LINA - FILHA DE PÃ
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
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desenho de Rui Nunes |
4.º capítulo (continuação)
O relógio do tempo inexoravelmente foi marcando os segundos,
os minutos... O juiz andava radiante. A sua namorada morrera, como fora previsto,
ficara completamente livre. Tinha agora a amante jovenzinha, satisfazia-lhe
todos os desejos, todos os caprichos, era a sua escrava, só esperava que não
engravidasse, aí é que as coisas fiariam mais fino. Um dia, à hora do almoço, a
Lina dirige-se ao patrão/amante e diz-lhe:
- Santo Deus, isso não é nada bom. Estamos perante um
mau agouro. Espera mais algum tempo, pode ser uma falha natural, a gente tem
abusado um pouco nas relações, é melhor abstermo-nos durante uns dias.
- Eu adorava ter um filho seu. Com um pai assim, tão
perfeito, tão inteligente, até dá gosto ter uma criança.
- Não vinha na melhor altura. Faço votos para que não
estejas grávida. Se estiveres, tens de arranjar alguém que te faça o aborto. Eu
dou-te o dinheiro.
Ela olhou
para o amante e começou a chorar. Lavada em lágrimas, diz-lhe com convicção:
- Não quero fazer nenhum aborto. O bebé há-de nascer. Nem
que eu tenha de fugir para bem longe, para a serra, ou mesmo para o estrangeiro.
Ele ficou
furioso com essas palavras. Os seus olhos chisparam de raiva, tornando medonha a
sua fisionomia.
- Tu estás doida, ou quê? Achas que eu permitiria que
tivesses uma criança minha? Nunca! Ouviste? Nunca!
Ela chorou
copiosamente. Abraçou-se aos joelhos do seu senhor, pedindo-lhe que deixasse
vir ao mundo, o fruto daquele gigantesco amor. Ela ficaria com a menina ou
menino, não diria a ninguém que era dele.
Ele ficou
pensativo. Ela acabara de lhe dar a chave da solução, sem correr quaisquer
riscos.
- Está bem, se estiveres grávida não abortarás.
Confirma a gravidez.
Passou mais um mês e nada de menstruação. Estava
de facto grávida. Uma noite, ao jantar, ela diz-lhe, com algum receio:
- Não há dúvida nenhuma: estou de esperanças.
Ele já
tinha pensado em tudo. O seu plano não falharia.
- Tudo bem. A partir de agora vais cumprir
escrupulosamente tudo aquilo que eu te ordenar para fazer. Em primeiro lugar
aceitas o namoro daquele pelém que por aqui passa todos os dias para te ver.
Ela
rapidamente faz a lista dos seus pretendentes e diz:
- Mas esse é o mais feio de todos!
- O mais feio e o mais tolo. Trazes o palerma aqui
para a garagem, tens relações com ele, e daqui a um mês dizes ao sonsinho que
estás grávida. Como és menor, ele terá de casar contigo. Disso trato eu.
Ela ficou
pensativa. Ter de ir para a cama com aquele idiota, beijá-lo, suportar aquele
cheiro da brilhantina… Se ainda fosse o Tónio, uma bonita figura de rapaz… Mas
por aquela vida que ainda havia de nascer valia a pena sacrificar-se. O Senhor
Doutor nunca admitiria ser pai da criança. E quem era ela para o enfrentar? A
força estava do seu lado, nada havia a fazer. Podia ser que ele a conservasse
como criada, que continuasse a ser seu amásio, aquele parvo não se aperceberia
de nada, e mesmo que se apercebesse, que importava? Depois de uma certa
hesitação, decidiu-se:
- Está bem, eu aceito. Amanhã já o procuro, ele está
doidinho por mim, não vai ser difícil trazê-lo para a garagem.
- Menina bonita, assim é que é falar.
Tirara-lhe
um peso enorme da consciência. Dali a uns meses punha-se a andar, nem sequer a
avisava. Que ficasse ela, o pimpolho, o choninhas, toda aquela gente analfabeta
e rural. Ele era um homem da cidade, um cavalheiro, pertencia a outro patamar
social. Por outro lado, tinha imensas ambições: pretendia fazer um doutoramento,
chegar ao Supremo Tribunal de Justiça, ter um nome prestigiado na ciência do
Direito. Fora bom tê-la na cama, ensinara-lhe tudo que sabia sobre a arte do
prazer, ela até lhe devia estar agradecida por esses ensinamentos. Ficara quase
mestra na ciência do amor libertino.
No dia
seguinte, tal como ficara planeado, a Lina foi fazer algumas compras às lojas
do Terreiro e no regresso veio pela Rua Direita, pelo sítio onde costumava
estar o Mário, o tal que estava perdido de amores por ela. Ele dirigiu-lhe a
palavra, sabendo de antemão que não obteria qualquer resposta.
- Bom dia, Lina. Hoje estás muito bonita. Cada dia que
passa gosto mais de ti.
Olhava-a
com ternura, com aqueles olhos quase saídos das órbitas, cabelo super penteado,
os pêlos da face a começarem a aparecer.
- Tens de cortar essas cerdas da cara – observa ela, a brincar, a fim de iniciar
conversa.
Ele
arregalou os olhos, não contava que ela lhe falasse. O que teria acontecido? Um
milagre?
- Pois é, tenho de comprar lâminas; a barba começa a dar
sinais de vida.
- E podes deixar crescer o bigode, é capaz de assentar
bem no teu rosto.
