quarta-feira, 11 de março de 2015

                             


TOMÁS DAS QUINGOSTAS 

                                                                   ... continuação

      3 – Ladrão e guerrilheiro

     Depois do enquadramento histórico, levemente acima esboçado, necessário para se compreender alguma coisa sobre aquela época agitada, poder-se-á perguntar: como se chega a bandoleiro? Que eu saiba, ninguém nasce com uma profissão ou atividade, nem com uma arma na mão, montado num magnífico cavalo. À medida que foi crescendo, o espírito do rapaz foi sendo influenciado pelos acontecimentos.
     Não é em vão que se ouve contar aos mais velhos que Portugal tinha sido há pouco tempo invadido por tropas francesas, que nos tinham usurpado Olivença em 1801, que nos tinham pilhado bens (até sagrados e artísticos), e assassinado imensas pessoas – militares e civis, além dos inúmeros feridos e refugiados que tais incursões provocaram. As crianças querem tornar-se adultos e vingar-se. O sentimento de pátria é muito forte nos jovens, sobretudo naqueles que são ultra sensíveis, como, julgo, seria o Tomás.
     Não é em vão que aos doze anos (1820) se toma conhecimento de uma revolução, de índole liberal, cujos ideais foram trazidos para o país pelos soldados estrangeiros, os mesmos que nos tinham agredido! Estas aparentes contradições baralham qualquer mente, sobretudo as mais tenras, as mais imaturas.      
     Não é em vão que se assiste a uma mudança de regime político: do absolutismo passa-se para o liberalismo, e deste para o anterior, num prazo relativamente curto. Um rei todo-poderoso passa a reger-se por uma constituição, a prestar contas ao “povo”, o que jamais fizera!
     Não é em vão que se aprende a ler: às mãos do jovem Tomás devem ter chegado alguns escritos revolucionários que ele teria lido sofregamente. O seu caráter, a sua personalidade, estava em formação. O seu mundo estava em guerra, era necessário agir, participar. Viver em São Paio de Melgaço não significava estar ausente, ou noutro planeta.
     De acordo com estas linhas de pensamento, e tendo em conta o contexto agitado em que o país mergulhara, é provável que o Tomás tenha saído de Melgaço, ainda novo, e se tivesse alistado como voluntário no quartel de Valença, a fim de ser colocado onde mais dele precisassem. Nada se pode afirmar para esta fase, visto não existirem documentos a comprová-lo (ou, se existem, não se conhecem); porém, o certo é que ele aprendeu a montar, a manejar uma arma, a comandar homens, embora a maioria deles rudes e indisciplinados. Isso não se aprende nas Quingostas!
     Há outra hipótese: ter servido um caudilho galego, daqueles que lutavam por Carlos (2), pretendente ao trono de Espanha. Ou ainda uma terceira: ter ingressado numa súcia de ladrões, que abundavam naquela época.
     Quer aprendesse num lado, quer noutro, o que conta é que comandou uma quadrilha mais ou menos numerosa, conforme os altos e baixos do seu turbulento percurso. 
     Pelo relato da mãe, feito depois da sua morte, verifica-se que entre ele e a família existiu de facto uma rutura, sobretudo moral e religiosa, embora mantivesse uma estreita ligação, não sei se criminosa, com duas das suas irmãs.       
     Acerca do Quingostas podem tecer-se duas perspetivas: a histórica e a tradicional. A primeira apoia-se em documentos; e a segunda na tradição, naquilo que se disse dele ao longos destes duzentos e tal anos. Aliás, a segunda perspetiva já se transformou em lenda! A primeira corresponde à verdade dos factos; a segunda está eivada de fantasia, de anedotismo, onde a imaginação popular se desenvolveu até à exaustão.
     O que sabemos atualmente sobre o Tomás radica em quatro fontes:

1.ª - Dr. Augusto César Esteves (1889-1964). Devido à sua profissão, teve acesso a alguns documentos antigos, espalhados um pouco por todo o lado, mas que ele juntou, e deles se serviu para escrever sobre algumas figuras históricas. No caso do Tomás, apoiou-se sobretudo no processo de inventariação que decorreu depois do passamento do facínora. A mãe do Quingostas, já viúva, aceitou a herança aquando da morte do filho, e em consequência dessa anuência teve que pagar a todos os credores do defunto. O processo decorreu, como é óbvio, no tribunal de Melgaço e por lá ficaram esses papéis à espera que alguém um dia os lesse de novo.

2.ª - Dr. Francisco Cyrne de Castro (3). Suponho que foi no jornal «Aurora do Lima» que ele publicou o seu estudo sobre o Tomás, ao qual deu o título “Notícias do Tomás das Quingostas”.        

3.ª - Dr.ª Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira. Na sua tese de doutoramento, intitulada «Résistances populaires au libéralisme au Portugal, 1834-1844», defendida na Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne, em 1995, inseriu um capítulo «Banditismo e política no Alto Minho (1834-1840)», no qual sobressai a figura do Quingostas. Esse capítulo foi traduzido para português e está publicado na revista «Ler História» n.º 36, de 1999, páginas 125 a 175. É um excelente trabalho de investigação, embora com alguns erros à mistura, servindo-se a autora das fontes já mencionadas, mas sobretudo dos documentos do Arquivo Histórico Militar, sito na capital do país. Foi sem dúvida uma grande surpresa para mim: uma senhora lisboeta, “alfacinha”, (salvo erro) escrever com lisura, e imparcialidade, sobre uma figura tão desprezada pelos historiadores nacionais – é de louvar.    

4.ª - Joaquim A. Rocha. Há já muitos anos que eu me venho debruçando sobre a vida e feitos do famigerado Tomás das Quingostas. Quando era criança, os mais velhos contavam-me coisas fantásticas sobre ele: roubava aos ricos, dava aos pobres (inspirado certamente no “Robin dos Bosques”), escondia-se em minas, usava alçapões para as suas estrambólicas fugas, etc., e eu então prometi a mim próprio saber mais sobre essa personagem mítica, quase lendária. Uma das minhas descobertas, que as outras fontes ignoraram, foi ter encontrado o seu assento de batismo. A Dr.ª Maria de Fátima quase acerta com a sua idade, ao escrever que o Tomás andaria à volta de trinta anos quando morreu, em 1839. Mas por que não foram ao Arquivo Distrital de Viana indagar sobre o tal assento de batismo? Eles provavelmente foram, mas procuravam em Tomás Joaquim. Eu tive sorte e persistência. Como na altura residia em Lisboa e não me dava muito jeito ir a Viana, alguém me sugeriu que consultasse a Biblioteca da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, cujos membros são conhecidos por mórmons; ali encontrei o que desejava. É de facto um enigma ter preferido usar o nome de Tomás Joaquim em lugar de Tomás de Aquino. Ter-lhe-ia alguma vez passado pela cabeça que no futuro iria confundir os seus biógrafos? O motivo principal quanto a mim terá a ver com a sua zanga com a igreja católica, sobretudo com os padres, que no púlpito pregavam uma coisa e no dia-a-dia cometiam tantos pecados quanto os outros! Usar nome de santo não se coadunava com a sua maneira de ser e estar. 
                                                                continua...

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