ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
antigo hospital da SCMM |
A FEBRE TIFOIDE E OS SEUS PROTAGONISTAS (II parte)
... Mas continuando a falar da epidemia, apresenta-se a seguir o
boletim do movimento da barraca hospital da Cruz Vermelha a 12/3/1914:
Rosa Benta Gonçalves. Melhor. Temperatura: 36,6 a 36,8.
Joaquina Gonçalves. Melhor. Temperatura de 36,7 a 37.
Deolinda Afonso.
Melhor. Temperatura de 36,6.
António Domingues. Grave. Temperatura 37,2 a 37,8.
Isabel Esteves.
Faleceu.
Maria Monteiro.
Grave. Temperatura de 39,3 a 39,5.
Isabel Maria.
Grave. Temperatura de 39,2 a 39, 6.
O médico
diretor – Avelino Vieira Pinto.
O
enfermeiro mor – Ernesto Fonseca.
Os
enfermeiros - Rosa Ramos e Ernesto Fonseca.
No Correio de Melgaço n.º 91, de 15/3/1914, na sua Secção Livre, lê-se com assombro: «Apontamentos – sou natural de Castro, cuja paróquia geri cinco anos, conheço perfeitamente o modus vivendi daquela gente. É uma freguesia extensíssima, medindo trinta quilómetros de comprimento por dez de largura, confina com onze paróquias espanholas e três portuguesas; topograficamente alta, e por isso isolada, contendo, termo médio, duas mil e trezentas pessoas, efetuando-se cada ano dezoito a vinte casamentos, em virtude do seu isolamento casam continuamente uns com os outros, sendo sogros e genros irmãos, daqui resulta o enfraquecimento daquela gente, e como ali durante os meses de Julho, Agosto e Setembro o calor é tropical, e há meses no inverno que o frio é como na Sibéria, resulta que esta temperatura – in extremis – a atuar em indivíduos fracos por natureza, em virtude da causa acima mencionada, é que há trinta anos vem produzindo estas epidemias destruidoras. A meu parecer, servirá este esclarecimento para os senhores médicos estudarem os remédios que – a meu ver – só tinha um: cruzamento de raça com russos ou noruegueses. Prado, 13/3/1914. O reitor: padre Francisco Gonçalves.»
No Correio
de Melgaço n.º 92, de 22/3/1914, apresenta-se o movimento dos doentes em
Castro. No dia 12 o médico diretor, Dr. Vieira Pinto, e o comissário Túlio da
Mota, partiram da vila para Portelinha, onde visitaram a doente Rosa Varandas,
que foi julgada afetada de enterocolite
muco membranosa. Foi medicada, mas a sua doença teria de ser tratada com outros
recursos. A seguir foram ao Vido, onde viram Luísa Domingues, de 75 anos de
idade, viúva, que ficou em observação. Não podiam hospitalizar todos os
doentes, devido ao tempo estar péssimo, e por outro lado havia falta de roupas
no hospital de campanha! Seguiram para o lugar de Cainheiras, onde foi consultado
Sebastião Esteves, cujo estado continuava melindroso. Dali dirigiram-se para o
Barreiro, onde o médico observou Isabel Domingues, que estivera quase a morrer,
mas já estava melhor. Regressaram à vila de Castro, fazendo a visita hospitalar
como de costume. No dia 13 voltaram aos mesmos lugares; no dia 14 o médico
visitou Maria Rosa Domingues, solteira, de vinte anos de idade, de Várzea
Travessa, que foi encontrada com febre tifoide e com uma temperatura elevada:
39,8. Não foi internada, por o hospital não comportar mais doentes, e também
por causa da imensa chuva que caía. Dali seguiu para outros lugares,
encontrando alguns doentes em melhor estado de saúde. No dia 15, o médico não percorreu
nenhum sítio, fez a sua visita hospitalar e esteve durante o dia no seu
consultório improvisado. Tiveram alta do “hospital”, saindo completamente
curados, os doentes: Deolinda Afonso,
de Bico; Rosa Benta Gonçalves, de
Cainheiras; Joaquina Gonçalves, de
Varziela. Faleceram: Antónia Esteves,
de Cainheiras, viúva, de 57 anos de idade; Luísa
Domingues, do Vido, viúva, de 75 anos de idade. Todas as casas onde houve
óbitos foram desinfetadas. No dia 19 surge o boletim da barraca hospital da Cruz
Vermelha. Doentes com febre tifóide: António
Domingues – melhor; Maria Monteiro – melhor; Isabel Maria – melhor, embora ainda com
febre alta.
