quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha







ARROZ DE PARDAIS

 

     Vila de Melgaço. Corria o mês de Setembro de 1954. As aulas na escola primária ainda não se tinham iniciado. Já se começava a notar o tempo mais fresco e as nuvens cinzentas anunciavam as primeiras chuvas de um outono que se aproximava a passos de gigante. O Lingrinhas, rapaz moreno e seco de carnes, de fisga sempre pronta a disparar, rondava a passarada. No dia seguinte à feira o chão da avenida das tílias ficava cheio de detritos que as aves, sobretudo os pardais, meticulosamente remexiam, a fim de encontrarem algum alimento. Por debaixo daquele castanheiro secular, de castanhas miúdas, com raízes encostadas à muralha medieval, as aves pululavam: lavandiscas, pombas, melros e numerosos pardais.

     O Lingrinhas, na época das castanhas, gastava as suas pedras a atirar ouriços abaixo. A proprietária surgia, furiosa: - «Patifes, malandros, o castanheiro tem dono!» O moço, com meia dúzia de castanhas na mão (os bolsos estavam quase sempre rotos devido às pedras que lá metia), fugia a bom fugir. Como corria que nem uma lebre, não havia perigo. As castanhas que ele mais adorava eram as do outro castanheiro, um bocadinho mais acima. Que pena estar tão próximo das casas. Esse sim: dava umas castanhas grandes e bonitas! Porém aí as coisas fiavam mais fino. As pedras iam bater no telhado, nos vidros das janelas, ou nas garrafas dos pirolitos perfiladas no terraço à espera de serem cheias. Apesar das dificuldades os rapazes espreitavam a ocasião e zás! – uma fisgada, dois ouriços em terra, castanhas na mão e «ai pés para que vos quero!» Os dois filhos do proprietário, João e Sílvio, dono também da fábrica de refrigerantes, apareciam aparentemente zangados: - «Escusam de fugir que nós sabemos quem vocês são; não perdem pela demora.» O Lingrinhas, ao ouvir isto, ficava aterrorizado. Do mais novo não tinha medo, era um paz de alma, não fazia mal a uma mosca; mas o mais velho, esse era temido. Alto, forte, com uma voz de trovão, assustava a valer. O castigo que ele aplicava mostrava-se exemplar: tinham de ajudá-lo a carregar e a descarregar a camioneta. No final dava, aos rapazes, gasosas e esferas de vidro, os conhecidos berlindes. Estavam feitas as pazes. O Lingrinhas ficava com as mãos e os braços doridos, mas feliz por ter feito qualquer coisa de útil.

     Nesse domingo de Setembro o Lingrinhas não levou a fisga. Queria apanhar pardais, muitos pardais, com ratoeiras para ratos. Que trabalho para as conseguir! Não é que fossem caras, isso não! O problema consistia em arranjar o dinheiro suficiente para as comprar. O rapaz, com a sua imaginação prodigiosa, resolvera o assunto: nos dias de feira, entre Junho e Agosto, ia buscar água à Fonte da Vila com uma bilha, espremia para dentro da água um limão, duas pitadas de açúcar amarelo, e pronto: o refresco estava completo! Cinco tostões cada copo. Quando o calor apertava, a bilha esgotava depressa, de contrário, andava todo o dia para esvaziar uma! Com o dinheiro ganho pôde comprar as ditas ratoeiras. Primeiro experimentou junto das tílias – só apanhou dois! Resolveu então armá-las debaixo do castanheiro de castanhas miúdas. Aí sim, apanhou mais nove!                 

     Tinha ido para lá às seis da manhã; de noite sonhara com pardais e ratoeiras. No sonho aparecia a mãe, a quem ele pedia: - «Mãe: quero um arroz de pardais bem feito, como só tu sabes fazer; eu depeno-os.» - «Está bem, meu filho, está bem; mas repartes com o teu padrasto, ele gosta muito desses pitéus.» - «Fica descansada, dou-lhe três ou quatro, o resto fica para mim e para ti, vou-me empaturrar!»    

     Ainda não acordara totalmente e já estava a vestir as calças remendadas, a colocar o cinto de corda, a enfiar pelo magro corpo a velha camisola, que já tinha pertencido a duas ou três pessoas, e a calçar as velhas sandálias oferecidas por um carabineiro. Agarrou um bocado de broa, mais rija do que uma pedra, e desapareceu velozmente pelas escadas de madeira, que rangeram dolorosamente à sua passagem. A mãe apercebeu-se de tudo, mas via o filho tão eufórico que não ousou dizer fosse o que fosse.

     Eram nove e meia quando voltou da caçada. Vinha radiante. Onze passarinhos. Que rica arrozada! Solicitou à mãe que pusesse água ao lume. Impaciente, nem esperou que fervesse. Depenou as aves, todas elas gordinhas, e pô-las em cima da pesada masseira. - «Aqui estão elas; podes cozinhar o arroz.» A mãe, conivente, pediu-lhe: - «Vais a casa da vizinha Isaulinda e compras alface, cebolas e vinho. Não te demores» - «Vou num pé e venho noutro.» - disse ele com entusiasmo.      

     Enquanto a progenitora preparava o magnífico almoço, o Lingrinhas foi jogar a bola para a avenida. A GNR não permitia, mas que diabo: a malta tinha de jogar em algum lado! Até se esqueceu da arrozada! O jogo era importante, se era: Carvalhiças contra a Vila. Nas Carvalhiças havia jogadores fora de série; do lado oposto, O Lingrinhas, o Alemão, O Pirata, e outros, também não lhes ficavam atrás. Seria um verdadeiro jogo de campeonato! A bola era, sem dúvida, o seu fraco: por ela esquecia tudo!

     Logo que termina o “derby” corre para casa esbaforido: - «Então o nosso arrozinho?» - pergunta com ansiedade. - «Só agora?!» - interroga-o a mãe, preocupada. - «O teu “tio” estava com uma fome de lobo e já começou a comer; nem sei se sobrou alguma coisa; eu nem os provei, só comi arroz.» O Lingrinhas destapou o tacho sofregamente e qual não foi o seu espanto ao verificar que apenas um pardalinho tinha resistido aos dentes do bruto. Encarou-o com ódio: - «Seu filho duma cabra! Seu bruxo mau! Devia rebentar como um sapo! À minha custa não comerá mais pardais, só se for veneno!» - e despejou sobre a mesa o que restava do manjar tão apetecido.     

     Saiu porta fora, chorando de raiva. Rogar-lhe-ia pragas até vê-lo caído na valeta, odiá-lo-ia toda a vida, jamais lhe perdoaria.

     O tempo passou. O velho guloso morreu, a mãe do Lingrinhas também, mas ele, embora tenha perdoado, não esqueceu o burlesco episódio. Afinal de contas, era somente um arroz de pardais.

 

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1029, de 15/5/1995.

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