domingo, 11 de junho de 2017

LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
 
Por Joaquim A. Rocha





XV

Em busca do pai perdi o meu rasto

 
     Mais uma vez eu e o meu irmão travávamos uma conversa animada e descontraída; recordávamos tempos passados, revivíamos os momentos mais marcantes da nossa infância. Se puderem venham ouvir esse interessante diálogo:
 

- Então o nosso pai foi para as bandas da Galiza e nunca mais nos veio ver?!

- Isso é o que a mamã diz: eu, concretamente não sei para onde raio ele foi. Quanto a visitar-nos, pode ser que tenha ido alguma vez a Cendre, que nos tenha visto de longe, que eu me lembre de ele ter vindo ter connosco isso não, eu era tão pequenino quando ele se foi embora que se o visse na rua não o reconhecia, provavelmente nunca mais se lembrou de nós, esqueceu-se que nós existíamos!

- Achas que ele tem mais filhos?

- A estrangeira era uma mulher nova, ele também, o mais certo é terem geração. Se a tiverem, se existir algum nosso irmão, eles nem sequer sabem da nossa existência, não lhes devem ter contado nada, para eles nós representamos apenas um episódio sem importância, um grão de areia no deserto, uma gota de água no imenso oceano, nem isso!

- Gostava de o conhecer, e aos irmãos de lá, não gostavas de falar com eles, dizer-lhes que somos filhos do mesmo pai, que podemos ser amigos?

- Eu não, não sou lírico como tu, a mim não me dizem nada, não os conheço, nem sequer sei se nasceram, o que é que ganhava com isso, o mais certo era virem-me pedir ajuda, podem ser uns pelintras, uns tesos, que se desenrasquem, eu também nunca lhes pedi nada, sabes como tenho mourejado, catorze e mais horas por dia, não venhas com essa, qual é o teu interesse em conhecê-los, se calhar davam-te alguma coisa, nem sonhes com isso, ninguém dá nada, o tipo se quisesse já nos tinha contactado, o malandro fez de conta que não foi nada com ele; andou metido com a tua mãe, fez-lhe dois fedelhos, e pôs-se a andar nas calmas, pisgou-se; também, com a idade dela, o que é que a tola esperava, casar?! Só se ele fosse parvo, um rapaz daquela idade ia ligar-se para sempre a uma mulher de trinta e tal anos de idade e mãe de vários filhos, só se fosse estúpido, burrinho de todo, eu teria feito o mesmo, quanto mais longe dela melhor.

- Não me digas que terias coragem, fígados, para deixar uma mulher com duas crianças, uma de meses e outra de três anos de idade, não acredito que fosses capaz disso, não acredito, mesmo que afirmes o contrário.     

- Bem, não sei, mas o mais certo era não me meter com ela, metia-me com uma da minha idade, ou mais nova, ao menos casava e pronto, não ficava com remorsos, meus queridos anjos, eram do meu sangue, até parece que não tem coração, deixarem dois putos tão pequenos, inocentes, que culpa têm as crianças dos erros, das fraquezas dos pais?

- Ela deveria, como mais velha, ter tido mais juízo, pelo menos não emprenhar, mas se isso tivesse acontecido não estaríamos nós aqui, e olha que eu gosto de viver, apesar de não ter pai e ter uma mãe como a nossa.

- Tivemos azar, lá isso, tivemos. Há gente que nasce num bercinho de ouro, nós nascemos na palha, na pocilga, na imundície, na pobreza total, absoluta, ninguém nasceu mais pobre do que nós, sem nada, nem ninguém, pigmeus do mundo, crescemos sozinhos, ao deus dará, aos empurrões da fortuna, mas olha que não estamos pior do que alguns que nasceram em ricas camas, cheios de tudo, bom conforto, boa comida, roupa à fartança, não estamos, não, mas graças ao nosso esforço, não nos podemos queixar muito, outros estão bem pior, e olha que podíamos ter saído bêbados, ladrões, do piorio que há, mas não, felizmente saímos honestos, trabalhadores, todos nos respeitam e admiram, e alguns até inveja nos terão!

- Parece que a divina providência nos amparou, nos quis compensar de toda aquela miséria, daqueles anos de fome, de frio, de doenças, de falta de carinho, olha que a falta de carinho foi o que mais me custou, uns braços de pai, de avós, de uma mãe carinhosa e sorridente, mas não, nem avós, nem pai, com uma mãe a cheirar a sardinhas e a vinho entornado, até parece que foi castigo de Deus por algum mal que nós tenhamos feito antes de nascer, olha que eu não me lembro de ter feito mal fosse a quem fosse.

