sexta-feira, 27 de março de 2015

LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

Prólogo


     Olá! Eu sou o Cândido da Matilde. Já tenho alguma idade, cabelos brancos, algumas rugas. Todos os idosos, salvo raras exceções, têm uma história para contar. Eu também vou contar uma: – a minha. Como quase todas as estórias de gente humilde, é triste, muito triste, por vezes atingindo o limiar do trágico; descreve a minha vida, enquanto jovem, antes de ingressar no serviço militar – e tudo isso aconteceu entre os anos quarenta e setenta do século XX. Tive a desdita de nascer onde nasci, num lugar recôndito do Alto Minho, lugar fronteiriço com a vizinha Galiza, na cova do lobo, onde o contrabando era dono e senhor, e onde a lei era diariamente driblada; tive também a desdita de não ter pai legítimo, isto é, ser filho de pai incógnito, e ter, por minha desgraça, uma mãe alcoólica, uma seguidora fiel de Baco, grande consumidora do vinho de Noé, o primeiro a fabricá-lo e a bebê-lo em excesso, por conseguinte o primeiro bêbado da história da humanidade, segundo o antigo testamento.
     Padeci muitíssimo: tive em nossa casa um bruxo, amante da minha mãe, autoritário, um homem que falava o dialeto dos ciganos, pois segundo parece com eles tinha percorrido a Península Ibérica. A minha progenitora aderiu ao espiritismo e frequentava todas as casas onde houvesse velórios para ali falar de mortos e de almas de outro mundo. Apoderou-se de mim o terror, dominou-me por completo, os traumas foram crescendo comigo, mas às tantas resignei-me à minha pouca sorte, aceitei os desígnios dos céus e dos deuses. A minha infelicidade foi tão grande, os astros tão desfavoráveis me foram, que a própria namorada me abandonou para casar com um emigrante muito mais velho do que ela.
     Situo a narrativa no espaço de vinte anos, sem obedecer a regras muito precisas, ou a preciosismos desnecessários; deambulo pelo tempo de duas décadas ao sabor da memória, minha testemunha e confidente, e minha arca de recordações. A partir desse marco cronológico revivo as minhas lembranças amargas, extasio-me com a vida, apesar de ela me ser adversa, ziguezagueio por aqui e por ali. Por estranho que isso vos pareça, eu não me sentia magoado com ninguém; achava que cada um de nós surgia no mundo já com o seu destino traçado, tudo estaria escrito no “Grande Livro das Datas”, não poderia fugir-lhe, e pensava, ingenuamente, que a revolta levaria ao caos. Era nessa altura um filósofo do ruralismo, um pobre diabo que ninguém levava a sério. Em 1967 ingressei na vida militar. A partir dessa data nada mais vos contarei; talvez noutra ocasião.
     Não quero abusar da vossa paciência e amabilidade, do vosso precioso tempo, por isso vou imediatamente pôr-vos em contacto com as odiosas e simpáticas personagens, levar-vos ao encontro de situações que vos parecerão familiares, como se as tivessem vivido, ou pelo menos presenciado a curta distância, mas que da vossa realidade pouco mais têm do que a roupagem, pois embora a maior parte dos factos narrados possam ter acontecido, para mim aconteceram sem dúvida, muito daquilo que vão ler a seguir é produto da minha imaginação e da prodigiosa fantasia, à mistura com a minha, e apenas minha, realidade, como se eu recuasse no tempo, dentro da tal máquina ainda não usada, mas já inventada, e engendrasse toda uma trama rocambolesca e absurda para depois pegar na pena e a descrever para os meus leitores. Ninguém se iluda: a realidade, tal como ela foi, jamais se submeterá à ficção, não é passível de descrição, seja de que tipo for, porque escapam sempre os pormenores.               
     E a prova do que afirmo é visível na chamada história ciência: cada historiador escreve e reescreve a sua versão da época em estudo. Se a realidade fosse descritível, só poderia haver uma única versão – não é verdade? Mas aqui, nesta novela, ou pequeno romance, trata-se de ficção virtual, quase todas as personagens foram criadas, a fim de servirem a minha história, e se confrontarem com as autênticas e genuínas. Todas as situações, todo o enredo, as intrigas, as infidelidades e as traições foram tecnicamente – mal ou bem - elaboradas. O ambiente natural e psicológico é apenas o cenário onde decorre todo o espetáculo da vida, a feira de todas as vaidades mundanas. Costuma-se avisar: «qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.» Aqui não: o verdadeiro e o possível passeiam juntos, não de braço dado, mas quase sempre de costas voltadas, como se a vida e a não vida pudessem coexistir no mesmo mundo de ideias e ideais, e não de ossos e sangue.
     Percorram então comigo os carreiros sinuosos e agrestes da minha narrativa:      

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