LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Luís Filipe G. P. Rodrigues |
XIX
Privilégios de macho cavalgam sábias fêmeas
O leitor vai ficar
abismado com tudo aquilo que se vai passar a seguir. Perguntar-se-ão: «como é possível?» Pois é: eu também
fazia das minhas. Claro que naquela época, talvez ainda hoje, havia dois pesos
e duas medidas: a traição da mulher pesava mais na sociedade, era suscetível de
uma condenação severa; ao contrário, era de bom-tom o homem dar a sua
escapadela! Mas já chega de retórica, venham todos assistir à malandrice:
- Cândido: nem sei como haverei de começar. A tua mãe não te disse
nada?
- Se é o que estou a pensar, disse; mas já sabes como ela é.
- Bem, ela falou comigo, disse-me que não gostava nada que tu
casasses com a Bera, é uma leviana, não te vai respeitar, eu tive aquele
problema, mas pronto, isso aconteceu porque aquele manco do diabo pensa que tem
de tirar o virgo a todas as filhas dos caseiros, enquanto não faz isso não
descansa, eu tinha apenas dezasseis anos de idade, era uma pobre inocente, não
tenho culpa nenhuma, ameaçou despedir os meus pais da quinta, olha que sou uma
rapariga séria, respeitar-te-ei sempre, comigo podes contar para a vida e para
a morte, estarei sempre ao teu lado.
- Estás a colocar-me numa situação difícil, melindrosa, eu não
quero prometer-te nada, é certo e verdade que a Bera ultimamente anda esquisita,
não aparece aos encontros marcados, farto-me de lhe mandar recados, não sei o
que ela tem, se calhar já não me quer, eu dou em doido, porque gosto
profundamente dela.
- Eu ouvi dizer que vai casar com o Artur, sempre foi uma vaidosa, não
dá confiança a ninguém, pensa que é importante, coitada, tem tanto como eu.
- Agradeço-te que não fales da Bera na minha presença, isso não
admito a quem quer que seja, se ela me trocar pelo Artur está no seu direito,
mas garantiu-me que isso não passa de um boato e prometeu esperar o meu
regresso da tropa, depois casamos e já calaremos as más-línguas.
- Espera-lhe pela volta, mas se não queres falar nesse assunto não
fales, eu gosto de ti e estou às tuas ordens, se quiseres já sabes onde me
encontrar, no domingo à tarde é o melhor momento, porque o meu pai anda aí
pelas tabernas e a minha mãe não sai de casa, os meus irmãos ainda são
pequenos, não se aperceberão de nada.
- Está bem, no domingo à tarde apareço, faço sinal cá de cima da
avenida, mas não quero que te vejam comigo, se a Bera sabe então é o bom e o
bonito, rompe logo comigo.
*
- Cá estou eu, ninguém te viu?
- Não, hoje há futebol no monte de Santiago, veio cá jogar o
Limiano, foi toda a gente para lá, o meu pai a estas horas já deve estar bem
bebido, a minha mãe está na cozinha a fazer a ceia, nem aos domingos tem
direito ao descanso.
- Vamos arranjar um cantinho, daqui vê-se a tua casa, vamos mais
para além, ali deve servir, a erva está seca, não há urtigas, esperemos que
ninguém nos veja.
- Tanto medo, eu é que devia estar com esse receio, sou uma
rapariga solteira, nem sequer sou tua namorada, nem sei porque vim, só porque
gosto muito de ti, se quiseres vou-me embora.
- Desculpa, sei que estás a arriscar bastante, mas compreende, sou
o namorado da Bera, se ela sabe, mas olha agora estamos aqui os dois e vamos
pensar só em nós, deita-te aqui, assim, estás mesmo bem, és muito atraente, só
tenho tido olhos para ela, mas tu não lhe ficas atrás, que pernas bonitas,
macias, parecem de veludo, que seios, rijos, que bem me sinto aqui à tua beira,
que lábios, parece que nunca beijaram, e tens os olhos lindos, nunca tinha
reparado neles, nem sequer me tinha apercebido da cor deles, são verdes, ia
jurar que eram castanhos, quase todas as raparigas daqui têm os olhos
castanhos, o cabelo, brilhante, mais louro do que castanho, que bem me sinto
entre as tuas pernas, deixa-me estar assim muito tempo, sempre.
*
- Até te esqueceste das horas, é quase noite, temos de ir embora,
se não depois não podemos passar o regato, ainda caímos, foi uma tarde
maravilhosa, não será a última, vamos passar muitas tardes assim, juntos, não
estejas com essa cara de aflito, ninguém saberá.
- Promete-me, Celina, promete-me solenemente, que nunca dirás a
ninguém o que se passou aqui, se ela sabe estou desgraçado, então é que eu a
perco para sempre.
- Estás a ser-lhe mais fiel do que ela te está a ser a ti, mas
podes confiar em mim, da minha boca não sairá uma única palavra a este
respeito, nem sequer à tua mãe eu direi.
- Sobretudo à minha mãe, se lho disseres espalhará por todo o lado,
só para prejudicar a rapariga, vai botar tudo a perder, não lhe contes nada.
- Também, quem é que acredita naquilo que a tua mãe diz?
- Nunca fiando.
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