Nos
meios pequenos o barulho surge muitas vezes do nada. Em Melgaço foi sempre
assim, ao longo dos séculos. O jornal “Aurora do Lima”, de Viana do Castelo,
publicou um desmentido a um suposto conflito entre o Dr. Vitoriano e o pessoal
da Cruz Vermelha. Vejamos: «É falso
(…) ter havido qualquer conflito entre o
pessoal da Cruz Vermelha destacado em Castro para combater a propagação das
febres tifoides que ali grassam desde Agosto de 1913 e o senhor Subdelegado de Saúde de Melgaço – ainda que isto pese a
alguém que, desde o seu início, vem manifestando uma injustificada e até
censurável má vontade contra aquela simpática e prestimosa coletividade, que
pelos seus reconhecidos bons serviços deveria conservar arredado o desejo de
vingança, ou represálias mesquinhas contra alguns dos seus mais dedicados
membros. O subdelegado de saúde, nas suas visitas a Castro, desde que ali se
encontra pessoal da Cruz Vermelha, tem sido por este delicada e atenciosamente
recebido, acompanhando-o, um dos seus enfermeiros, na visita aos doentes, como
pela mesma autoridade sanitária é confirmado, ao mesmo tempo que reconhece os
bons serviços, admirável dedicação e comprovado zelo do referido pessoal, para
com o qual todo o povo daquela populosa freguesia se manifesta altamente grato
e reconhecido. A zelosa Direção da (…) Cruz Vermelha desta cidade, no louvável
empenho de velar pelo bom nome da prestimosa coletividade, logo que teve
conhecimento do boato, que se pretendia fazer correr e avolumar, de um conflito
inesperadamente surgido entre o subdelegado de saúde de Melgaço e o pessoal da
Cruz Vermelha destacado em Castro Laboreiro, deliberou que alguns dos seus
membros fossem, imediatamente, à sede daquele concelho, como logo foram no
sábado último, investigar do que
houvesse, ouvindo, para tal fim, as pessoas mais gradas da localidade e o
comissário da coluna, para o que fora ali chamado. Entrevistadas diversas
pessoas da mais elevada cotação social e preponderância naquela Vila pelos
membros da direção que ali foram, todas elas afirmaram, categoricamente, que
nenhum conflito havia, ou tinha havido, entre o subdelegado de saúde e o pessoal
da Cruz Vermelha; que o mesmo pessoal tem sido incansável e extremamente
dedicado no tratamento dos doentes e luta para debelar a epidemia, pelo que bem
merece o reconhecimento não só dos povos de Castro, mas ainda a simpatia de que
goza entre os habitantes de Melgaço; que se não fosse a caridosa intervenção da
Cruz Vermelha se teriam registado muitos mais óbitos causados pela terrível
doença que ali grassa; que o senhor subdelegado de saúde, na sua última visita
a Castro (…) tivera ocasião de
reconhecer os bons serviços daquele pessoal, especializando a dedicação dos
enfermeiros, como de tudo informara o subdelegado de saúde distrital; que,
finalmente, a prova provada da simpatia de que goza em Melgaço a Cruz Vermelha,
quer pela dedicação verdadeiramente altruísta do seu pessoal, quer pela forma
como ele se tem sabido conduzir em todos os seus atos, está na próxima realização
de um distinto sarau, em que tomará parte a fina-flor da elite melgacense, cujo
produto reverterá em benefício da prestimosa e humanitária instituição, além de
outras manifestações de apreço que oportunamente lhe serão prestadas. E eis
como, sem grande esforço, mas com louvável solicitude, a (…) direção da delegação
distrital da Cruz Vermelha desfez um boato que alguém, maldosamente, sem nenhum
respeito por uma instituição que só deve merecer o carinho e a simpatia de
todos nós, conseguiu desfazer com a mesma facilidade que no ar se desfazem
simples bolas de espuma! É, pois, com a maior satisfação que fazemos o desmentido
do insidioso boato, felicitando a direção da Cruz Vermelha pelo zelo que
manifestou pela conservação do bom nome da prestimosa coletividade, bem merecendo
também a nossa admiração o dedicado pessoal destacado em Castro Laboreiro pela
maneira (…) altruísta e humanitária como se tem desempenhado da sua caridosa e
elevada missão.» (Correio de Melgaço n.º 92, de 22/3/1914).
