quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

QUADRAS AO DEUS DARÁ

Por Joaquim A. Rocha




833

 

No sítio onde trabalhei

Dominava um tiranete;

Julgava-se duque ou rei,

Marquesinho do sorvete.

 

834

 

Senhora Lúcia Ribeiro

Não gostei do que escreveu;

Conheço a tinta p’lo cheiro,

E o mar pelo escarcéu.

 

835

 

Não perturbem minha guerra,

Deixem-me lutar sozinho;

Eu sou um lobo da serra,

Sem família nem vizinho.

 

836

 

O meu mundo solitário

Impressiona muita gente;

Egoísta, perdulário,

Mais triste do que temente.

 

837

 

Não aprendi a dançar,

Nunca soube bem porquê;

Tudo tem um começar,

Se tiver par por mercê.

 

838

 

Nunca frequentei bailes,

Na ingente mocidade;

Não tinha casaca, xailes,

Só pudor da castidade.

 

839

 

O meu cérebro volátil

Percorreu o universo;

O que levei é portátil,

Cabe num humilde verso.

 

840

 

Não vi deuses nem diabos,

Nos meus sonhos de criança;

Não vi as rosas nem cravos,

Nem a arca da aliança.

 

841

 

Não enxerguei Iscariotes

Nem Jesus de Nazaré;

Só vi o senhor Pinotes

A falar com o Caré.

 

842

 

Vi o “Pivão” altaneiro,

Com seu metro e noventa;

Não tinha ouro ou dinheiro,

Nem estudos de sebenta.

 

843

 

Também lobriguei “Caniça”

A namorar com Joana; 

Nas mãos pequena salchicha,

Era a festa, a gincana!...

 

844

 

A cegonha traz bebés

De França ou Inglaterra;

Percorre mares, marés,

Ignorando paz ou guerra!

 

845

 

Vim no bico da cegonha

Dum país assaz distante;

Crescido, sinto vergonha

Por ser um pobre atlante!

 

846

 

Não me pareço contigo,

Sinto-me um ser estranho;

Sou fruto dum vil castigo,

Fui expulso do rebanho!

 

847

 

Eu sou bichinho do mato,

Vivo só em pensamento;

Sou pobríssimo regato,

No meu leito há tormento.

 

848

 

Falam-me em felicidade.

Nunca soube o que isso era;

Fugi do amor, da saudade,

Arredio, como a fera.

 

849

 

Vivi só, desemparado,

Perdido na solidão;

Nunca deixei ser amado,

Pedra fui, sem coração!

 

850

 

Namorei como um gaiato,

Um rapazola qualquer;

Fui tigre, lobo, um gato,

Desfolhei jovem mulher.

 

851

 

Andei pelo Cais do Sodré

Em busca das andorinhas;

Miro Bares, Cabarés,

Tabernas e mil tasquinhas.

 

852

 

Toda a noite a vaguear

Pelas ruas da amargura;

Veem-se vultos a fumar,

Sedentos por levedura.

 

853

 

Luzes semiapagadas,

Cheiros maus, nauseabundos;

Palavras grossas, facadas,

Outros lugares, mil mundos.

 

854

 

Fugi de Lisboa um dia,

Desiludido, cansado;

Tudo ali é correria,

Desespero, triste fado.

 

855

 

Há quem diga bem de ti

Ó cidade borboleta;

Em Lisboa ninguém ri,

Ajuizado ou pateta.

 

856

 

Ruas escorregadias,

Estacionamento à toa;

Prédios altos, porcarias,

Cheira mal, cheira a Lisboa.

 

857

 

Ciganos por todo lado,

Vendem calças, camisolas;

A Severa canta o fado,

Ao som dumas castanholas.

 

858

 

Quebrei a minha promessa,

Pois agora bem me lembro;

Pagá-la não era pressa,

Naquele mês de Dezembro.

 

859

 

Fugiu de mim o Cupido,

Levou as setas douradas;

Eu fiquei como esquecido

No meio das vis manadas.

 

860

 

Passaram meses, um ano,

Ela do espaço voltou;

Montava forte garrano,

Com belas asas de grou.

 

861

 

Vinha vestida de branco,

Com a cor da virgindade;

Eu, dentro de mim me tranco,

Roendo tempo… saudade.

 

862

 

Vivermos eternamente

É um desejo profundo;

Quero eu, quer toda a gente,

Não partir prò outro mundo.

 

863

 

A morte, essa maldita,

Leva-nos contra vontade;

Vai a Marta, vai a Rita,

Apesar da sua idade.

 

864

 

Fala-se em puro equilíbrio,

Em desgaste natural;

Para mim é um ludíbrio,

Um desígnio sepulcral.

 

865

 

Fiz tirocínio ubérrimo,

Em escritórios-prisão;

Cada dia mais paupérrimo,

Sem escudo ou tostão.

 

866

 

O deus escreve direito

Por linhas estreitas, tortas;

Eu, com juízo escorreito,

Escrevo por linhas mortas.

 

867

 

Escrever bem é uma sorte,

Privilégio sem igual;

Eu sou escritor do norte,

Não escrevo bem nem mal.

 

868

 

Mandaste-me um abraço

E eu já retribuí;

Manda-me agora o cachaço

E também um bisturi.

 

869

 

Não há machado que corte

A vontade de viver;

Apenas a feroz morte

É capaz de nos vencer.

 

870

 

Ó meu caro panaché,

Tanta piada eu te acho;

Pouco álcool, muita fé,

Mas se te bebo emborracho!


// continua...

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