domingo, 17 de dezembro de 2017

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(romance histórico)
 
Por Joaquim A. Rocha




15.º capítulo (continuação)


     No que diz respeito à religião poder-se-á afirmar, sem trair a verdade, que o animismo, magia, feiticismo, e o islamismo, predominavam; contudo, começavam já a surgir nas cidades e vilas, sedes de concelho, igrejas católicas. Em Bissau, capital da província, havia uma catedral, com lugar cativo para o Governador e sua esposa. Nela, todos os domingos, se celebrava uma missa especial: um verdadeiro espectáculo – a chegada do bispo, do governador e sua comitiva (na altura em que eu por lá andei exercia esse cargo o general Arnaldo Schutz), a chegada dos burgueses e militares fardados a rigor. Só visto!

- Estava cheia, com certeza…

- A abarrotar. Escusado será dizer-te que a religião professada pela maioria esmagadora da tropa lusa era a católica; no entanto, durante os três anos que passei no serviço militar, sobretudo os dois últimos, cumpridos na Guiné, não encontrei por parte dos meus camaradas um fervor religioso por aí além. Talvez a culpa não fosse deles – a Igreja, quanto a mim, é a grande culpada.

- Mas por quê, se ela tudo faz para atrair a si mais crentes?          

- Vejamos: padres no mato podias procurá-los com uma lupa que não os topavas, e quando se via algum era de metralhadora na mão, mais guerreiro do que ministro de Cristo! Em todo o período que andei pelas matas guineenses apenas vi dois capelães: quase não se distinguiam dos militares de carreira – fardados, galões de oficial, armas bem colocadas nos seus fortes braços, prontos para a luta.

- Custa a crer; mas se o meu amigo o diz…

- Em Cufar, e graças à iniciativa dum colega, de seu nome António, julgo que já fora sacristão, reunimo-nos uns quantos e juntos rezámos. Não resultou! O clima de guerra que então se vivia não era nada propício a este tipo de manifestações. A partir desse dia nunca mais o tentámos. Quando havia um domingo disponível, e nos encontrávamos numa localidade com igreja, aí sim, íamos à missa. Isso aconteceu pouquíssimas vezes.

- Mas por que não ia um pároco ao vosso acampamento rezar missa?!

- Não sei; talvez houvesse poucos e alguns deles tivessem receio de se arriscar – a cidade oferecia maior segurança e mais comodidade.   

     Quando fui para Bissau, e assistindo às missas que lá se realizavam, com aquele cerimonial todo, comecei a afastar-me da Igreja católica – afinal de contas aquela pompa nada tinha a ver connosco: gente humilde, gente do trabalho, cuja simplicidade já fazia parte do nosso ser. Eles pertenciam a outra classe, a um mundo mais requintado, às elites, ao escol nacional!

- O meu amigo está a generalizar: tal como uma Empresa escolhe mal os seus funcionários, ou um clube desportivo compra por um “balúrdio” um jogador que depois se verifica não render na equipa o que dele se esperava, também a Igreja Católica por vezes não tem sorte com os seus curas e bispos. A Empresa pode ir à falência por má gestão; o clube vende esse jogador e adquire outro; a Igreja, porque espalhada por todo o lado, e porque os seus objectivos não são os lucros da primeira, nem as vitórias do segundo, perde aqui, ganha acolá. Graças a esse equilíbrio vai sobrevivendo e com ela a religião para a qual vive. Não se esqueça que na Igreja há gente muito boa…

- De acordo, Rique. Eu nunca afirmei o contrário; porém a crença dos cristãos fica deveras abalada quando se vê que aqueles que têm obrigação de a prestigiar, encaminhar para ela mais fiéis, a distorcem, a reduzem a um circo de vaidades e interesses. O bom exemplo do sacerdote é muito importante para o crente, para o católico em particular. Para mim o verdadeiro prior é aquele que se afasta da política, da guerra e dos vícios. O padre deve ser amigo do branco, do negro, do amarelo, do vermelho, de todos – seja nacional ou estrangeiro. Não pode, nem deve, discriminar, fazer juízos de valor. O que se desvia destes elementares princípios, destes padrões, não passa de um farsante, de um vigarista, de um ímpio!      

- Em parte estou de acordo consigo, mas também penso que o padre é um ser humano, um homem, com todas as fraquezas e defeitos da espécie humana. Por outro lado, a sociedade também os influencia, também os contamina, eles não vivem em nenhuma redoma de vidro. Até os frades e os monges por vezes são atraídos pelas luzes da ribalta, apesar de desejarem a solidão. Claro que se devem retirar da Igreja logo que verifiquem que a sua vocação, o seu espírito, se está a afastar dos princípios que atrás mencionou. Mas, peço-lhe: continue a sua narrativa e deixemos este assunto tão complexo e polémico, senão, daqui a nada, estamos a discutir se as dúvidas de Jean Barois não passavam de um mero exercício de retórica!