No dito número do jornal pode ler-se que partiu para Castro
o Dr. Gabriel Fânzeres, médico. Constava que tinham aparecido mais oito novos
casos de tifo, que estavam ocultos. Os doentes foram hospitalizados, apesar da
relutância da sua família, que se opunha a que fossem para a barraca hospital,
tendo sido convencidos pelo pessoal da Cruz Vermelha.
O correspondente do Correio de Melgaço escrevia, a 26/3/1914:
[A epidemia que desde Junho de 1913
grassa nesta freguesia tem diminuído consideravelmente, devido aos esforços
inexcedíveis do pessoal da Cruz Vermelha. Há dias (…) fomos ouvir o Dr. Fânzeres, que nos disse o seguinte: «A epidemia
da febre tifoide, no meu entender, é
endémica desta região, sendo a origem e
a causa principal a promiscuidade absoluta em que vive este povo, sendo os
focos primordiais os lugares baixos e húmidos. Todavia, tem decrescido duma
maneira considerável e estou convencido de que dentro em pouco tempo estará
aparentemente debelada. Os meios profiláticos e higiénicos são aqui, a meu ver,
irrealizáveis devido às inclemências do tempo e variantes de temperatura nas
duas quadras do ano. O meio prático e aconselhado cientificamente seria a
destruição pelo fogo de todas as choças e cubatas, mas que sem dúvida este
processo viria afetar os interesses deste povo trabalhador, do qual a maior
parte não tem recursos, além de grande relutância e protestos que disso
resultariam. Ora, só assim como exponho, a meu ver, é que se podia debelar
totalmente a epidemia, visto ser impossível o isolamento como a ciência
aconselha e impossível de se realizar também a desinfeção das cubatas e choças.»]
Na dita correspondência informava de que a Junta de Paróquia
de SMP enviara ao comandante da coluna da Cruz Vermelha destacada em Castro um
ofício com a cópia do voto de louvor que fora exarado na última sessão da
mesma. Também informava os leitores do Correio de Melgaço de que caíra em
Castro uma intensa nevada, atingindo, o gelo, uma altura enorme, tornando
impossível a comunicação entre os diversos lugares, mas cuja beleza era
deslumbrante. Tinham saído da barraca hospital, curadas, as seguintes pessoas: António Domingues, solteiro, de 47 anos
de idade, das Dornas; e Isabel Maria,
casada, de 27 anos de idade, de Assureira. Porém, faleceram: Maria José Fernandes, viúva, de 57 anos
de idade, de Podre; e Joaquina Fernandes,
solteira, de 38 anos de idade, do Barreiro. (Correio
de Melgaço n.º 94, de 5/4/1914).
O movimento dos doentes de 26/3 a 2/4/1914 apresenta-nos o
seguinte quadro: Maria Monteiro –
curada; Isabel Pires, curada; Rosa Esteves – curada; Joaquina Alves – convalescente; António Fernandes – curado. Todos
obtiveram alta, à exceção da Joaquina.
Finalmente dá-se a retirada da coluna. Lê-se no Correio de Melgaço
n.º 95, de 12/4/1914: «Ao contrário do
que erradamente disse o Jornal de Melgaço a benemérita coluna da Cruz Vermelha
que tanto tempo esteve em Castro, tratando os doentes do tifo, não retirou de
lá na passada quarta-feira por qualquer incompatibilidade com o povo castrejo.
Pelo contrário, todos eles trazem bem viva a saudade daquela gente rude e
simples, mas boa, que tão bem os acolheu e com a maior afabilidade os tratou
sempre. E Castro por muito tempo se lembrará daqueles dedicados rapazes que,
com uma abnegação, um altruísmo que palavras não traduzem, por lá andaram meses
e meses, à chuva, ao vento, à neve, para levar um conforto a cada doente, uma
esperança a cada lar. Bravos rapazes!
A vossa dedicação não pode ter a simples recompensa de um louvor sincero, o
reconhecimento de tantos indivíduos. Deve estar na consciência de cada um de
ter praticado o bem, levando essa prática a um ponto quase desconhecido nos tempos egoístas que atravessamos. A todos com o reconhecimento eterno do povo
de Melgaço e em especial do de Castro Laboreiro. Um saudoso abraço de despedida.»
