ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
Tal com em tempos
escrevi sobre o escultor Acácio Dias e sobre o fotógrafo San Payo, hoje escrevo
sobre um grande historiador das coisas de Melgaço: Aldomar Rodrigues Soares,
mais conhecido por “Mário”. Nascido na freguesia de Prado, concelho de Melgaço, a 10/9/1913, falece na Peneda, Gavieira, Arcos de Valdevez, à
meia-noite do dia 6 para o dia 7 de Setembro de 1962, apenas com 49 anos de
idade! O Aldomar pertenceu à Polícia de Segurança Pública, mas devido a uma
grave doença teve de se retirar; «isolou-se»
depois na sua casa de Prado, tornando-a num Centro de Cultura, num viveiro de
História. Logo que se funda A Voz de Melgaço, em 1946, o “Mário” torna-se num
colaborador assíduo, contribuindo imenso para o prestígio do jornal e até da
nossa terra. Os seus artigos, as famosas «Efemérides», eram verdadeiras lições
de história local; noutros, sob a designação de «Gentes e Coisas de O Meu
Ficheiro», biografava pessoas simples, como por exemplo o meu avô materno,
Belchior Herculano da Rocha, e o meu tio-avô José Maria Alves, mais conhecido
por “Zinona”, narrando pequenas peripécias da sua vida, histórias que na altura
andariam de boca em boca, mas que o tempo posterior fez esquecer. Penso que o
“Mário” nunca se interessou muito pelos ricos e poderosos, ao contrário do Dr.
Augusto César Esteves, que em «O Meu Livro das Gerações Melgacenses» quase
esquece por completo as famílias humildes – dedica a maior parte das páginas aos
Castro fidalgos, Figueiredo, Sotomaior, Cunha Araújo, Magalhães, etc. E as
outras famílias não existiram? Eram demasiado plebeias para o senhor Dr.
Augusto César Esteves? Talvez! Isto não significa desvalorizar o trabalho, a obra histórica e genealógica do Dr. Augusto César Esteves; os seus escritos merecem ser aplaudidos e acarinhados.
Não sei, não faço
a mínima ideia, onde foi o “Mário” colher tanta informação, tanto saber! Frequentou
a Torre do Tombo, a Biblioteca Nacional, Museus e Arquivos. Tudo bem! Contudo,
a visita a essas instituições não dá por si só o conhecimento; é preciso ir
munido, técnica e cientificamente, com métodos de investigação, adquiridos ao
longo de árduos anos com os mestres. Saber o que se procura e como se procura
exige preparação prévia, de contrário perde-se tempo e faz-se perder tempo aos
outros. O “Mário”, por aquilo que li, não tinha curso superior, não frequentou
a universidade, logo, era um autodidata, um homem insatisfeito, sôfrego de
saberes.
O senhor padre
Júlio Vaz já disse que vai publicar a obra histórica do “Mário”; é um grande
gesto, uma homenagem ao autor, mas também ao nosso concelho. É com estas obras
que Melgaço se torna maior, mais digno de admiração. Deixem-me só desabafar:
que anda a fazer o vereador da cultura? Já está como o nosso primeiro-ministro:
não lê, não sabe?! A minha modesta opinião é esta: quando se assume um lugar na
administração pública tem de se estar minimamente preparado para ocupá-lo com
dignidade. Quem é o nosso vereador da cultura? O que fez até agora na sua área?
Se algo fez que o diga, que se orgulhe, que se envaideça – nós não lhe levaremos
a mal por isso. Há pessoas que estão para a cultura como eu estou para a pesca
submarina: nem sequer sei mergulhar! É de facto uma vergonha que sejam pessoas
singulares a fazerem o trabalho que compete à administração pública. No
entanto, não devemos esquecer que esta Câmara Municipal já editou alguns
cadernos, embora pouco cuidados a maioria deles, mas de uma grande importância
para a cultura melgacense. Nesse campo há ainda imensa coisa a fazer. As
estradas, as casas, etc., são sem dúvida fundamentais para o desenvolvimento de
um concelho, de um país; porém, a cultura é tanto ou mais importante do que as
rodovias – a cultura é a estrada que nos pode levar à felicidade espiritual,
bem mais agradável e duradoura do que a felicidade material, apesar desta não
se poder dispensar.
Dizia eu que o
Aldomar foi uma sumidade no que diz respeito à historiografia melgacense. Trabalhava
metodicamente, cientificamente, sem os instrumentos que ora nos apoiam, ou
seja: computadores, microfilmes, vídeos, etc. Se tivesse vivido mais algum tempo
deixar-nos-ia certamente uma obra fabulosa; mesmo assim, aquilo que nos
legou já é bastante. Não sei quem tem o seu espólio; provavelmente a sua viúva,
ou os seus filhos. Esse espólio sem preço, esse valioso tesouro, deveria ser
adquirido pela Câmara Municipal de Melgaço para a Casa da Cultura ou para o
Arquivo Municipal. Ficaria à disposição dos estudantes e investigadores da
história local.
Aproveito para
dizer que ando a tentar construir uma pequena história genealógica da minha
família (Lourenço, Alves, Barbeitos, Melo, Rocha), e quanta dificuldade tenho
encontrado, em parte porque os livros dos registos paroquiais foram retirados à
igreja católica pelos republicanos depois de 1910 e encontram-se agora no
Arquivo Distrital de Viana do Castelo. Os ficheiros do “Mário” poderiam ajudar,
mas onde estão?
A família hoje
está dispersa; por outro lado, perdeu-se o conceito de «família alargada». Em nossos dias ela consta apenas de pais e
filhos, e pouco mais! Para a sua destruição contribuíram a primeira grande
guerra, a fome, as epidemias, a segunda guerra mundial, a guerra colonial, e a
emigração. O “Mário”, com nomes, datas, acontecimentos, contribuiu imenso para
a sua recuperação. Porque não tenham quaisquer dúvidas: a história de um país,
de uma nação, é a história das suas gentes, das famílias, das comunidades. É
bom que nós saibamos quem são os nossos antepassados, a fim de podermos
homenagear ou criticar (por que não?) a sua memória. O nosso corpo, grande ou
pequeno, gordo ou magro, não é apenas comida: é, acima de tudo, espírito.
Geralmente não se recorda aquilo que no passado comemos ou bebemos, mas sim o
que vivemos, o que gozamos na companhia de outrem, os momentos agradáveis e
tristes. Agora dá-se mais atenção ao carro, à roupa, aos comes-e-bebes! Isso é
viver a cinquenta por cento. O “Mário” quis cumprir a vida na sua totalidade; quis
deixar para as gerações vindouras o resultado das suas investigações; quis,
enfim, merecer a sua posteridade. Deixou-nos uma obra, e graças a ela não
morreu. Por vezes desafiou os doutos; não perdeu na contenda. Não os venceu, é
certo, mas também esse não era certamente o seu objetivo. O seu objetivo, creio
eu, era esclarecer o leitor, dizer a verdade sobre os factos ocorridos. Que bom
seria se aparecessem mais “Mários” no nosso concelho!
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1030, de 1/6/1995.
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