*

- À medida que o tempo fenece, a memória, esse silo que tudo armazena e conserva, vai-me traindo; muitos dos eventos já esqueci de todo e outros brotam da minha memória partidos, fragmentados. Lembro-me, isso sim, de factos importantes que deixaram marcas indeléveis no meu subconsciente. Por exemplo, este: uma noite, estando a minha Companhia colocada em Teixeira Pinto, fomos espalhafatosamente acordados. Era o alferes Briosa, cabelos entre o castanho e o loiro, olhos verdes, brilhantes, dentes pequeninos, jovial, prazenteiro, com uma vitalidade fora do comum, que, em altos brados, nos obrigava a saltar da cama e ir imediatamente vestir a farda. Queria-nos prontos a partir para o mato dentro de dez minutos. Na guerra, o soldado está vinte e quatro horas ao dispor do seu amo e senhor.  

     Já na parada, formados, o nosso capitão Fontelas (fora promovido havia pouco tempo) vociferou: «A nossa “excursão” hoje vai ser até um quartel perto de Bula, que neste preciso momento está a ser atacado pelos nossos “amiguinhos” turras. São cerca de quarenta quilómetros daqui lá. Temos, de qualquer modo, daí chegar o mais rápido possível. As estradas são perigosas, de terra batida, e cheias de surpresas. Todo o cuidado é pouco. Não se esqueçam de levar as bengalas de ferro, pois a partir de um certo sítio – isso ser-vos-á indicado oportunamente – terão de ser usadas para detecção de minas. Não se sabe o tempo que vamos demorar e nem o que nos irá suceder, por isso levem água e rações de combate para dois dias.»

     Entrámos para aqueles camiões enormes, revestidos a aço, com bancos corridos, em madeira, que faziam uma barulheira infernal ao arrancar e nos transportavam aos solavancos durante o percurso. À frente da coluna seguia um desses terríveis monstros pré-históricos, cheio de sacos de areia. A sua invulgar alcunha - «rebenta minas» - não poderia ser mais apropriada. Logo atrás rolava o pequeno blindado, o «chaimite», desejoso por mostrar as suas habilidades.

     Seguimos estrada fora. Percorridos uns bons vinte quilómetros mandaram-nos descer dos carros e continuar a pé. A partir daí seria um autêntico suicídio permanecer dentro daquelas viaturas. Os seus motores ruidosos atrairiam inevitavelmente a atenção dos nossos inimigos, pelo que seria preferível e conveniente demorar mais tempo a socorrer os nossos companheiros mas não correr o risco de irmos todos pelos ares.

     O blindado, mais silencioso e maneirinho, passou para a nossa retaguarda. Algumas viaturas iriam regressar a Teixeira Pinto – tinham cumprido a sua missão.

- Tudo bem planeado…

- É verdade. Uns de um lado e outros do outro da “estrada”, lá íamos picando, picando, na ânsia desesperada de descobrirmos os explosivos mortais. Andámos, andámos, quando de repente uma enorme explosão nos atira a metros de distância. Uma mina assassina tinha rebentado ao passar sobre ela quatro gigantescos pneus. O condutor, pois só ele ia nessa altura no carro, ficou sem jeito. Ainda com vida, gemia com dores. O sangue escorria-lhe pela cara abaixo, cobrindo-lhe os olhos, e os seus membros inferiores mais pareciam os de uma boneca: tinha, sem quaisquer dúvidas, as pernas esfrangalhadas, desfeitas!      

     Enquanto o enfermeiro prestava os primeiros socorros ao ferido, pela rádio lançava-se um apelo ao helicóptero para o transportar a Bissau.

     Por precaução, e sabendo-se, ou presumindo, que o inimigo já tomara conhecimento da nossa presença, arriscámos umas bazucadas em várias direcções. Logo depois o perturbador silêncio invadiu todo o espaço à nossa volta, provocando uma sensação de vácuo, de imponderabilidade.

- O helicóptero demorou muito? – perguntou Henrique.    

- O “pássaro voador” tardava a chegar! Afastado do infeliz, não assisti à sua partida. Não sei se sobreviveu aos ferimentos. O ser humano, ao longo da sua existência terreal de milhões de anos, e depois de ter sido afastado violentamente do paraíso, corrido a pontapé pelo deus todo-poderoso, tem resistido a tantas provações que não me surpreenderia se o meu camarada condutor fosse hoje um homem vivo e com saúde. A nossa espécie tem sete fôlegos como o felino!

- E também é frágil como uma avezinha… - observa o jovem, com um sorriso matreiro nos lábios.

- Tens razão. Depois de se ter desviado a viatura do caminho – ou o que dela restava – avançámos lenta mas resolutamente, com mil cuidados redobrados, até a luz do dia de nós se despedir. A noite não é boa conselheira, sobretudo quando nos encontramos em guerra e no mato; o nosso capitão, homem perspicaz e inteligente, sabia isso. Assim, mandou suster a marcha: de madrugada prosseguiríamos. Barriga para baixo, metralhadoras em posição de fogo, lá nos fomos acomodando ao longo do caminho: uns a oeste, outros a este.

- Ficaram na escuridão total…

- Absoluta! Não se via nada, nem ninguém. Contudo, havia sons: animais noturnos faziam ouvir a caraterística voz; a sua passagem, vagarosa, arrastada, pela escura e demoníaca selva, provocava calafrios de terror. As aves da noite chamavam, numa linguagem codificada, o seu companheiro de farra.

// continua...

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