Por ter sido dada alta na barraca hospital ao último doente
do tifo, e depois do Dr. Gabriel ter verificado pessoalmente que não havia mais
doentes, foi autorizada a coluna da Cruz Vermelha a retirar de Castro; mais uma
vez Cícero Solheiro pôs o seu automóvel à disposição para levar o pessoal até à
estação do caminho-de-ferro.
Como curiosidade, sublinhe-se que o ministro do interior
autorizou o pagamento de 1.911$00,
importância despendida pela ambulância da Cruz Vermelha que fez serviço em Castro
Laboreiro aquando da epidemia.
Em sessão da Câmara Municipal de Melgaço, de 15/4/1914, foi
autorizado o pagamento de 2$30 de
remédios fornecidos pela Farmácia Araújo para doentes pobres de Castro! (Os leitores não se impressionem com estas
quantias, pois o balanço da tesouraria da Câmara Municipal acusava, nessa
ocasião, o saldo positivo de 430$22!)
Na mesma sessão o vogal Azevedo propôs um voto de louvor à
coluna da Cruz Vermelha pelos relevantes serviços prestados em Castro, o qual
foi aprovado por unanimidade.
As coisas na freguesia de Castro Laboreiro melhoraram, ao ponto do professor
Matias abrir a escola no dia 20 de Abril.
A Cruz Vermelha voltaria novamente a Melgaço, em 1918,
aquando da chamada pneumónica, que matou quase metade dos habitantes de Santa Maria
da Porta. Muitos corpos foram envolvidos em lençóis e enterrados no cemitério,
por falta de urnas suficientes!
II - PROTAGONISTAS
Dr. António Pereira de Sousa.
Nasceu em Labrujó, Ponte de Lima, em 1850. Após concluir o
curso de medicina, na Universidade de Coimbra, veio para Melgaço, como médico
municipal, e por aqui ficou, até à sua morte, ocorrida a 17/5/1914. Morreu solteiro;
mas, segundo consta, gerou em Maria Pires, sua empregada, uma criança do sexo
masculino, a quem deram o nome de António. O seu nome pode ver-se no Lar, mas
não é apenas o dele, mas também o de seu irmão Francisco, que foi casado com D.
Maria Pia de Castro, da Casa fidalga de Galvão. Como eram proprietários da
Quinta de Eiró, e tendo-a deixado em testamento à Santa Casa de Misericórdia de
Melgaço, daí a atribuição do nome. Antes de Outubro de 1910 militou no Partido
Progressista, cujo chefe era o Dr. António Joaquim Durães, e chegou a ser
administrador do concelho; com a proclamação da República afastou-se da política.
Dr. António Augusto Durães
Filho do Dr. António Joaquim Durães e de Beatriz Augusta Ribeiro Lima. Nasceu na Vila de Melgaço a 24/7/1891. A sua mãe faleceu a 3/2/1894 e o seu pai a 17/6/1907. Em 1908 concluía os preparatórios no Liceu do Porto. Frequentou a Faculdade de Direito na Universidade de Coimbra, tendo concluído o curso a 13/8/1912. Estreou-se como advogado em Melgaço, na defesa do padre José Joaquim Pinheiro, conseguindo a sua absolvição. Foi chefe concelhio do Partido Republicano Português e administrador do concelho, tomando posse a 24/2/1913; abandonou o cargo em Abril ou Maio de 1914. Foi diretor do “Correio de Melgaço”, mas devido a divergências com o seu proprietário, Hermenegildo José Solheiro, afasta-se. Em 1916 foi-lhe oferecido novamente o lugar de administrador, mas recusa-o! Casa a 20/2/1916 com Maria Esménia, de Valença, filha de Francisco Antunes Silva Guimarães, secretário de finanças em São Tomé, e de Maria da Silva. Um dia, cansado dos seus conterrâneos, embarcou com a esposa para África, chegando a ser secretário de Norton de Matos e governador do distrito de Benguela. A Melgaço vinha somente de visita, para a sua vivenda do Rio do Porto. Pouco antes da independência de Angola fixou-se na terra natal, tendo sido o 1.º presidente da Câmara, não eleito, do novo regime. Tomou posse a 4/11/1974. Por curiosidade diga-se que foi a 1.ª Comissão Administrativa a tomar posse no distrito de Viana! Faleceu em 1977, com 86 anos de idade. O casal não teve filhos. Por isso, no seu testamento deixou uma das suas quintas aos BVM e outra à Santa Casa da Misericórdia de Melgaço, deixando a casa e alguns bens ao seu empregado Joaquim. O seu nome adorna uma das ruas de Melgaço.
