terça-feira, 9 de janeiro de 2018

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha






 
 

     Tal com em tempos escrevi sobre o escultor Acácio Dias e sobre o fotógrafo San Payo, hoje escrevo sobre um grande historiador das coisas de Melgaço: Aldomar Rodrigues Soares, mais conhecido por “Mário”. Nascido na freguesia de Prado, concelho de Melgaço, a 10/9/1913, falece na Peneda, Gavieira, Arcos de Valdevez, à meia-noite do dia 6 para o dia 7 de Setembro de 1962, apenas com 49 anos de idade! O Aldomar pertenceu à Polícia de Segurança Pública, mas devido a uma grave doença teve de se retirar; «isolou-se» depois na sua casa de Prado, tornando-a num Centro de Cultura, num viveiro de História. Logo que se funda A Voz de Melgaço, em 1946, o “Mário” torna-se num colaborador assíduo, contribuindo imenso para o prestígio do jornal e até da nossa terra. Os seus artigos, as famosas «Efemérides», eram verdadeiras lições de história local; noutros, sob a designação de «Gentes e Coisas de O Meu Ficheiro», biografava pessoas simples, como por exemplo o meu avô materno, Belchior Herculano da Rocha, e o meu tio-avô José Maria Alves, mais conhecido por “Zinona”, narrando pequenas peripécias da sua vida, histórias que na altura andariam de boca em boca, mas que o tempo posterior fez esquecer. Penso que o “Mário” nunca se interessou muito pelos ricos e poderosos, ao contrário do Dr. Augusto César Esteves, que em «O Meu Livro das Gerações Melgacenses» quase esquece por completo as famílias humildes – dedica a maior parte das páginas aos Castro fidalgos, Figueiredo, Sotomaior, Cunha Araújo, Magalhães, etc. E as outras famílias não existiram? Eram demasiado plebeias para o senhor Dr. Augusto César Esteves? Talvez! Isto não significa desvalorizar o trabalho, a obra histórica e genealógica do Dr. Augusto César Esteves; os seus escritos merecem ser aplaudidos e acarinhados.

     Não sei, não faço a mínima ideia, onde foi o “Mário” colher tanta informação, tanto saber! Frequentou a Torre do Tombo, a Biblioteca Nacional, Museus e Arquivos. Tudo bem! Contudo, a visita a essas instituições não dá por si só o conhecimento; é preciso ir munido, técnica e cientificamente, com métodos de investigação, adquiridos ao longo de árduos anos com os mestres. Saber o que se procura e como se procura exige preparação prévia, de contrário perde-se tempo e faz-se perder tempo aos outros. O “Mário”, por aquilo que li, não tinha curso superior, não frequentou a universidade, logo, era um autodidata, um homem insatisfeito, sôfrego de saberes.

     O senhor padre Júlio Vaz já disse que vai publicar a obra histórica do “Mário”; é um grande gesto, uma homenagem ao autor, mas também ao nosso concelho. É com estas obras que Melgaço se torna maior, mais digno de admiração. Deixem-me só desabafar: que anda a fazer o vereador da cultura? Já está como o nosso primeiro-ministro: não lê, não sabe?! A minha modesta opinião é esta: quando se assume um lugar na administração pública tem de se estar minimamente preparado para ocupá-lo com dignidade. Quem é o nosso vereador da cultura? O que fez até agora na sua área? Se algo fez que o diga, que se orgulhe, que se envaideça – nós não lhe levaremos a mal por isso. Há pessoas que estão para a cultura como eu estou para a pesca submarina: nem sequer sei mergulhar! É de facto uma vergonha que sejam pessoas singulares a fazerem o trabalho que compete à administração pública. No entanto, não devemos esquecer que esta Câmara Municipal já editou alguns cadernos, embora pouco cuidados a maioria deles, mas de uma grande importância para a cultura melgacense. Nesse campo há ainda imensa coisa a fazer. As estradas, as casas, etc., são sem dúvida fundamentais para o desenvolvimento de um concelho, de um país; porém, a cultura é tanto ou mais importante do que as rodovias – a cultura é a estrada que nos pode levar à felicidade espiritual, bem mais agradável e duradoura do que a felicidade material, apesar desta não se poder dispensar. 

     Dizia eu que o Aldomar foi uma sumidade no que diz respeito à historiografia melgacense. Trabalhava metodicamente, cientificamente, sem os instrumentos que ora nos apoiam, ou seja: computadores, microfilmes, vídeos, etc. Se tivesse vivido mais algum tempo deixar-nos-ia certamente uma obra fabulosa; mesmo assim, aquilo que nos legou já é bastante. Não sei quem tem o seu espólio; provavelmente a sua viúva, ou os seus filhos. Esse espólio sem preço, esse valioso tesouro, deveria ser adquirido pela Câmara Municipal de Melgaço para a Casa da Cultura ou para o Arquivo Municipal. Ficaria à disposição dos estudantes e investigadores da história local.

     Aproveito para dizer que ando a tentar construir uma pequena história genealógica da minha família (Lourenço, Alves, Barbeitos, Melo, Rocha), e quanta dificuldade tenho encontrado, em parte porque os livros dos registos paroquiais foram retirados à igreja católica pelos republicanos depois de 1910 e encontram-se agora no Arquivo Distrital de Viana do Castelo. Os ficheiros do “Mário” poderiam ajudar, mas onde estão?

     A família hoje está dispersa; por outro lado, perdeu-se o conceito de «família alargada». Em nossos dias ela consta apenas de pais e filhos, e pouco mais! Para a sua destruição contribuíram a primeira grande guerra, a fome, as epidemias, a segunda guerra mundial, a guerra colonial, e a emigração. O “Mário”, com nomes, datas, acontecimentos, contribuiu imenso para a sua recuperação. Porque não tenham quaisquer dúvidas: a história de um país, de uma nação, é a história das suas gentes, das famílias, das comunidades. É bom que nós saibamos quem são os nossos antepassados, a fim de podermos homenagear ou criticar (por que não?) a sua memória. O nosso corpo, grande ou pequeno, gordo ou magro, não é apenas comida: é, acima de tudo, espírito. Geralmente não se recorda aquilo que no passado comemos ou bebemos, mas sim o que vivemos, o que gozamos na companhia de outrem, os momentos agradáveis e tristes. Agora dá-se mais atenção ao carro, à roupa, aos comes-e-bebes! Isso é viver a cinquenta por cento. O “Mário” quis cumprir a vida na sua totalidade; quis deixar para as gerações vindouras o resultado das suas investigações; quis, enfim, merecer a sua posteridade. Deixou-nos uma obra, e graças a ela não morreu. Por vezes desafiou os doutos; não perdeu na contenda. Não os venceu, é certo, mas também esse não era certamente o seu objetivo. O seu objetivo, creio eu, era esclarecer o leitor, dizer a verdade sobre os factos ocorridos. Que bom seria se aparecessem mais “Mários” no nosso concelho!                  

       

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1030, de 1/6/1995.

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