quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
 
Por Joaquim A. Rocha



desenho de Luís Filipe G. P. Rodrigues



XIX

Privilégios de macho cavalgam sábias fêmeas
 

     O leitor vai ficar abismado com tudo aquilo que se vai passar a seguir. Perguntar-se-ão: «como é possível?» Pois é: eu também fazia das minhas. Claro que naquela época, talvez ainda hoje, havia dois pesos e duas medidas: a traição da mulher pesava mais na sociedade, era suscetível de uma condenação severa; ao contrário, era de bom-tom o homem dar a sua escapadela! Mas já chega de retórica, venham todos assistir à malandrice:

- Cândido: nem sei como haverei de começar. A tua mãe não te disse nada?

- Se é o que estou a pensar, disse; mas já sabes como ela é.   

- Bem, ela falou comigo, disse-me que não gostava nada que tu casasses com a Bera, é uma leviana, não te vai respeitar, eu tive aquele problema, mas pronto, isso aconteceu porque aquele manco do diabo pensa que tem de tirar o virgo a todas as filhas dos caseiros, enquanto não faz isso não descansa, eu tinha apenas dezasseis anos de idade, era uma pobre inocente, não tenho culpa nenhuma, ameaçou despedir os meus pais da quinta, olha que sou uma rapariga séria, respeitar-te-ei sempre, comigo podes contar para a vida e para a morte, estarei sempre ao teu lado.

- Estás a colocar-me numa situação difícil, melindrosa, eu não quero prometer-te nada, é certo e verdade que a Bera ultimamente anda esquisita, não aparece aos encontros marcados, farto-me de lhe mandar recados, não sei o que ela tem, se calhar já não me quer, eu dou em doido, porque gosto profundamente dela.

- Eu ouvi dizer que vai casar com o Artur, sempre foi uma vaidosa, não dá confiança a ninguém, pensa que é importante, coitada, tem tanto como eu.

- Agradeço-te que não fales da Bera na minha presença, isso não admito a quem quer que seja, se ela me trocar pelo Artur está no seu direito, mas garantiu-me que isso não passa de um boato e prometeu esperar o meu regresso da tropa, depois casamos e já calaremos as más-línguas.     

- Espera-lhe pela volta, mas se não queres falar nesse assunto não fales, eu gosto de ti e estou às tuas ordens, se quiseres já sabes onde me encontrar, no domingo à tarde é o melhor momento, porque o meu pai anda aí pelas tabernas e a minha mãe não sai de casa, os meus irmãos ainda são pequenos, não se aperceberão de nada.

- Está bem, no domingo à tarde apareço, faço sinal cá de cima da avenida, mas não quero que te vejam comigo, se a Bera sabe então é o bom e o bonito, rompe logo comigo.

                                        *

- Cá estou eu, ninguém te viu?

- Não, hoje há futebol no monte de Santiago, veio cá jogar o Limiano, foi toda a gente para lá, o meu pai a estas horas já deve estar bem bebido, a minha mãe está na cozinha a fazer a ceia, nem aos domingos tem direito ao descanso.

- Vamos arranjar um cantinho, daqui vê-se a tua casa, vamos mais para além, ali deve servir, a erva está seca, não há urtigas, esperemos que ninguém nos veja.

- Tanto medo, eu é que devia estar com esse receio, sou uma rapariga solteira, nem sequer sou tua namorada, nem sei porque vim, só porque gosto muito de ti, se quiseres vou-me embora.

- Desculpa, sei que estás a arriscar bastante, mas compreende, sou o namorado da Bera, se ela sabe, mas olha agora estamos aqui os dois e vamos pensar só em nós, deita-te aqui, assim, estás mesmo bem, és muito atraente, só tenho tido olhos para ela, mas tu não lhe ficas atrás, que pernas bonitas, macias, parecem de veludo, que seios, rijos, que bem me sinto aqui à tua beira, que lábios, parece que nunca beijaram, e tens os olhos lindos, nunca tinha reparado neles, nem sequer me tinha apercebido da cor deles, são verdes, ia jurar que eram castanhos, quase todas as raparigas daqui têm os olhos castanhos, o cabelo, brilhante, mais louro do que castanho, que bem me sinto entre as tuas pernas, deixa-me estar assim muito tempo, sempre.

*

- Até te esqueceste das horas, é quase noite, temos de ir embora, se não depois não podemos passar o regato, ainda caímos, foi uma tarde maravilhosa, não será a última, vamos passar muitas tardes assim, juntos, não estejas com essa cara de aflito, ninguém saberá.

- Promete-me, Celina, promete-me solenemente, que nunca dirás a ninguém o que se passou aqui, se ela sabe estou desgraçado, então é que eu a perco para sempre.

- Estás a ser-lhe mais fiel do que ela te está a ser a ti, mas podes confiar em mim, da minha boca não sairá uma única palavra a este respeito, nem sequer à tua mãe eu direi.  

- Sobretudo à minha mãe, se lho disseres espalhará por todo o lado, só para prejudicar a rapariga, vai botar tudo a perder, não lhe contes nada.

- Também, quem é que acredita naquilo que a tua mãe diz?

- Nunca fiando. 

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