Comendador
Matias de Sousa Lobato
Filho de Vitorino José de Sousa Lobato e de Maria Benedita Martins. Nasceu em Alvaredo a 29/6/1859. Frequentou a Escola do Magistério do Ensino Primário na capital do Minho e tornou-se professor, aos 22 anos de idade, tendo sido destacado para Tadim, Braga, e a 12/5/1887 foi nomeado professor vitalício de Castro. Conseguiu granjear a simpatia daquele povo ao ponto de ter a maioria dos votos naquela freguesia! Durante muitos anos foi ali o presidente da Junta da Paróquia. Mas eram merecidos esses votos, pois o professor Matias estava sempre disponível para os castrejos: ia à Vila de Melgaço tratar-lhes de assuntos relacionados com as Finanças, Conservatória, Tribunal, Câmara, Administração. Obteve um sino para a igreja, o cemitério (até então os mortos eram enterrados na igreja). A sua fama ultrapassou o concelho; um governador civil, tendo ido a Castro, e observado o seu prestígio, a sua popularidade, alcunhou-o de “Leão das Montanhas”. Era de facto uma espécie de soba. O seu poder era tanto que um dia foi a Valença libertar seis castrejos que tinham sido presos em Espanha, como emigrantes clandestinos. Em 1901 foi-lhe conferida a medalha de prata pelos serviços que prestara aquando da epidemia que se verificou em Castro em 1897. Em 1902 foi-lhe atribuída a Ordem Militar de Cristo. Em 1914 foi-lhe conferida a medalha de cobre da Cruz Vermelha pelos serviços que prestara como enfermeiro na epidemia de 1913-1914. Nessa altura também o governo lhe atribuiu a medalha de ouro pelos mesmos serviços. Em 1915 foi-lhe concedida a comenda da Ordem de Benemerência.
Em 1904 encontrou-se com José
Leite de Vasconcelos na vila de Castro. No seu livro “De Terra em Terra” o
sábio fala desse encontro. Em 1908 pertencia ao Partido Regenerador. Com o
advento da República, foi-se adaptando ao novo regime, mas penso que nunca
militou a sério em nenhum partido republicano, embora colaborasse com uns e com
outros, daí o considerarem camaleão da política. Em Julho de 1916 já estava
doente; foi submetido a uma junta médica que o julgou temporariamente incapaz
para o serviço. Apesar disso, em Agosto desse ano de 1916, recebeu a visita de
alguns fidalgotes da Vila de Melgaço, acompanhados do administrador do concelho
e de um deputado, Dr. Amaro Oliveira, que estava a águas no Peso. O narrador
dessa excursão a Castro descreve-o assim: «O Zé e o Esteves partiram a galope
avisar o comendador Matias da nossa chegada. E lá estava ele no meio da ponte, a barba desgrenhada, a barriga proeminente,
escancarando a boca enorme numa saudação: sejam bem-vindos! Depois os seus braços compridos estenderam-se e,
abrindo a mão papuda, mostrando o pulso rijo e peludo, gritou: - alto!
o meu povo há de vir esperá-los aqui,
pois então? A uma pergunta do Zé e do Henrique: ó parente?! Então?
Rijo, hein!?, ele respondeu: - Bem, bem.
