola daqui,
piadinha dacolá, vamos seguindo de rua em rua, de beco em beco, ouvindo música
popular, gritos eufóricos, guinchos de crianças. Uma verdadeira loucura. A
certa altura, seriam dez horas da noite, já nem os meus camaradas do quartel eu
conseguia enxergar; encontrava-me sozinho no meio daquela imensa multidão. Um
cenário assustador!
Os gracejos choviam de todo o lado, mas eu de cada vez que os ouvia
achava menos piada. Se o São João era aquilo… não gostava! Fui andando,
andando, perdido, e cheguei, sem eu saber como, às Fontainhas. Aí as coisas
estavam, se possível, ainda mais movimentadas. O espaço físico era
insuficiente, exíguo, para tanto folião. O cheiro a sardinhas assadas era
insuportável. Eu sufocava. Disse para os meus botões: «depois do tão apregoado fogo-de-artifício pões-te imediatamente a
caminho do colchão.»
O espetáculo foi maravilhoso.
Nunca tinha visto coisa tão bonita. Nas festas da minha terrinha também havia
fogos de vista, mas à beira disto… Não me recordo quanto tempo durou – estaria
ali o resto da noite a ver o céu em festa. Logo que a harmoniosa “trovoada” acabou, recomeçaram as
cacetadas, as mil brincadeiras, a folia, a pândega. Eu, porém, não tinha feitio
para colaborar nessas manifestações de alegria e espontaneidade. Era demasiado
tímido e bicho do mato para isso. Tentei furar como um rato pelo meio da
multidão em delírio, todos bem bebidos, vi-me gladiador no circo de Roma,
Hércules lutando contra a hidra de Lerna, e depois de enorme esforço dou comigo
na estrada a caminhar em direção a Custóias.
Aproveitei para fazer um chichi,
já não esvaziava a bexiga há séculos! Como o tempo passou rapidamente! Quase
cinco horas da manhã! Chego finalmente ao aquartelamento, cansado,
extenuadíssimo, e peço à sentinela que me abra a porta de entrada. Recusou, alegando
que não podia, só às seis da manhã. Até a essa hora teria de aguardar na rua.
Não insisti. Não valeria a pena. O regulamento militar assim o determinava e eu
tinha de me resignar. Quem era eu para impor a sua abertura? Se ainda fosse
graduado, mas não, era apenas um simples soldado raso! Não insisti, também para
não prejudicar o colega, caso ele acedesse ao pedido e fosse apanhado nessa
falta. Uma hora passava depressa. Comecei a movimentar-me, sem destino, sereno
e tranquilo, sem pressas, e eis que vejo um barracão. Tratava-se de um silo,
uma espécie de armazém, cheio de palha. Fui até lá e estendi-me deleitosamente.
Estava quase a adormecer quando ouço algo a mexer-se ali perto. Levanto-me ligeiramente
e qual não é o meu espanto ao verificar que se tratava de ratazanas! «Que se lixe», resmunguei. Com o sono a
dominar-me, não podia ser esquisito.
Deitei-me novamente e adormeci
profundamente. Corria o risco de dormir todo o dia. No entanto, por volta das
seis da manhã, uma poderosa voz faz-se ouvir: «Quem está aí dentro?» Na mão trazia longa e temível forquilha.
Ainda estremunhado, respondo: «sou eu, um
soldado de Infantaria 6; assisti à festa de São João e como cheguei antes da
alvorada ao quartel não me deixaram entrar.»
O agricultor pareceu satisfeito e
convencido com a minha resposta. Olhou fixamente para mim, com aqueles olhos de
águia, que tudo veem, e com uma certa complacência diz: «Está bem, está bem; agora vá-se embora.»
Fiquei aliviado, como me tirassem
do lombo um fardo de chumbo. Cheguei ao quartel ainda a tempo do pequeno-almoço
e contei aos camaradas aquele estranho e hilariante episódio. Todos se riram a
bom rir, até eu me ri!
- Como é bom ter vinte anos! – diz Henrique, encantado com a história.
- Estes pequenos episódios são somente
banalidades; servirão um dia mais tarde, quando estivermos aposentados, para
contar aos netos. Eles provavelmente não acreditarão, tal como hoje já não
acreditam nos contos de fadas e no pai natal. A televisão, sobretudo, mas
também a entrada para a escola em tenra idade, afastando assim as crianças dos
avós, mata os sonhos da infância. // continua...
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