sexta-feira, 31 de maio de 2019

LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
 
Por Joaquim A. Rocha



CAPÍTULO XXX


A religião é mel para os que dela se alimentam
 

      A doutrina, ou catequese, era obrigatória para todas as crianças que frequentassem a escola primária; o padre, e o professor do ensino primário, formavam uma sagrada, sólida e estratégica aliança, mantinham uma vigilância apertada para que essa obrigação fosse cumprida. O castigo seria severo para todos aqueles que tentassem ludibriá-los. Eu, católico como era, embora com um espírito rebelde, nunca faltava a esses deveres. Venham assistir a uma aula: 



 
- Quem é Deus?

- Deus é o pai todo-poderoso, criador do céu…

- Muito bem. E como se compõe a santíssima trindade?

- Pai, Filho, Espírito Santo.

- Como se chama a mãe de Jesus?

- Maria.

- Insuficiente. É assim: Virgem Maria, esposa de São José. Apanhas uma canada; para a próxima já responderás corretamente.         

- Mas o senhor abade disse que a mãe de Jesus se chama simplesmente Maria.

- O senhor abade é o senhor abade; eu sou eu. Eu sou a catequista e estou aqui para vos ensinar. Vais dizer-me, tu aí, ó Francisco, quais são os sete pecados cardeais?

- «Soberba»; «avareza»; «luxúria»; «ira», e não me lembro de mais.

- Quem quer responder? Tu vais para ali de castigo, assim, de costas para os outros.

- Eu sei, senhora catequista.

- Então responde.

- … «gula», «inveja» e «preguiça».

- Muito bem. O pecado da preguiça é o que vocês mais cometem. Agora ali o Cândido: vais-nos dizer quais são os dez mandamentos da lei de Deus.

- Dez mandamentos? Tantos?

- Ninguém ri, se não fica ali de castigo. São dez e vais dizê-los.

- Só me lembro de quatro: «não matarás»; «não furtarás»; «não levantarás falso testemunho»; «não cobiçarás mulher alheia»; …

- … «não invocarás o santo nome de Deus em vão»; … Bem, agora vamos sair. Tu, ó Aniceto, vais buscar a caixa, o Júlio leva a bandeira… Já vem ali o senhor abade, todos perfilados.

- Boa tarde! Então como vão os nossos rapazes?

- Uns melhor do que outros, senhor padre Alberto.

- Vamos marchar um pouco, em frente, hoje damos a volta à avenida Salazar, o exercício também faz bem. Não se esqueçam que no próximo domingo às nove horas fazem a primeira comunhão, no fim passam pela sacristia para tomar um copo de cacau quentinho.

- Senhor abade, eu não tenho roupa para levar, só tenho esta que trago vestida.

- Oh, diabo! Isso é que é mau. Olha: vais falar com a minha irmã Teresinha, ela que veja o que se pode arranjar, talvez adapte – ela tem muito jeito para a costura – umas calças minhas que já não me sirvam, ultimamente engordei uns quilitos, e uma camisa usada também por lá se arranja.

- Sim senhor, senhor padre Alberto; e muito obrigado.  

- Deus compensar-me-á sobejamente por tudo aquilo que faço pelos pobrezinhos, é a minha obrigação. Jesus dizia sempre: «venham a mim as criancinhas.» Então eu, não havia de respeitar esse seu amor pelos mais pequeninos? Esses corpos bem direitos. Depois da curva vamos cantar o hino nacional, ai daqueles que se enganem. Assim: «heróis do mar, nobre povo, nação valente, imortal, levantai hoje de novo o esplendor de Portugal, entre as brumas da memória, ó pátria sente-se a voz dos teus egrégios avós que há de guiar-te à vitória; às armas, às armas, sobre a terra e sobre o mar! Às armas, às armas, pela pátria lutar, contra os canhões marchar, marchar

- Não está mal, mas quero essas vozes bem afinadas, a Pátria vem depois do Pai que está no céu: «Deus, Pátria, Família.» Quem é o Chefe, quem é?

- Salazar! Salazar!

- Mais forte.

- Salazar!!! Salazar!!!...     



 

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