domingo, 5 de maio de 2019

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha


Na parte alta vê-se a capela da Orada


UMA PEDRA FORA DO LUGAR

 

     Para meu espanto, quando em tempos estive em Melgaço, deparei com uma pedra tumular no sítio das Carvalhiças, da parte exterior do convento, pedra essa que, segundo me informaram, foi retirada da igreja da Misericórdia aquando das obras nela, igreja, efetuadas. Augusto César Esteves em «O Meu Livro das Gerações Melgacenses» diz, referindo-se à pessoa, cujo corpo esta lápide cobria: «… o seu cadáver pertence ao número dos primeiros inumados no cemitério municipal». Dos primeiros sim, mas antes dele foi lá enterrado o meu bisavô João António Alves, serralheiro, ao qual o Mário de Prado atribui a autoria dos portões do cemitério, pois morreu no dia 14/12/1877. José Augusto Vieira, na sua obra «Minho Pitoresco», editada em 1886/1887, informa-nos de que o cemitério da vila de Melgaço tinha sido recentemente inaugurado. Temos, evidentemente, de ter em conta o tempo decorrido entre o escrito e a publicação. Desconheço a razão por que deslocaram a dita pedra para tão longe, mas o mais certo foi dela se terem esquecido, pois é nossa tradição respeitar escrupulosamente os túmulos dos nossos avoengos. Claro que dentro de algum tempo, estando como está exposta à chuva e ao sol, sumir-se-ão os dizeres que a identificam: «AQUI JAZ O Rdº João Evangelista de Sá Sotto Mayor Abbade que foi desta villa – Faleceu em 20 de 11 de 1878».

     O padre João Evangelista nascera em 1793 e era filho natural de D. Caetana Luísa Soares de Meneses Sotomaior, ou Pereira de Castro. Sua tia, D. Francisca de Quevedo, ajudou-o financeiramente, custeando todas as despesas com os seus estudos. Em 1843, por decreto de 15 de Abril, é despachado abade para a freguesia de Santa Maria da Porta, vila de Melgaço, onde permanecerá até à sua morte. Nesse longínquo ano de 1843 era presidente da Câmara Municipal Manuel Inácio Gomes Pinheiro. Consta que o padre Evangelista teve a auréola de santo, talvez pelas suas obras caridosas e pela sua bondade para com os pobres; não possuímos no entanto dados, nem quaisquer milagres, reais ou inventados, que o possam confirmar.

     Aquando das três invasões francesas (1807, 1809 e 1810) era ele ainda um jovenzinho e delas apenas ouviria falar, tal como outros rapazes da sua idade. Os franceses nunca puseram as suas botas em terras melgacenses, porque o nosso concelho não tinha para eles qualquer valor estratégico, nem era rico ou farto para alimentar os seus famintos soldados e oficiais. A fuga precipitada da família real e de toda a corte para o Brasil não o deve ter afetado minimamente. Mas quando se deu a revolução liberal de 1820, preparada e dirigida por Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges, e José da Silva Carvalho, entre outros, já ele tinha 27 anos de idade, e nessa altura sim, deve ter reagido a favor ou contra. Viveu todas as lutas liberais, a guerra civil, as mudanças constantes de governo, as vigências da Constituição de 1822 e da Carta Constitucional dada ao país pelo rei Pedro IV em 1826; assistiu, com bonomia, ou talvez não, à extinção das ordens religiosas, e ao encerramento do poderoso convento de Fiães. Deve ter conhecido perfeitamente o facinoroso Tomás das Quingostas, e talvez tenha respirado de alívio quando o informaram da sua morte em 1839.

     Nunca chegou a viajar pela estrada real número 23, depois estrada nacional número 202, e desde este ano de 1996 estrada camarária, mas assistiu com alegria à inauguração da linha telegráfica em 1874. Não teve o privilégio de beber as famosas águas do Peso, achadas somente nos anos oitenta, mas viu chegar o comboio ao Minho.

     O padre João Evangelista está ligado de certo modo à minha família, pois no dia 2/5/1861, na igreja paroquial da vila, casou Francisco Maria Gonçalves (que ficou a partir desse dia a ser padrasto da minha bisavó Albina, a quem o mesmo sacerdote batizara em 1852) com Teresa Joaquina Alves, minha trisavó. Esse Francisco Maria passou mais tarde a assinar Francisco Maria de Melo, talvez por ser filho de um homem com esse apelido, e foi o pai dos Melos «cucos» de Melgaço; Zé cuco, 1859-1920 = José Joaquim Alves de Melo (pai do Mâncio, Roberto, Vítor…); Ilídio cuco, 1866-1952 = Ilídio Cândido Alves de Melo (tem ainda alguns filhos vivos em Melgaço – Maria Julieta de Melo, nascida em 1909); Júlia cuca, 1868-1910 = Júlia da Glória Alves de Melo (mãe do António, do Gaspar “Pala” e do José “Truta”, todos falecidos); Cacilda cuca, 1875-1956 = Cacilda da Glória Alves de Melo (mãe da Aurora e do Umberto, este sogro do nosso amigo Manuel Igrejas, e esposa de José António Penha, mais conhecido por Zé Tringuelheta, célebre contador de histórias.)

     O referido pároco, a 9/4/1869, batizou também na igreja matriz a minha avó materna, cujo padrinho era o governador da praça, Luís de Sousa Gama, um liberal dos quatro costados, com sangue na guelra, o qual lutou de armas na mão contra o tirano D. Miguel, rei pela força e pela traição, verdadeira marioneta da mãe, Carlota Joaquina (1775-1830), mulher cruel, sem coração, “irmã” tardia da «megera e aleivosa» Leonor Teles, que incitando o filho à revolta e à infidelidade deu origem a uma guerra civil sangrenta que só terminou com a Convenção de Évora-Monte, na qual se exigia a expulsão do usurpador. Estávamos então em Maio de 1834. Para cúmulo da nossa vergonha, e revelando bem a hipocrisia da alta nobreza, Miguel iria receber, enquanto permanecesse no estrangeiro, a pensão anual de sessenta contos de réis, verdadeira fortuna para a época. Esta nunca lhe foi paga porque ele, uma vez lá fora, conspirou contra o governo legítimo e contra sua sobrinha D. Maria II. Em nossos dias ainda há quem queira ressuscitar a monarquia, na pessoa de um descendente do degredado. Que os ricos e poderosos o desejem, não me admiro; mas os pobres e humildes, potenciais lacaios e vítimas desse regime de elites, custa a crer! Leiam a História de Portugal desses seis anos em que reinou Miguel I e verão o quanto sofreu o povo português. Leiam também essa obra admirável de A. Silva Gaio (1830-1870), o romance histórico «Mário», onde se descrevem algumas cenas pungentes da guerra civil que opôs partidários do filho segundo de João VI à gente de Pedro IV, o rei liberal, e depois digam-me se querem de novo a monarquia, sobretudo a absolutista.

     O major Sousa Gama exerceu o cargo de governador militar de Melgaço entre 1839 e 1870, precisamente até à sua morte, ocorrida a 31/12/1870.

     Em minha posse estão fotocópias de vários documentos com a assinatura do presbítero João Sotomaior e podem crer que a letra é bonita e perfeita. Devia ser certamente um homem lido e culto.

     Depois deste arrazoado todo, faço um apelo, embora não saiba a quem: voltem a colocar a pedra tumular no respetivo jazigo – os mortos têm direito ao eterno descanso.

 

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1062, de 1/12/1996.

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