sábado, 4 de janeiro de 2025

QUADRAS AO DEUS DARÁ

Por Joaquim A. Rocha 




// continuação de 11/11/2024.


626

 

Se eu tivesse vinte anos,

Soubesse o que hoje sei,

Não sofrera desenganos,

Não passara o que passei.

 

627

 

Não podes voltar atrás,

Seja no tempo ou espaço;

O sonho é falso, falaz,

Tu caíste no meu laço!

 

628

 

Quando deus criou o mundo

 Estava eu a dormir;

Dormia sono profundo,

Sonhava com o devir!

 

629

 

Não me faças perder tempo

Meu colega, meu amigo;

Eu nem sequer tenho tempo

Para coçar meu umbigo!

 

630

 

Tenho nova profissão,

Agora sou curador;

Só me falta ser ladrão,

Ou bobo de grão senhor!

 

631

 

Aprendi de sapateiro,

Mas não passei de aprendiz;

Empregado de barbeiro,

Lacaio de Dom Dinis.

 

632

 

Sonhei um dia ser rei,

De um lugar, ou aldeia;

Só agora me lembrei,

Que sonho não é ideia. 

 

633

 

Não me chamem general

Ou coisa que se pareça;

Chamem-me melro, pardal,

Coisa que eu bem mereça.

 

634

 

Jogador de futebol

Durante meses e anos;

Só ganhei raios de sol

E injúrias dos maganos.

 

635

 

Entrei na manga do Cristo,

Ali pròs lados d’Almada;

Feita de barro e de xisto,

Perfila-se como armada!

 

636

 

Jesus Cristo, santo e rei,

Dos judeus e de outros povos,

Não teve reino, nem lei,

Mas criou países novos.

 

637

 

Jesus percorreu o mundo,

Em companhia de Pedro;

Viu tudo: belo, imundo,

Falou com Sócrates, Fedro...

 

638

 

Jesus usou uma coroa

De tojos, rijos espinhos;

Mas quando veio a Lisboa,

Trocou-a por ricos vinhos.  

 

639

 

Jesus já se foi embora

A fim de abraçar seus pais;

Ninguém sabe onde mora,

Diz-se, no céu dos pardais!

 

640

 

Dizem que o inferno existe,

Lá longe, além do norte;

Para mim, cheira-me a chiste,

A mil receios da morte!

 

641 

 

Não me falem na vil morte,

A mim, que nunca nasci;

Sou filho da triste sorte,

Dum fado que não vivi!

 

642

 

Andei na Terra perdido,

Ao sabor de brutas ondas;

Fui por tubarões mordido,

Vítima de feras mondas.

 

643

 

Ai quem me dera viver

Cem ou duzentos mil anos,

Com saúde, sem sofrer,

Arrelias ou enganos.

 

644

 

Eu nasci na primavera,

Cheirando ao quente verão;

Desci das nuvens, na esfera,

Embrulhado num roupão!

 

645

 

Não tive madre, nem pai,

Sou filho duma aventura,

Entre balanta e tai,

Entre o mal e amargura.

 

646

 

Já morei na Mouraria,

Na calçada de Carriche;

Aqui embarquei um dia

Na adoração dum fetiche!

 

647

 

O maldito fetichismo

Destruiu a minha vida;

Atirou-me prò abismo,

Para a zona proibida.

 

648

 

Caiu do céu aos trambolhões

Meu tristíssimo destino;

Vinha cheio de ilusões,

Para enganar o menino!

 

649

 

Uma queda é trambolhão

Quando nos foge equilíbrio;

O cérebro e coração

Sofreram forte ludíbrio.

 

650

 

Passei fome, passei sede,

Comi mil côdeas de pão;

Tal peixe, em uma rede,

Vi a morte de antemão!

 

651

 

Não sei que espécie é a nossa,

Que anseios em si encerra;

 Se tem a paz, dela troça,

Só vive feliz na guerra!

 

652

 

A Confraria do Badalo

Nasceu no Minho, em Braga;

Ouvi-los é um regalo,

Sob o dorso de uma fraga!

 

653

 

Morreram alguns confrades,

Sobretudo os mais antigos;

Ficaram doutores e padres,

Pra elogiar seus amigos.

 

654

 

Não adianta lutar

Contra o destino e afins;

São fortes como o mar,

E frágeis tais serafins.

 

655

 

Percorri o meu passado

Em busca de uma imagem,

Mostrando o meu triste fado,

A minha feroz voragem.

 

656

 

Não me chames “meu amor”,

Isso é falso, é mentira;

De ti só me veio dor,

Ódio, embrulhado em ira!

 

657

 

A nossa espécie é cruel,

É máquina destruidora;

No seu corpo só há fel,

A caixa da vil Pandora!

 

658

 

Da caixa saiu a esp’rança,

Que nos guia na desgraça;

Dá ao fraco segurança,

Ao forte faz-lhe pirraça!

 

659

 

Não sei o que mais desejo:

Se fugir prò universo,

Se dar-te na boca um beijo,

Se transformar-te num verso!

 

660

 

O homem já foi à lua,

A Saturno e a Marte;

Só não foi à minha rua,

Ver lixo por toda a parte!

 

661

 

A Câmara não se interessa

Pelas ruas da cidade;

Nas eleições há promessa,

Mas bem longe da verdade.  

 

662

 

Os passeios da cidade

Servem pra estacionar;

Sejam novos, com idade,

São todos pra desprezar.

 

663

 

Há nas ruas cem mil carros

Muito mal estacionados;

São venenos, geram sarros,

Nos habitantes coitados.

 

664

 

Percorri o universo

Em cavalo de madeira;

Nos ares fiquei submerso,

Sem lençol nem travesseira.

 

665

 

Tive o futuro a meus pés,

Pisei-o com minhas botas;

Vivi nas ondas, marés,

Comi tubarões e potas.


// continua...