segunda-feira, 20 de maio de 2019

LINA - FILHA DE PÃ
(romance)
 
Por Joaquim A. Rocha



desenho de Luís Filipe G. Pinto Rodrigues 


10.º Capítulo

 

     E a Lina? – perguntarão os pacientes leitores. Por algum lado ela deve andar. Teremos de ir à sua procura. Deixámo-la em Monção. Despedia-se do legionário, o tal que estava loucamente apaixonado por ela. Dali dirigiu-se a casa do senhor Acúrsio a fim de receber o seu salário e recolher as suas coisas. Tinha de abandonar Monção. Não gostava muito daquela gente, sobretudo do lado feminino, das amazonas monçanenses. Apesar de tudo, arranjara alguns amigos e amigas. Algumas mulheres, malcriadas e alcoviteiras, gostavam muito de se meter na sua vida, faziam perguntas embaraçosas, difíceis de responder. Conseguia dar-lhes a volta, mas eram demasiado curiosas para o seu gosto. À ceia disse ao patrão:  

  

- Senhor Acúrsio: peço-lhe imensa desculpa, mas tenho de ir embora. Depressa arranjará quem me substitua. Já falei com a Glória do Meledas e ela disse-me que não se importava de vir para aqui; você amanhã vá ter com ela e logo vê se está interessado.

- Ai mulher; já estava acostumado à tua companhia, agora vai-me custar habituar-me a outra. Cozinhas bem, és desembaraçada, eficiente e honesta. Contigo estava eu descansado.

- Ó senhor Acúrsio, sejamos francos: mesmo que eu fosse ladra, o senhor não tem nada para roubar!

- Isso é verdade: o que possuo mal dá para o dia-a-dia. Nunca fui de ajuntar. Há muita criatura para aí que só pensa em riqueza – eu sou o contrário deles.

- O senhor pensa só na sua alma; quando morrer vai direitinho para o céu!

- Assim o espero, para encontrar a minha Zenilda. Tenho tantas saudades dela.

- Esta noite ainda durmo cá. De manhã cedo vou-me embora. Espero que lhe corra tudo bem.

- Há-de correr, Lina, há-de correr. Deus e a alma de minha esposa protegem-me. Vai em paz. 

 

    Despediu-se do seu patrão, foi arrumar a cozinha e depois deitou-se. Nessa noite sonhou com o legionário: ele batia-lhe com força, arrastava-a pelos cabelos, chamava-lhe comunista, traidora à pátria, e queria deitá-la ao rio Minho. Ela defendia-se como podia, gritava por socorro, mas ninguém lhe acudia. De repente, por artes mágicas, libertou-se dele e fugiu. Ouvia os seus gritos, de maluco, mas já não o via. Provavelmente atirara-se ao rio e a corrente forte levara-o para longe.

 

     Levantou-se cedo. Dirigiu-se à cozinha, comeu qualquer coisa, pegou nas suas tralhas e saiu de casa. Esperou um pouco e de repente surge um carro. Dentro estava um homem, o qual lhe abriu a porta sem grandes cortesias.

 

- Entra. Hoje ainda tenho de trabalhar muito.

- Eu sei. O dinheiro não se ganha estando nós parados. O senhor tem fama de rico, e proveito, digo eu, mas toda a gente sabe quanto tem esgalhado no duro: tanto no estrangeiro como em Portugal.

- Pois fica sabendo que emigrei com catorze anos para o Brasil. E sabes onde fui parar? Não sabes? A Cuba!

- Não sei onde isso fica, mas suponho que é longe.

- Podes crer. É quase no fim do mundo. Nas Américas. Eu ia clandestinamente no barco, protegido por um indivíduo conhecido dos meus pais, um tal Ricardo, mas o dono do navio descobriu-me. Tive de trabalhar de borla para ele, sofri maus tratos, passei carradas de fome, mas um belo dia, quando estávamos em terra fugi. Estivera lá cinco miseráveis anos. Não ganhei praticamente nada, nem uma perra: apenas aprendi a falar espanhol. Dali arranjei maneira de ir para o Brasil. Ali sim, ganhei dinheiro, mas dei-lhe no duro muito tempo.

- As pessoas aqui pensam que é só abanar a árvore das patacas!

- Pois pensam, mas erradamente. É necessário trabalhar muito e bem. Enquanto se trabalha para os outros, pouco dinheiro se consegue; mas quando começamos a negociar por conta própria, minha amiga, é só amealhar. Mas atenção: tens de arranjar guarda-costas, se não limpam-te o sebo!

