sábado, 28 de março de 2015

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS

                                                          Por Augusto César Esteves

Rien n’est plus loin de mes pensées que l’ambition de savoir tout ou de le savoir mieux q’autres ([1]).


                      De certa carta de Emile Hubner a F. Martins Sarmento


                           Oferecimento
                                                                                 
                                                                                              Esmeralda

   Porque nem tu receias a linda rival; nem eu temo se aniche no teu peito o ciúme provocado por esta amante, para mim tão cara e tão feiticeira, avalia tu própria os meus novos amores, lendo com atenção estas páginas ligeiras, escritas quase todas a teu lado. Para isso tas ofereço e, confiadamente, as deponho no teu regaço, beijando-te a mão.
                                Teu Augusto                                                                            


Conversemos leitor:

     Imperfeito e incompleto, sem dúvida, é o trabalho apresentado hoje à crítica do público. Composto de pequenos factos históricos, enfeixados sem arte e enredados com ténues fios tecidos de fantasia, mais parecerá relato a pedir encurtamento por tesoura do que descrição a largos traços da terra, da época, e das principais figuras melgacenses da revolta bairrista e patriótica de 1808. Mas como o autor não aspira à imortalidade apetecida pelo historiador ou pelo purista da língua, pois se contenta com as honras de pequeno cabouqueiro da história local, votado a carrear elementos, para outros, mais tarde, encontrarem desbravado terreno por ele achado, há muitos anos, sáfaro e ingrato, inicia-se mesmo assim a publicação de Melgaço e as Invasões Francesas. // Desaparecido do arquivo da Câmara o Livro de Actas onde fora anotado o movimento, ficou aos melgacenses um pequeno relato do feito, na História Geral da Invasão dos Franceses, escrita pelo seu contemporâneo, Dr. José Acúrsio das Neves. É ela a fonte deste trabalho. Escrita a pensar em Melgaço, serão os melgacenses quem mais facilmente pode apreender o fim desta obra e descobrir e apreciar o intento do autor. E embora o seu fundo seja exacto, por ter sido cuidadosamente alicerçado em muitas centenas de documentos, só porque versa história local, com prazer e com propósito se trasladou para antes deste prefácio aquela advertência feita por Emile Hübner a Francisco Martins Sarmento, não vão os leitores, apressadamente e de ânimo leve, julgar ouro de lei ao vulgar latão e despender muito incenso, erguendo às alturas de mestre consagrado, quem não passa de aprendiz curioso.