E o narrador conta-nos: «e do fundo do
peito saía uma gargalhada forte que atroava os ares, enquanto o olho esquerdo
piscava (…), obrigando-o a enrugar
aquela face corada e coberta de pelos. Apresentaram-lhe os Doutores Joaquim e
Amaro Oliveira. E ele, na sua figura imponente, apertava-lhes a mão, muito
direita, muito firme, conservando um ar de gran
seigneur, mostrando na sua pose rústica que o título de Leão das Montanhas tinha a sua razão de
existir. E entre uma piscadela de olho e uma casquinada de riso, os bem-vindos
cruzavam-se, saíam numa confusão atroando a aldeia. Quando o povo chegou, botou
discurso: «Meu povo! Sois honrados com a
visita de um deputado…», e – diz-nos o narrador – uma piscadela de olho
rematou as reticências. E por ali fora, continuou, ora erguendo a bengala
ameaçadora, ora cofiando a barba inculta, gritando, misturando frases,
confundindo pontos e vírgulas. O arroz, o bacalhau, o açúcar, Dr. Afonso Costa,
Bernardino Machado, a liberdade, a honradez, o povo de Castro, saíam
misturados, em união sagrada, numa
dança macabra de palavras, de exclamações… e perdigotos! O discurso acabara e
ele, na sua voz forte, comandou: tudo para suas casas, ala…» E mais à
frente: «entramos em casa do comendador,
por umas escadas toscas de degraus altos, comidos pelo tempo e pelo uso. A
porta, muito baixa, dava entrada para a casa da escola, com carteiras
desarrumadas, esbranquiçadas do pó. No andar de cima, os outros aposentos,
muito pequenos, de uma simplicidade desconfortável, de chão esburacado e teto
baixo…»
Comia que nem um javardo! Diz o
narrador: «… fazendo sair mais a barriga,
trincando dois pastéis folhados ao mesmo tempo…» E logo a seguir: «… com um copo enorme entre os dedos, abria a
boca negra para lhe meter mais pastéis; na barba desgrenhada havia pedaços de
comida; e o bigode entrava-lhe pela boca, misturado com o vinho que ele bebia,
todo deitado para trás, a mão afagando a barriga, o colete desapertado para estar
mais à vontade.» E durante o
piquenique fala aos seus hóspedes «… num
retrato, num célebre retrato que ele tinha encaixilhado em madeira e caixa de
charutos, com o peito coberto de medalhas, e com a sobrecasaca vestida, uma
sobrecasaca muito antiga – que lhe ficava a matar – dizia
ele.» Depois do repasto, em direção ao castelo «… o comendador, que caminhava à
frente, monologava: oh! que gente! meio copinho e pronto! – eles aí estão como cachos!
olhem para mim: nem vinte canadas!»
Faleceu em casa de sua irmã Ana,
solteiro, a 16/8/1920. Solteiro, sim, mas na sua casa de Castro tinha a sua mais
que tudo, o seu derriço, de nome Isabel, que de
criada promovera a governante! Aquando da visita do deputado, ela traz café da
cozinha «dentro de uma garrafa de vinho
ordinário!» E «dentro de um cesto, apareceram as chávenas, uns copos
muito (…) grossos, quase opacos.» O administrador, depois
de provar, perguntou: «Que licor é este?!»
«Isso é café», cantarolou a Isabel,
encostada à porta da cozinha, descansando as mãos na barriga proeminente.
Apesar de ter sido um altruísta,
arranjou alguns inimigos, do grupo do Jornal de Melgaço, sobretudo por causa da
política. Até chegou a ser acusado de incompetente, como professor, e de ter a
escola suja e com animais lá dentro! Não se pode agradar a gregos e a troianos
ao mesmo tempo.
Dr. Vitoriano da Glória Ribeiro F. e Castro
Filho de Lourenço José Ribeiro Codesso de Figueiredo e Castro e de Maria Joaquina Mendes. Nasceu na Portela de Paderne a 27/8/1860. Fez exame da 4.ª classe em 1872, foi para o Liceu de Viana, ingressou, em 1890, na Universidade de Coimbra, onde teve por amigos e condiscípulos o Dr. Afonso Costa e o Dr. António José de Almeida, dois vultos gigantes da 1.ª República. Em Julho de 1895 obteve a licenciatura em Medicina. Casou a 21/9/1891 com Joaquina de Boa Memória, de 17 anos de idade, filha de Francisco José Rocha e de Maria da Conceição Queirós, comerciantes e proprietários na Vila de Monção e em Penso. Logo que concluiu o curso, abriu consultório em Melgaço, na “Farmácia Nova”, de Domingos Ferreira Araújo, sendo nomeado logo a seguir médico municipal. Fixou residência em Alvaredo, antes de 1904, pelo facto de a esposa ter herdado a Quinta da Carvalheira. Pertenceu ao Partido Progressista na monarquia; depois de Outubro de 1910 aderiu à República mas, aborrecido com esta, regressa aos seus ideais monárquicos, tornando-se num talassa moderado. Nunca abandonou a política. O seu grupo, apoiado pelo “Correio de Melgaço”, fez oposição cerrada a João Pires Teixeira, apoiado pelo “Jornal de Melgaço”. Dum lado estavam o Dr. António Augusto Durães, Luís Vicente Rodrigues, José Barbosa Martins, padre Francisco Leandro Magalhães, António Xavier de Castro (irmão do médico), etc.; do outro lado viam-se, além do Pires Teixeira, António Joaquim Esteves, da Loja Nova, Aurélio Azevedo, professor Dâmaso, etc.