- Nós não fomos os únicos desgraçados, infelizmente houve muitos outros, alguns até foram abandonados pelos progenitores, nem sequer sabem quem são, eu até preferia ser um desses, ao menos não sabia quem eram, teria a ilusão de pensar que eram pessoas fidalgas, ricas, bem instaladas na vida, mas que não quiseram assumir o escândalo, uma aventura de jovens.

- O nosso avô Gaspar foi exposto, coitado, julgo que nunca soube quem foram seus pais, é muito triste, eu prefiro saber, não tenho culpa que os meus pais sejam quem são, não escolhi nascer deles, mas prefiro saber, se calhar até o teu pai não é o mesmo que o meu, eu gostava que fosse, seríamos irmãos inteiros, mas ele disse que não tinha a certeza, provavelmente a tua mãe andava com outro, com a bebida, não sei.

- O avô, coitado, ficou viúvo tinha eu cinco anos de idade, mal me lembro dele, morreu passado dois anos da morte da avó, em 1949, os desgostos mataram-no, ainda não era muito velho, só tinha setenta e dois anos de idade, a segunda guerra mundial deu cabo dos países, tudo racionado, muita miséria, carência de tudo, até havia falta de açúcar para fabricar os rebuçados e roscas.

- Quando faleceu a avó tinha eu três aninhos de idade, não me recordo nada dela, a mamã diz que ela sofreu muito, coitada, a tratar dos filhos, a criá-los, para depois os ver morrer, caíram como tordos, um a um, somente dois lhe sobreviveram, olha que custa; a vida para os pobres é sempre difícil. E para cúmulo da desgraça, as doenças, as mortes, o sofrimento! Os ricos gozam a vida, têm tudo, as doenças não os matam, têm bons médicos, podem comprar os medicamentos, vão para os melhores hospitais, até depois da morte são diferentes de nós: acompanhados aos cemitérios pelas irmandades, bombeiros, bons jazigos de família, missas de corpo presente, responsos; nós somos apenas acompanhados pelos humildes e a seguir enterrados em campa rasa, e ao fim de cinco anos atiram com outro corpo para cima dos nossos ossos e mais ninguém se lembrará da nossa passagem por este vale de lágrimas. Outro dia o senhor padre Alberto recusou-se acompanhar o funeral do marido da senhora Albina, alegando que ele não ia à missa, que era maçónico e ateu – eu nem sei bem o que isso é!

- E depois dizem que são representantes de Deus na terra! O Senhor com certeza não teria procedido dessa forma, as pessoas não são obrigadas a ir à missa; se o defunto pertencesse a essas famílias abastadas certamente ele não teria agido assim.

- Eu não gostava de ser milionário, isso não, mas também não queria ser um pobretana, estou cansado de o ser, contentava-me em ser remediado, não me importava de ser padre, têm uma vida boa, não pagam renda de casa, recebem a côngrua, alguns ainda são professores no Colégio, e agora já não ia para o exército, mas mesmo que eu quisesse não podia sê-lo.

- Não podias?!

- Somente os filhos nascidos no casamento católico são admitidos no Seminário.

- Desconhecia isso. Pulhas! Cada dia gosto menos deles. Que culpa têm as crianças de nascerem fora do matrimónio? Até Jesus nasceu! O pai dele não era São José, são os próprios padres a afirmá-lo, mas sim Deus, ou Jeová, como lhe chamam no oriente.

- Os padres não são os culpados, não foram eles que fizeram essa absurda lei. Julgo que foram os cardeais, ou os bispos, a pedido do Papa, talvez para proteger a Igreja Católica dos malnascidos. Por outro lado, o que disseste acerca de Jesus, atenção, isso é diferente: Deus é Pai e Senhor de toda a Humanidade e de todas as criaturas que existem e que porventura venham a existir no universo, não se pode confundir a divindade, o Ser Supremo, com um humilde ser humano. Jesus veio ao nosso planeta enviado pelo seu pai para nos salvar, para nos livrar da tentação. Escolheu Maria e o seu lar porque achou que aí Jesus teria as condições ideais para crescer em harmonia e virtude. Não confundas as coisas. Nós somos apenas criaturas de Deus e seremos sempre aquilo que ele quiser que nós sejamos.

- A padralhada tem-te doutrinado bem!

- Vós na cidade tornais-vos blasfemos, incréus!    

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