quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
romance histórico
 
Por Joaquim A. Rocha 
 
 
 
 
soldado com bazuca
 
 
                                                           15.º capítulo (continuação)
 
 
     Nós, pobres mortais, semicerrávamos os olhos para de imediato os abrirmos com medo de sermos caçados pela “raposa traiçoeira”, como simples galinhas dormindo sono profundo!

     Abri os olhos e, não querendo acreditar, esfreguei-os para me convencer de que não estava a dormir. Longe, por entre as incontáveis árvores, uma luz fraca passeava. Disse, entre dentes, ao soldado que se encontrava à minha beira:

     «Valongo, estás a ver o mesmo que eu?!» A resposta não se fez esperar: «É uma luz; talvez sejam os turras!» Eu então solicitei-lhe:

     «Atira-lhe uma bazucada.» Retorquiu ele: «És doido varrido! Estão distantes e por outro lado vamos pôr isto tudo em polvorosa.» Eu insisti:

    «Atira-lhe; aponta em direção àquela brecha.»

     Aquele silêncio estava a pôr-me num estado de semi-loucura, por isso desejava ouvir barulho, gritos, tiros, granadas a rebentar no solo estrondosamente! Queria que a luz das chamas substituísse aquela escuridão imensa – pretendia sair daquela espécie de letargia que me estava a enlouquecer.       

     O meu camarada bazuqueiro, ensonado, de olhos esbugalhados, fixa a poderosa arma no ombro direito e aí vai projétil.

     O estrondo do disparo, qual explosão nuclear, ecoou por toda a selva africana! Bichos e gente, num grito de raiva e de desespero correram algum tempo sem destino certo. Metralhadoras pesadas e ligeiras começaram a fazer-se escutar, sobrepondo-se aos gritos e aos movimentos frenéticos, desarticulados. As feras brotavam de dentro de nós e devoravam, sem piedade e sem dó, a natureza indefesa e inocente. De súbito, saindo de uma garganta funda, uma voz rouca e estridente, poderosa, parecendo vir do Olimpo adormecido, de um Zeus zangado, atroou os ares:

     «Calem as armas, suas bestas!» Era a descomunal voz do nosso comandante da Companhia. Estava furioso, impaciente, agressivo. Não encontrava qualquer motivo ou explicação, por mais que meditasse, para aquele tiroteio, para aquele festival saloio, para aquele desperdício de munições e energias.

     Os seus homens estavam tensos e ele sabia-o; não tinham tido a sua formação na Academia Militar, a sua preparação na arte de bem guerrear qualquer inimigo, a sua força anímica.

     «Bestas!» - repetiu, agora mais calmo e compreensivo: «Não dêem nem mais um tiro. Isto que não volte mais a acontecer…»      

- Não pregaram olho, nessa noite…

- Dormir! Os primeiros raios solares brindaram-nos com a sua presença. Levantámo-nos do incómodo chão e recomeçamos a marcha. Corpo cansado, roupa húmida, devido à impercetível mas danosa cacimba, espírito sob tortura. As probabilidades de virmos a sofrer uma cilada eram imensas, visto que a gente do PAIGC não perderia uma oportunidade destas: conhecia perfeitamente a nossa posição no terreno e a nossa força.

     Graças aos deuses, nada aconteceu; fomos seguindo, seguindo, com muita precaução, até ao aquartelamento dos camaradas que nos solicitaram apoio. Agora, face àquele dântico espetáculo, compreendia por que não tínhamos sido visitados pelo negro inimigo. Os guerrilheiros concentraram todas as suas forças no ataque ao quartel, ora transformado em escombros! Um pandemónio: berros e mais berros, ordens e mais ordens. Os helicópteros chegavam e partiam com os atingidos e mortos, num deambular macabro. Os rostos dos nossos companheiros refletiam o medo, espelhavam o terror, a ânsia e a tragédia.

- Um massacre! É inadmissível! – exclama Henrique, irritado.

- Não, não estava certo! Aquele quartel, se assim se lhe podia chamar, no interior da floresta, à mercê de um belzebu astuto e calculista, granítico, e – de certa maneira – poderoso, apesar de à primeira vista não o parecer.

     Os “gajos” utilizavam, com mestria, os morteiros, talvez fornecidos pela União Soviética, através de Cuba. E possuíam canhões! E armas sofisticadas. Tudo!

- Sozinhos não poderiam ter feito frente ao exército português – afirma Henrique, categoricamente.

- Também acho. Nós já suspeitávamos, tínhamos a bem dizer a certeza, que militares cubanos faziam parte das forças contrárias. Como Salazar, e os seus esbirros, estava longe da realidade! Ele pensava, cérebro envolto em naftalina, ainda na idade média do desenvolvimento intelectual, que os “turras” eram gente de pé descalço, tipo movimento da “Maria da Fonte”, e usavam ainda a tradicional catana. Pobre pacóvio de Santa Comba!

     Encerrado num gabinete, os seus grandes pés sempre enfiados naquelas botarras pretas, rodeado de velhas múmias conselheiras, bebendo o chã da sua Mariazinha, não podia, se calhar não queria, aperceber-se do que se passava nas colónias. E bastava que os diplomatas portugueses lhe dissessem: «Senhor Presidente do Conselho de Ministros, Portugal encontra-se completamente isolado, nenhuma nação se solidariza com a nossa causa, ninguém nos dá razão. Só nos resta ceder.»

- Acha que o país estava numa situação dessas que descreveu?

- O PAIGC era apoiado por peritos, por especialistas, neste tipo de lutas. E as armas que as nações apoiantes lhe forneciam mostravam ser de certo modo adequadas à região africana, e essa coincidência não era por mero acaso. Estas guerrilhas serviam de balão de ensaio às grandes potências para outras guerras mais importantes e rendíveis. Mas não falemos disso, pois trata-se de uma matéria complicada e eu, meu amigo, não tenho competência para a abordar com rigor e isenção.

     Naquele tempo os nossos terríveis adversários ainda não utilizavam a aviação, à excepção do helicóptero, nem carros de combate; no entanto, iam paulatinamente deitando abaixo os nossos aparelhos e destruindo as nossas viaturas: especialmente as de transporte! As suas emboscadas surtiam quase sempre o efeito pretendido, isto é, conseguiam matar um ou dois dos nossos homens, desmoralizar os restantes, e inutilizar toneladas de mantimentos!

- Uma tática infalível!

- Usavam a Rádio Internacional, nomeadamente da Argélia, para emitir propaganda política, nela surgindo frequentemente vozes de cidadãos portugueses conhecidos, opositores ao regime corporativista e colaboradores dos movimentos de libertação.

- Vozes essas que se ouvem em nossos dias na Assembleia da República!

- E ainda bem! Sinal de que há democracia. Depois da revolução, Portugal tornou-se um país onde todos os portugueses têm lugar.          

- De acordo – concordou Henrique – no entanto deviam pedir perdão aos ex-soldados, pois indiretamente prejudicaram-nos.

- Isso agora é secundaríssimo. Para mim, até me provarem o contrário, o grande culpado foi o santa-combense e os seus capangas. Não tiveram visão do futuro, estavam por demais agarrados ao passado. Não souberam distinguir o essencial do acessório. Mas permites que continue a minha história?

- Com certeza. Até agradeço.
 
// continua...

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