SOB A PATA DO CORSO

Napoleão guerreava a Grã-Bretanha numa luta de vida ou morte; ao seu carro de guerra quis jungir Portugal, tal qual tinha jungido outras nações da Europa. Como éramos uma pluma de asa de carriça a voejar sem rumo no seio das chancelarias, a incompetência e a fraqueza do Governo atraíram a Lisboa as divisões aguerridas da França. // Em 18/10/1807 o exército francês, sob o comando de Junot, atravessou a fronteira franco espanhola e em 20 de Novembro a nossa. No couce, como reforço, vieram algumas tropas espanholas. Eram aliadas. Entrou pela Beira; passou por Castelo Branco; descansou em Abrantes e, a marchas forçadas, atingiu a capital no derradeiro do mês. // Se não disparou um só tiro pelo caminho, também em parte alguma do trajecto mostrou a marcialidade das suas tropas: rotas, descalças, cansadas e famintas. Não andaram, então, émulas da Padeira de Aljubarrota à cata de franceses, embora em grande número desgarrados pelos caminhos; nem tampouco patriotas transformados em guerrilheiros abalizaram com cadáveres a trilha seguida pelos invasores. // A rapidez da marcha dos veteranos do Sargento Tempestade não causou admiração alguma à Europa em armas. O povo estava amnésico do seu glorioso passado e alheio ao dia a dia decorrente.
A Corte, para garantir a independência do país, quando não para conservar no galarim a dinastia de Bragança, fugira para o Brasil horas antes do último arranco da coluna avançada a caminho da capital. / Faltava armamento e não havia massa eficiente de tropas em Portugal; mas como no mundo existia um Corso[2], cheio de prestígio político e guerreiro, a avassalar a Europa, isso bastou para, numa Lisboa sossegada e indiferente, Junot se instalar como um bom protector do povo português, transformado, poucos dias volvidos, no anho tosquiado pelo vilão, a quem meteram a vara na mão. Pôs e dispôs a seu belo talante do país sem chefia, desprezando a possibilidade de germinarem uma atmosfera de revolta os seus actos despóticos e a actuação insolente dos seus generais.
   Tratou-nos, por isso, como escravos, pedindo-nos logo de entrada, como qualquer salteador de caminhos escuros, a bolsa ou a vida. Outra coisa não disse na proclamação de 17 de Novembro o antigo embaixador napoleónico em Lisboa, porque ele só respondia pelo seu bom procedimento se encontrasse, por toda a parte, o agasalho que lhe era devido, os víveres de que necessitasse e o habitante dos campos ficasse sossegado em casa. // Partindo do princípio – a palavra foi dada ao homem para esconder o pensamento, o antigo diplomata mascarou com as necessidades sentidas pelo país as medidas de precaução nele ditadas só pelo militar. // Decretos sucederam a decretos e editais a outros editais e, assim, foram substituídas autoridades portuguesas, atropeladas as nossas leis e desprezados os nossos costumes. Desdenhoso do nosso brio, não dando apreço ao nosso patriotismo, mandou picar ou retirar dos edifícios os escudos com as armas nacionais e recolher em depósitos as nossas bandeiras; licenciou, pouco a pouco, a maior parte das nossas tropas e fez recolher em Lisboa as suas armas. // Começando por exigir de comerciantes um empréstimo forçado de 800 contos, acabou por extorquir-nos, em nome do seu Imperador e como indemnização de guerra, o tributo de cem milhões de francos, ou seja, o de quarenta milhões de cruzados. Os seus oficiais, seguindo-lhe as pisadas, tudo nos requisitavam e os soldados, imitando a rapacidade dos chefes, iam ensacando tudo quanto de valor encontravam à mão de semear. // Os espanhóis comparsavam bem com os franceses; onde estavam não se distinguiam da gente de além-Pirinéus, porque eram o seu vivo retrato, retocado, no entanto, para apresentar uma que outra vez aspectos de gentileza. O general Tarranco, entrando por Valença, correu a ocupar o Porto militarmente.
   Fê-lo em 13/12/1807 e, nesse mesmo dia, mandou afixar uma proclamação, em que havia rosas e espinhos. Pelo fim do ano guarneceu com destacamentos das suas tropas algumas praças de Entre-Douro e Minho; mas a de Melgaço não recebeu qualquer guarnição militar. Se alguma aqui esteve, passou como a sombra, sem ficar na terra o mais pequeno sinal: nem um morto, nem um casamento, nem um filho e ainda bem. // Tarranco era inteligente, militar brioso e político atilado, e tudo isso mostrou não espezinhando o norte de Portugal; não se imiscuindo na actuação das autoridades nortenhas, nem tão pouco fazendo tábua rasa das velhas leis e dos antigos costumes vigentes na região ocupada pelo seu exército. Isso deveu concorrer para que as armas nacionais esculpidas nos edifícios públicos de Melgaço não fossem picadas, porque as autoridades locais limitaram o cumprimento da ordem ao seu escondimento passageiro, por meio de uma camada de barro amassado com cal. Mas a maioria das escopetas das ordenanças lá se foi para o Porto e, atrás delas, as rendas públicas do concelho.
   Salvou-se apenas a bandeira do Senado, certamente por mostrar só as armas de domínio de Melgaço. // Por morte de Tarranco, em 26/1/1808, ficou a ocupar o norte Carrafo e quando este, em 9 de Abril, marchou para Lisboa com as suas tropas, substituiu-o Ballestá. Como, porém, a Espanha de aliada de Napoleão se ia transformando em vítima, Abril chegou à península prenhe de ameaças para as armas francesas. Em Portugal protestava-se; e se do protesto se não passava à violência era por falta de cabeças dirigentes. E Maio trouxe manifestações populares hostis em Espanha e em Portugal: em Madrid, abafadas em sangue; e no Porto, impunes, felizmente.
   Nesta cidade, em 25, fez-se o primeiro pagamento da contribuição de guerra. Se, por qualquer capricho da Fortuna, não ficou no Porto para os espanhóis, naqueles primeiros carros, como lembrança de Melgaço lá ia também alguma coisa, a fim de ser conduzida para França, no fim da campanha, graças à malfadada Convenção de Sintra. E isto se escreve apesar de ninguém saber onde param os termos de entrega das pratas das igrejas, capelas, confrarias e irmandades do nosso concelho, termos lavrados na primeira quinzena do mês de Março, ao abrigo das instruções publicadas no dia 27 do mês anterior, na casa do tesoureiro da décima, onde os culturais[3] foram obrigados a levar aqueles bens igrejários confiados à sua guarda, para serem relacionados e pesados na frente do Juiz de Fora da comarca, e isto se escreve e isto se afirma, porque na falta de tais documentos, guarda-se na minha casa memória de outra espécie. Com toda a simplicidade, mas a rescender tanto limpeza de mãos como receio das consequências susceptíveis de surgirem num futuro incerto, ainda e sempre possível naqueles tempos de invasão estrangeira, se acaso não representa somente o simples protesto contra a forçada entrega ao invasor das coisas de Deus di-lo um velho Livro de Actas duma velha confraria da Vila – a do Espírito Santo, fundada aí por 1578 e há muito desaparecida para os actos do culto.
Ouçamos a voz longínqua: «Aos seis dias do mês de Março de mil oitocentos e oito anos por ordem do Governo deste nosso reino se remeteu para a cabeça da comarca a prata desta confraria que foi a cruz com sua haste, o caldeiro com seu hissope, umas galhetas com seu prato, um turíbulo com sua naveta, e a vara do reverendo Prior, que tudo pesou doze arráteis e meio e meia quarta, digo e meio, e uma quarta. E determinamos que para o transporte da dita prata visto as ordens determinarem ser à custa da confraria, o tesoureiro desta satisfará o importe do seu transporte que se lhe levará em conta. E, para constar, - se fez este termo, que assinamos. Em Mesa do dia, mês, ano ut supra.

