quinta-feira, 19 de março de 2015



JÁ DECORRERAM DOIS ANOS


        A morte é a coisa mais certa que os seres vivos têm, mas algumas mexem mais connosco do que outras. O Acácio era uma pessoa especial: bem-disposto, um humor refinado, mas educado, com uma anedota sempre na ponta da língua, que contava com prazer, contagiando o seu auditório, um coração de oiro. Jamais o ouvi dizer mal de quem quer que fosse. A sua terra, a sua família, os amigos, e a arte, a sua arte sublime, preenchiam-lhe na totalidade a vida. Do seu pai, Amadeu Maria Dias, herdara o espírito folgazão, mas inócuo, e o talento artístico; da sua mãe, Maria Fernandes da Silva, herdara a veia lutadora, a personalidade forte e aguerrida.
       Acácio Caetano Dias nasceu na freguesia de Prado, Melgaço, a 11/3/1935. Depois da 4.ª classe arranjou emprego no Grande Hotel do Peso, mais conhecido por “Hotel Figueiroa”. Graças a um hóspede, que viu nele o menino inteligente e perspicaz, dali seguiu para o Porto, para o colégio Almeida Garrett, onde trabalhou como ajudante de despenseiro e posteriormente como 2.º cozinheiro. Da cidade do Porto muda-se para Lisboa, conseguindo colocação numa oficina do Martim Moniz e passados uns dias nos Estaleiros da CUF, primeiro como apontador e mais tarde como caldeireiro de cobre.
         Casou a 18/9/1958, na igreja de Santiago, Lisboa, com Teresa da Conceição Vilares, companheira de todos os momentos bons e menos bons, senhora que o tratou com amor e carinho até ao seu último suspiro. Após o casamento, agora com novas responsabilidades, procura outro emprego, melhor remunerado. O Banco Nacional Ultramarino, agência de Cascais, admite-o em 1959 como apontador, passando depois a serralheiro. Trabalhou também na Biblioteca do Banco e no Museu, não como bibliotecário ou museologista, mas sim a elaborar um inventário de tudo aquilo que existia. A seguir foi colocado no Armazém de Móveis. Devido à sua habilidade nata, à sua brilhante sagacidade, todos o procuravam para resolver este ou aquele problema mecânico que ia surgindo. Depois de longos anos de responsável labor, aposentou-se por volta de 1995.
          Ao longo da sua existência foi aparecendo paulatinamente a sua obra de escultor, apresentando-se em diversas exposições, conquistando prémios, vendendo muitas peças, quer a portugueses quer a estrangeiros, ofertando outras a parentes e amigos, conservando algumas na sua casa da Parede, concelho de Cascais, onde tinha a sua oficina. Conviveu com os seus pares, que sempre o trataram com respeito e admiração, apesar da sua humilde origem. «Na arte somos todos iguais», dizia ele. Não frequentara escolas superiores, é certo, mas os seus conhecimentos adquirira-os ele na maior universidade que existe: a vida, o trabalho intenso, a observação atenta, a curiosidade insaciável. De que vale ter diplomas académicos se depois se adormece à sua sombra e nada se faz? O Acácio foi um autodidata no bom sentido da palavra; claro que a autodidaxia não está ao alcance de todos, pois exige disciplina, imensa vontade, e aquele dom que nasce com a pessoa, que alguns não aproveitam apenas por preguiça crónica. Outros bons exemplos, só falando de melgacenses, são Manuel Igrejas, que desde criança começou a revelar a sua apetência pela arte, criando ao longo dos anos uma obra admirável, e o saudoso, e tão esquecido, Óscar Marinho, cujas miniaturas em metal nos deslumbram, as quais deviam figurar num museu para todos nós as podermos apreciar.
           Em Melgaço há poucas obras artísticas do Acácio: somente, que eu saiba, a escultura o “Bombeiro”, em tamanho natural, à entrada do quartel dos Bombeiros Voluntários, que ali está, desafiando o tempo (*). Eu sempre esperei que a Câmara Municipal, através da Casa da Cultura, o convidasse para expor algumas das suas peças, mas isso nunca aconteceu. Ainda há dias, em Braga, um conterrâneo me dizia: «na nossa terra natal não se liga muito aos naturais, mas sim ao de fora», e deu-me uma lista de exemplos que me deixou a meditar sobre o assunto. Claro que ele se referia às autoridades administrativas. Eu respondi-lhe que provavelmente isso acontecerá em todos os concelhos do país, não deve ser exclusivo de Melgaço. Por outro lado, disse-lhe eu, os artistas não buscam a fama, apenas desejam que a sua obra seja admirada e sobretudo compreendida. Quantos indivíduos, continuei eu, estão à altura de criticar técnica e cientificamente as obras de arte no âmbito da escultura, pintura, desenho, literatura, cinema, fotografia, etc.? Certamente poucos. A maior parte dos seres humanos gosta mais de desporto e de música popular, entretenimentos menos exigentes do ponto de vista intelectual. Tudo bem, mas quanto a mim, devia-se diversificar os gostos, alterar alguns hábitos, mas isso já depende de cada um de nós. Há uma definição de cultura assaz curiosa: «A cultura é tudo aquilo que resta depois de esquecermos o que tínhamos aprendido antes.» Talvez seja assim, talvez não seja. O certo é que cada vez há mais oportunidades nesta área, e poucos as aproveitam.              
       O Acácio, que nunca foi um Hércules fisicamente, a partir de certa altura começou a ser visitado por doenças, que ele ia recebendo com cortesia, sem nunca dar parte de fraco. Submeteu-se a algumas cirurgias, a tratamentos mais ou menos dolorosos, ingeriu “toneladas” de medicamentos. Em Novembro de 2012 foi internado de urgência no hospital dos SAMS, em Lisboa, devido a problemas de coração, e com uma terrível pneumonia. Ligaram-no a uma máquina. Médicos e enfermeiros tudo fizeram para que o doente voltasse a ser o grande contador de histórias, o brincalhão que fora, o Acácio sorridente e feliz. A esposa, a filha Clementina, o genro, as netas, Inês e Rita, sempre que podiam estavam ali, a seu lado, esperando o milagre que não surgiu. A uma quinta-feira, 7/3/2013, a cruel parca veio buscá-lo; o seu corpo foi sepultado no cemitério de Trajouce, São Domingos de Rana. Lembrá-lo-emos sempre com saudade e consideração.       
      Nota: este texto foi publicado em «A Voz de Melgaço» alguns dias depois da sua morte
                                                                                                         
      (*) Posteriormente soube que o Acácio oferecera uma pequena escultura em metal da Inês Negra à Câmara Municipal de Melgaço, a qual, segundo me disseram se encontra no antigo quartel dos BVM. 


                                                                  Joaquim Rocha

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