- Achas? Nesta carinha tão magra, esquelética!
- Tu até não és feio, precisas é de engordar um
bocadinho.
Começa a
aparentar um certo nervosismo, olha-o nos olhos e diz-lhe:
- Logo à noite queres aparecer? O Senhor Doutor Juiz
deita-se cedo, vai sempre, depois do jantar, ler um livro, e assim podemos
conversar um pouco.
- E o cão? Olha que não é para brincadeiras!
- Eu sei, mas já me conhece bem; pessoa que esteja
comigo ele não ladra.
- Então fica combinado: estarei no portão por volta
das dez.
Despediram-se com um olhar meigo. Ele, logo que se afastou, deu pulos de
contente. Nem sequer acreditava no que lhe estava a acontecer – parecia até um
milagre. Namorar com a Lina era um sonho que já durava havia algum tempo, mas
pensava que jamais se transformaria em realidade. Por ela tudo faria – até
arranjar trabalho! Tinha de a merecer, não podia ser um zé-ninguém, estar a
viver à custa dos irmãos. Os seus pais já tinham falecido, ficara órfão aos
seis anos. Dirigiu-se a casa e, logo que entra, a irmã acusa-o:
- Então! O “fidalgo” ainda não arranjou emprego? Tem
quem o sustente, não é? A boa vida é melhor do que o trabalho, pois claro.
Correram-lhe
duas lágrimas pela face. Todos os dias tinha de ouvir um sermão dos manos, mas
ele não tinha culpa de nada. Não queria andar nas obras, trabalho duro e mal
remunerado, mas também não podia arranjar emprego público, pois só conseguira
fazer a terceira classe. Ainda tentara aprender o ofício de sapateiro, mas nada
lhe pagavam, era de graça, e muito lhe exigiam. Aqueles patrões sempre
zangados, autoritários, gostavam imenso de mandar, dar ordens a torto e a
direito, mas não entregavam um tostão em troca. Ainda lhe diziam que devia
estar agradecido, pois estavam a ensinar-lhe um ofício. Mas o que é que lhe
ensinavam? A endireitar as tachas, a engraxar uns sapatos, a coser uns chanatos,
a consertar umas botas cheias de porcaria, com cheiros nauseabundos,
insuportáveis! Todo o serviço interessante e limpo fazia-o o mestre. Virou-se
para a irmã e informou-a, em modos de pergunta:
- Sabes que os dois filhos mais velhos da senhora
Teresa vão para o Brasil?
- Onde teriam arranjado o dinheiro para o barco? – perguntou ela.
- Parece que foi um tio que lhes mandou a carta de
chamada e o dinheiro para as passagens. Quem me dera também ir.
- Tu?! Nós não temos parentes ricos no Brasil. Só se
fosses a pé! Por outro lado, com o teu apetite pelo trabalho, corriam logo
contigo. Ainda te levavam para a selva, para junto dos índios. Mas nem esses te
queriam – só tens ossos!
- Tu brincas, mas eu, se me apanho lá, até conseguia
enriquecer. Juro-te! Não vês o senhor Chico da Calçada, veio rico de lá; já
comprou uma linda vivenda e uma quinta. E o que era dantes? Um simples agricultor,
os pais eram caseiros em Galvão de Riba.
- Mas há quem diga que trabalhou como um escravo, anos
a fio. Tu és fidalgo, e calaceiro, não gostas de vergar a espinha. Também, com
esse corpo de raquítico, logo quebravas as molas!
- Isso é o que tu dizes, eu sou forte, ainda to hei-de
provar.
- Está bem, está bem, léria não te falta, mas isso não
enche a barriga a ninguém. Olha, vai mas é à horta apanhar umas couves para o
caldo verde. E traz também umas cebolas e tomate. E não demores.
O Mário
partiu a correr, o tempo caminhava velozmente. Por volta das dez tinha de
estar no portão do Senhor Juiz, as namoradas não gostam de esperar. A horta
ficava ali a dois passos. Colheu tudo o que a irmã lhe pedira e voltou para
casa. Depois de comer uma boa tigela de caldo, com um bocado de toucinho, broa e
chouriço lá dentro, saiu apressadamente. Desceu as escadas das muralhas antigas,
foi pela avenida, ainda em construção, olhou para o portão, mas a moça ainda lá
não estava. Via-se luz na cozinha. Devia estar a arrumar a louça. Logo a seguir
a luz sumiu-se. Um vulto desceu as escadas da casa, falou com o cão, com
certeza prevenindo-o da chegada de alguém estranho, e logo a seguir dirigiu-se
para o exterior. O apaixonado desceu os cinco ou seis degraus que separavam a
avenida do portão, e espera que ela o abra. Havia um luar quase apagado, sem
brilho, a lua não estava nas suas noites. Ela abriu o metálico portão, o qual
rangeu, lamuriento, e logo o viu:
- Ainda bem que vieste. O Senhor Doutor já se deitou.
Agora só sai do quarto de manhã. Estamos à vontade.
- Tu sabes que eu gosto de ti há imenso tempo, mas
sempre me rejeitaste, eu até já perdera a esperança de um dia vires a ser
minha.
- Eu gosto muito de ti, mas como sou nova não estava
interessada em namorar, foi só por isso.
- Ainda bem que mudaste de opinião, eu ia ficando doido
por tua causa.
- O melhor é entrares; aqui pode alguém ver-nos, e
depois já sabes, é um falatório dos diabos. O Senhor Doutor Juiz corria logo
comigo. // (continua...)
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