ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
romance histórico
Por Joaquim A. Rocha
soldado com bazuca |
15.º capítulo (continuação)
Nós, pobres mortais, semicerrávamos os
olhos para de imediato os abrirmos com medo de sermos caçados pela “raposa traiçoeira”, como simples
galinhas dormindo sono profundo!
Abri os olhos e, não querendo acreditar, esfreguei-os para me convencer
de que não estava a dormir. Longe, por entre as incontáveis árvores, uma luz
fraca passeava. Disse, entre dentes, ao soldado que se encontrava à minha
beira:
«Valongo, estás a ver o mesmo que
eu?!» A resposta não se fez esperar: «É uma luz; talvez sejam os turras!» Eu
então solicitei-lhe:
«Atira-lhe uma bazucada.»
Retorquiu ele: «És doido varrido! Estão distantes e por outro lado vamos pôr
isto tudo em polvorosa.» Eu insisti:
«Atira-lhe;
aponta em direção àquela brecha.»
Aquele silêncio estava a pôr-me num estado de semi-loucura, por isso
desejava ouvir barulho, gritos, tiros, granadas a rebentar no solo estrondosamente!
Queria que a luz das chamas substituísse aquela escuridão imensa – pretendia
sair daquela espécie de letargia que me estava a enlouquecer.
O meu camarada bazuqueiro, ensonado, de olhos esbugalhados, fixa a
poderosa arma no ombro direito e aí vai projétil.
O estrondo do disparo, qual explosão nuclear, ecoou por toda a selva
africana! Bichos e gente, num grito de raiva e de desespero correram algum
tempo sem destino certo. Metralhadoras pesadas e ligeiras começaram a fazer-se
escutar, sobrepondo-se aos gritos e aos movimentos frenéticos, desarticulados.
As feras brotavam de dentro de nós e devoravam, sem piedade e sem dó, a
natureza indefesa e inocente. De súbito, saindo de uma garganta funda, uma voz
rouca e estridente, poderosa, parecendo vir do Olimpo adormecido, de um Zeus
zangado, atroou os ares:
«Calem as armas, suas bestas!»
Era a descomunal voz do nosso comandante da Companhia. Estava furioso,
impaciente, agressivo. Não encontrava qualquer motivo ou explicação, por mais
que meditasse, para aquele tiroteio, para aquele festival saloio, para aquele
desperdício de munições e energias.
Os seus homens estavam tensos e
ele sabia-o; não tinham tido a sua formação na Academia Militar, a sua
preparação na arte de bem guerrear qualquer inimigo, a sua força anímica.
«Bestas!» - repetiu, agora mais calmo e compreensivo: «Não dêem nem mais
um tiro. Isto que não volte mais a acontecer…»
- Não pregaram olho, nessa noite…
- Dormir! Os primeiros raios solares
brindaram-nos com a sua presença. Levantámo-nos do incómodo chão e recomeçamos
a marcha. Corpo cansado, roupa húmida, devido à impercetível mas danosa
cacimba, espírito sob tortura. As probabilidades de virmos a sofrer uma cilada
eram imensas, visto que a gente do PAIGC não perderia uma oportunidade destas:
conhecia perfeitamente a nossa posição no terreno e a nossa força.
Graças aos deuses, nada aconteceu; fomos seguindo, seguindo, com muita
precaução, até ao aquartelamento dos camaradas que nos solicitaram apoio.
Agora, face àquele dântico espetáculo, compreendia por que não tínhamos sido
visitados pelo negro inimigo. Os guerrilheiros concentraram todas as suas
forças no ataque ao quartel, ora transformado em escombros! Um pandemónio:
berros e mais berros, ordens e mais ordens. Os helicópteros chegavam e partiam
com os atingidos e mortos, num deambular macabro. Os rostos dos nossos companheiros
refletiam o medo, espelhavam o terror, a ânsia e a tragédia.
- Um massacre! É inadmissível! – exclama Henrique, irritado.
- Não, não estava certo! Aquele
quartel, se assim se lhe podia chamar, no interior da floresta, à mercê de um
belzebu astuto e calculista, granítico, e – de certa maneira – poderoso, apesar
de à primeira vista não o parecer.
Os “gajos” utilizavam, com
mestria, os morteiros, talvez fornecidos pela União Soviética, através de Cuba.
E possuíam canhões! E armas sofisticadas. Tudo!
- Sozinhos não poderiam ter feito
frente ao exército português – afirma
Henrique, categoricamente.
- Também acho. Nós já suspeitávamos,
tínhamos a bem dizer a certeza, que militares cubanos faziam parte das forças
contrárias. Como Salazar, e os seus esbirros, estava longe da realidade! Ele
pensava, cérebro envolto em naftalina, ainda na idade média do desenvolvimento
intelectual, que os “turras” eram
gente de pé descalço, tipo movimento da “Maria
da Fonte”, e usavam ainda a tradicional catana. Pobre pacóvio de Santa
Comba!
Encerrado num gabinete, os seus
grandes pés sempre enfiados naquelas botarras pretas, rodeado de velhas múmias
conselheiras, bebendo o chã da sua Mariazinha, não podia, se calhar não queria,
aperceber-se do que se passava nas colónias. E bastava que os diplomatas portugueses
lhe dissessem: «Senhor Presidente do Conselho de Ministros, Portugal
encontra-se completamente isolado, nenhuma nação se solidariza com a nossa causa,
ninguém nos dá razão. Só nos resta ceder.»
- Acha que o país estava numa situação
dessas que descreveu?
- O PAIGC era apoiado por peritos, por
especialistas, neste tipo de lutas. E as armas que as nações apoiantes lhe forneciam
mostravam ser de certo modo adequadas à região africana, e essa coincidência não
era por mero acaso. Estas guerrilhas serviam de balão de ensaio às grandes
potências para outras guerras mais importantes e rendíveis. Mas não falemos
disso, pois trata-se de uma matéria complicada e eu, meu amigo, não tenho competência
para a abordar com rigor e isenção.
Naquele tempo os nossos terríveis adversários ainda não utilizavam a
aviação, à excepção do helicóptero, nem carros de combate; no entanto, iam
paulatinamente deitando abaixo os nossos aparelhos e destruindo as nossas
viaturas: especialmente as de transporte! As suas emboscadas surtiam quase
sempre o efeito pretendido, isto é, conseguiam matar um ou dois dos nossos
homens, desmoralizar os restantes, e inutilizar toneladas de mantimentos!
- Uma tática infalível!
- Usavam a Rádio Internacional,
nomeadamente da Argélia, para emitir propaganda política, nela surgindo frequentemente
vozes de cidadãos portugueses conhecidos, opositores ao regime corporativista e
colaboradores dos movimentos de libertação.
- Vozes essas que se ouvem em nossos
dias na Assembleia da República!
- E ainda bem! Sinal de que há
democracia. Depois da revolução, Portugal tornou-se um país onde todos os portugueses
têm lugar.
- De acordo – concordou Henrique – no entanto deviam pedir perdão aos
ex-soldados, pois indiretamente prejudicaram-nos.
- Isso agora é secundaríssimo. Para
mim, até me provarem o contrário, o grande culpado foi o santa-combense e os
seus capangas. Não tiveram visão do futuro, estavam por demais agarrados ao
passado. Não souberam distinguir o essencial do acessório. Mas permites que
continue a minha história?
- Com certeza. Até agradeço.
// continua...
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