O Prior Pedro da Ribeira Araújo Castro
O Padre Francisco António da Cunha
O Eleito o Padre João Manuel Durães
O Promotor o Padre Manuel Álvares Torres
O Procurador o Padre José Lopes

          E isto sabia-se aqui na terra, era público e era notório. Comentava-se. Havia más vontades, porque o conhecimento da exigência francesa chegara a todos os eidos. Mais: a cada canto ouviam-se ameaças e se houvesse uma distracção, se a pata do Corso, por qualquer circunstância fortuita, aliviasse a pressão esmagadora, o povo de Melgaço imitaria o Porto e faria a sua manifestação hostil. // Portugal inteiro era um molosso acorrentado por uma guita. Se a guita rebentasse, mordia. Rebentou-a no Porto a Espanha, proporcionando ao continente português o ensejo de um levantamento em massa. Em Melgaço foi ainda um espanhol quem veio comunicar o sucesso e não precisou de encarecer a oportunidade oferecida pela Providência à Vila mais setentrional do país, sedenta de ressegurar nas suas mãos as guias do seu destino.
          Se houvesse vindo a incitar à revolta, talvez tivesse deixado tristonha sombra a empanar o brilho da jornada. No Porto, capital do norte e cabeça de metade do país, representando Junot estava o general Quesnel, a guardar, feito cão de fila, o general Ballestá. Este, recebendo ordem da Junta Revolucionária da Galiza, reuniu as suas tropas e no dia 6/6/1808, prendeu o general francês e o seu Estado-Maior, aprisionou a pequena guarnição francesa do Porto e enquadrando esta entre as baionetas dos seus soldados, entregou Quesnel aos portugueses. Confiando na sua boa sorte, abalou depois para a grande aventura de Espanha.
           O Senado da capital do norte, forçado pelos patriotas, marcou para o dia seguinte as cerimónias da revolta; mas o receio da vingança de Junot, avolumando-se nas sombras da noite, fez esfriar o entusiasmo e abortar a revolta. Havia de estalar alguns dias depois do levantamento de Melgaço.




[1]  Tradução dos Coordenadores da Edição das Obras Completas: «Nada está mais longe de meus pensamentos do que a ambição de tudo saber, ou sabê-lo melhor do que os outros.»
[2] Napoleão Bonaparte. Imperador dos franceses. Nasceu em Ajácio, Córsega, a 15/8/1769 e faleceu na ilha de Santa Helena (Atlântico sul) em 5/5/1821. Sobre ele poder-se-iam escrever milhares de páginas, mas a sua vida e feitos andam espalhados por centenas de livros e filmes, por isso não vale a pena estar aqui a desenvolver a sua biografia. 
[3]  Leia-se cultuais — aqueles que tratam do culto.

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