- É assim tão perigoso? – pergunta a Lina, convencida de que nesse país tudo era fácil.

- Perigosíssimo! Mata-se com a maior das facilidades. Em certos sítios do Brasil não há a bem dizer lei; todos andam armados e obedecem apenas ao seu chefe. Se ele mandar matar fulano ou sicrano eles não hesitam: cortam-lhe as goelas! Não te esqueças de uma coisa: a população do Brasil é constituída por brancos, negros, amarelos, índios de cor avermelhada, e a mistura dessas raças!

- E os assassinos não são presos? – pergunta a sua companheira de viagem, imaginando-se lá, onde poderia cometer todos os crimes que quisesse, sem ser molestada pela GNR.

- Por quem?!!! O Brasil é quase do tamanho da Europa, e é constituído por Estados; e cada Estado tem a sua própria lei, e esta é violada constantemente, até por aqueles que a deviam cumprir escrupulosamente, compreendes?

 

     Ela acenou com a cabeça, afirmativamente, mas não compreendera quase nada do que ele lhe dissera. Chegaram finalmente ao seu destino: Lamas Santas, freguesia de Melcarte, lá no alto. Diz o cavalheiro:      

 

- Chegamos. Vou apresentar-te à minha mulher. Ela está um pouco adoentada, por isso é que lhe arranjei uma criada. Trata bem dela, que nós te recompensaremos. Eu tenho alturas que me ausento por uns tempos; a minha mulher trata da loja e tu tratas da casa – já me informaram que és uma ótima empregada, uma boa cozinheira.

- Faço por isso. Até agora ninguém se lastimou.


desenho de Luís Filipe G. Pinto Rodrigues
 
     A esposa do seu novo patrão chamava-se Emília, mas todos a tratavam por D. Emilinha. Pouco mais teria do que quarenta anos de idade. Nascera no Brasil, embora de pais portugueses, de Trás-os-Montes, e viera com o marido para Portugal há uns anos atrás, porque já tinham um pé-de-meia, uns contos de réis, e nesse país, sobretudo em algumas cidades, era demasiado perigoso viver, mesmo com proteção armada.

     Nas freguesias de Melcarte não havia, que constasse, muitos ladrões, muito menos assassinos. A prisão estava quase vazia – os presos que lá estavam era por terem cometido pequenos furtos, umas querelas por causa da água de rega, emigração clandestina, e pouco mais. Crimes de sangue eram raríssimos: acontecia um de vinte em vinte anos.  

    Dona Emília engordara nos últimos anos, perdera aquela frescura de outros tempos, e por essa razão o marido, Filipe, de vez em quando dava a sua facada no matrimónio. Dizia-se que tinha uma amante no Porto, onde ia constantemente buscar mercadoria, e outra na Galiza. Ao contrário da esposa, ele estava muito bem fisicamente, até dava a impressão que os anos lhe passavam sorrateiramente ao lado. Nunca tivera nenhuma doença grave, fumar só em festas, era regrado a beber. Agora os ares da serra purificavam-lhe os pulmões. A alimentação era boa, nada faltava naquela casa.

 

- A estrada para Castro da Serra foi uma bênção de Deus, Emília; estamos na montanha e é como estivéssemos na cidade – temos tudo aquilo de que precisamos.

- Eu sinto saudades do Brasil, é a minha terra, mas aqui também estou bem; estes ares puros fazem-me muito bem, o pior é o inverno – o maldito frio dá cabo de mim.

- Não se pode querer tudo, esposa; queres sol na eira e chuva no nabal, mas não pode ser – a natureza é sábia, reparte tudo equitativamente. Ah! Já me esquecia de te perguntar: estás satisfeita com a empregada?

- De certo modo sim; é solícita, arrumada, organiza bem o cardápio, está atenta às minhas preocupações – parece que acertaste. Contudo, preferia ter saúde bastante para ser eu a tratar das coisas, não gosto de estranhos em minha casa.

 

**

 

     Leitor: é óbvio que ele conhecia, por ter ouvido falar, algumas das aventuras da Lina, mas nada dizia à esposa, para esta não a mandar embora. Queria-a em casa, não só por estar a fazer um bom trabalho doméstico, mas também porque a começava a desejar. Não lhe seria difícil conquistá-la: umas boas prendas, umas palavras carinhosas, e ela acabava por lhe cair nos braços. Já conquistara muita fêmea, umas mais novas, outras mais velhas, bonitas e feias, e não era esta que lhe escaparia.

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