Estava previsto haver eleições
para a Câmara a 5/11/1916. Então ele concede uma entrevista ao Correio de Melgaço,
dizendo, entre outras coisas: «A lista (…) é, como vê, formada pelos nomes
mais em evidência e que melhor garantia nos dão de que Melgaço prosperará sob a
sua administração.» E mais à frente: «… abateram-se as bandeiras
partidárias e formou-se esse núcleo forte de homens decididos e enérgicos, dispostos
a defender os interesses do povo, contra as arremetidas dos que só têm
procurado aumentar os impostos, sugar o pobre até ao último ceitil.» E
continua: «Com o projeto do meu amigo Dr. Durães, de coletar em dois centavos as
garrafas de água que são exportadas para o Porto, Lisboa, e mais partes,
cria-se uma receita que deve orçar entre seis e sete contos por ano. Se essa
receita não servir para outros planos grandiosos, que ele já apontou, servirá
para melhorar as condições péssimas de vida em que se encontra a maior parte
das freguesias do concelho...» As eleições, devido à agitação que
pairava na capital, foram adiadas sine die!
Um caso menos agradável para ele foi
quando a Câmara Municipal de Melgaço abriu concurso, em 1915, para um médico,
oferecendo 400$00/ano. O Dr. Vitoriano, médico e subdelegado de saúde, só
recebia 300$00! Candidatou-se, mas foi preterido a favor do Dr. Manuel Pinto de
Magalhães (viria a falecer em Melgaço a
19/10/1918, devido a ter sido atacado
pela pneumónica). A guerra entre os dois jornais, Correio de Melgaço e Jornal
de Melgaço, foi violenta por causa desse assunto. No Correio de Melgaço n.º
176, de 28/11/1915, escreveu-se: «Ó céus! – porque não baixais à terra num
momento dado e por intermédio de um planeta limpais dela esses homens,
elevando-os para essas regiões onde não mais fossem vistos do povo?»
Em 1918, quando surge a já
referida influenza pneumónica, ele é acusado pelos adversários políticos de se
fazer passar por doente para não ir para Castro. Manda para lá o Dr. Salvador,
que viera substituir o Dr. Magalhães. Mas o médico não quer ir, faz finca-pé, e
é enviado compulsivamente para Valença. Escreve o professor Dâmaso (Grilo): «Pobre
doutor! Querem forçar Sua Ex.ª a sofrer o duro inverno em Castro; para aquela
freguesia seria uma felicidade, mas a Sua Ex.ª (que pode dizer-se,
afoitamente, foi quem debelou a epidemia nesta Vila e freguesias limítrofes), seria
justo dar como prémio um inverno na serra? Maldito prémio!» E mais à
frente lembra que o concelho, em termos de saúde, ficava nas mãos do Dr.
Vitoriano, prevendo-se «o regresso e
alastramento da epidemia e daí a morte de centenas de pessoas…» (Jornal de Melgaço n.º 1226, de 15/11/1918). Não
aconteceu a desgraça prevista, pois veio para Melgaço o médico Dr. Manuel Dias
Moreira «que no ano passado tão bons
serviços prestou a este município quando grassou por aqui a pneumónica.» (Jornl
de Melgaço n.º 1262, de 14/9/1919). Em 1918 também andou por Melgaço a Cruz Vermelha,
ajudando, como puderam, a debelar a doença.
Uma carta de Penso, escrita por
um tal “João do Cabo” e publicada no Jornal de Melgaço n.º 1229, de 6/12/1918,
é aviltante! O ódio, cego e bruto, tenta destruir a imagem de um homem que era
– apenas – um ser humano, com as suas forças e fraquezas. Leia-se: [Na epidemia
bronco pneumónica «que grassava com
uma intensidade assustadora» o Dr.
Vitoriano lembrou-se do velho adágio:
«vale mais burro vivo do que sábio morto»,
fingindo-se doente e conservando-se em
casa, com as fendas bem calafetadas, a caldos de galinha. Nem uma mulher
parida, coitado! Não me admiraria
muito que (…) se recusasse a prestar
os seus serviços clínicos àqueles que não lêem pela sua cartilha de velho talassa; mas aos que solicitamente
o acompanham quando ele aspira ao mando (…) espantei-me e até cheguei a
proferir estas palavras: «é o homem
mais ingrato e pulha que eu tenho conhecido.»
E chama-lhe «filantropo de mísera fama», e põe na boca do facultativo as
seguintes palavras: «vale mais a vida de um médico do que a de
vinte ou trinta doentes que morram sem a minha assistência.» Ter
receio da morte é próprio do ser inteligente, não é sinónimo de cobardia.
Enfim, misérias! O Dr. Vitoriano foi durante anos o bode expiatório para todos
os males que surgiam.
A maior parte das pessoas doentes não
queria ir para o hospital da Misericórdia. No entanto, José Augusto Domingues
(Cabanal), castrejo, a residir em Prado, sendo atacado pela doença, solicitou a
hospitalização. Lê-se no Jornal de Melgaço n.º 1226, de 15/11/1918: «Nota-se
neste concelho uma grande repugnância que não tem nenhuma razão de ser; é a
repugnância que muitos doentes sentem em ir para o hospital, e essa repugnância
vem de se dizer que lá só dão aos doentes leite e caldo, e alguns quererem
presunto no inverno e salada no verão. Ora no hospital, quando dirigido por um
bom médico e haja escrupulosos enfermeiros, ao doente só é ministrado o
alimento compatível com as forças do seu organismo, mas o necessário para a
vida. Por isso, o nosso amigo Cabanal deu um grande exemplo que deve seguir-se:
estava ele e a mulher com a epidemia
– e como os filhos são ainda crianças
– não podendo, por isso, tratá-los, e
ainda como naquele tempo não era fácil encontrar-se uma criada, pois em Prado
estava quase tudo doente, depois de bastantes dias estar de cama, resolve ir
com a mulher para o hospital, onde se encontra ainda, mas já livre de perigo…»
Este indivíduo faleceu no Brasil em 1967,
famoso, segundo dizem.
Em 1920 os do “Jornal de Melgaço” voltam a
atacá-lo: «A enterite, que há já bastante tempo grassa neste concelho, em vez de
decrescer tende a alastrar, ouvindo-se
diariamente dobrar a finados em várias freguesias. Visto o subdelegado de saúde
parecer esquecer-se ou desconhecer a existência da epidemia, lembramos à
autoridade administrativa e Câmara Municipal de Melgaço a conveniência na
requisição dum destacamento da Cruz Vermelha e dois médicos, por ser impossível
aos dois facultativos municipais atender às necessidades de todos os
doentes, visto a epidemia ter-se alastrado quase por todo o concelho.»
(Jornal de Melgaço n.º 1303, de 29/8/1920).
Foi aposentado em 1930. Em 1948, já noutro regime, foi-lhe concedido o grau de oficial da Ordem de Benemerência, que recebeu das mãos do Governador, José Ornelas Monteiro, a 10 de Outubro. Faleceu na sua casa da Carvalheira a 6/8/1951. Em “A Voz de Melgaço” escreveu-se que o seu funeral foi espetacular. Todas as figuras importantes do concelho: militares, civis, religiosas, acompanharam o funeral, três irmandades, duas da Vila e uma de Alvaredo, e para pegar às borlas foram constituídos seis turnos. No “Notícias de Melgaço” pode ler-se: «… quem há por aí que, tendo coração, não o faça reviver a seus olhos, não evoque aquele roble ainda há pouco bem esbelto e não recorde o caminheiro infatigável e constante, percorrendo todas as freguesias, só para levar aos seus doentes, quase sempre gratuitamente, uma esperança, uma alegria, um pouco de conforto moral ou a mitigação das dores?» E a terminar: «… no Homem havia a verdadeira vocação de médico e no clínico pulsava sempre um coração nobre, bondoso e humanitário.»
Artigo publicado no Boletim Cultural n.º 6, de 2007, editado pela Câmara Municipal de Melgaço aquando das festas da cultura.
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