ENTRE MORTOS E FERIDOS
(romance histórico)
Por Joaquim A. Rocha
15.º capítulo (continuação)
No que diz respeito à religião
poder-se-á afirmar, sem trair a verdade, que o animismo, magia, feiticismo, e o
islamismo, predominavam; contudo, começavam já a surgir nas cidades e vilas,
sedes de concelho, igrejas católicas. Em Bissau, capital da província, havia
uma catedral, com lugar cativo para o Governador e sua esposa. Nela, todos os
domingos, se celebrava uma missa especial: um verdadeiro espectáculo – a
chegada do bispo, do governador e sua comitiva (na altura em que eu por lá andei exercia esse cargo o general Arnaldo
Schutz), a chegada dos burgueses e militares fardados a rigor. Só visto!
- Estava cheia, com certeza…
- A abarrotar. Escusado será dizer-te
que a religião professada pela maioria esmagadora da tropa lusa era a católica;
no entanto, durante os três anos que passei no serviço militar, sobretudo os
dois últimos, cumpridos na Guiné, não encontrei por parte dos meus camaradas um
fervor religioso por aí além. Talvez a culpa não fosse deles – a Igreja, quanto
a mim, é a grande culpada.
- Mas por quê, se ela tudo faz para
atrair a si mais crentes?
- Vejamos: padres no mato podias
procurá-los com uma lupa que não os topavas, e quando se via algum era de
metralhadora na mão, mais guerreiro do que ministro de Cristo! Em todo o
período que andei pelas matas guineenses apenas vi dois capelães: quase não se
distinguiam dos militares de carreira – fardados, galões de oficial, armas bem
colocadas nos seus fortes braços, prontos para a luta.
- Custa a crer; mas se o meu amigo o
diz…
- Em Cufar, e graças à iniciativa dum
colega, de seu nome António, julgo que já fora sacristão, reunimo-nos uns
quantos e juntos rezámos. Não resultou! O clima de guerra que então se vivia
não era nada propício a este tipo de manifestações. A partir desse dia nunca
mais o tentámos. Quando havia um domingo disponível, e nos encontrávamos numa
localidade com igreja, aí sim, íamos à missa. Isso aconteceu pouquíssimas
vezes.
- Mas por que não ia um pároco ao vosso
acampamento rezar missa?!
- Não sei; talvez houvesse poucos e
alguns deles tivessem receio de se arriscar – a cidade oferecia maior segurança
e mais comodidade.
Quando fui para Bissau, e assistindo às missas que lá se realizavam, com
aquele cerimonial todo, comecei a afastar-me da Igreja católica – afinal de
contas aquela pompa nada tinha a ver connosco: gente humilde, gente do trabalho,
cuja simplicidade já fazia parte do nosso ser. Eles pertenciam a outra classe,
a um mundo mais requintado, às elites, ao escol nacional!
- O meu amigo está a generalizar: tal
como uma Empresa escolhe mal os seus funcionários, ou um clube desportivo
compra por um “balúrdio” um jogador
que depois se verifica não render na equipa o que dele se esperava, também a
Igreja Católica por vezes não tem sorte com os seus curas e bispos. A Empresa
pode ir à falência por má gestão; o clube vende esse jogador e adquire outro; a
Igreja, porque espalhada por todo o lado, e porque os seus objectivos não são
os lucros da primeira, nem as vitórias do segundo, perde aqui, ganha acolá.
Graças a esse equilíbrio vai sobrevivendo e com ela a religião para a qual
vive. Não se esqueça que na Igreja há gente muito boa…
- De acordo, Rique. Eu nunca afirmei o
contrário; porém a crença dos cristãos fica deveras abalada quando se vê que
aqueles que têm obrigação de a prestigiar, encaminhar para ela mais fiéis, a
distorcem, a reduzem a um circo de vaidades e interesses. O bom exemplo do
sacerdote é muito importante para o crente, para o católico em particular. Para
mim o verdadeiro prior é aquele que se afasta da política, da guerra e dos
vícios. O padre deve ser amigo do branco, do negro, do amarelo, do vermelho, de
todos – seja nacional ou estrangeiro. Não pode, nem deve, discriminar, fazer
juízos de valor. O que se desvia destes elementares princípios, destes padrões,
não passa de um farsante, de um vigarista, de um ímpio!
- Em parte estou de acordo consigo, mas
também penso que o padre é um ser humano, um homem, com todas as fraquezas e
defeitos da espécie humana. Por outro lado, a sociedade também os influencia, também
os contamina, eles não vivem em nenhuma redoma de vidro. Até os frades e os
monges por vezes são atraídos pelas luzes da ribalta, apesar de desejarem a
solidão. Claro que se devem retirar da Igreja logo que verifiquem que a sua
vocação, o seu espírito, se está a afastar dos princípios que atrás mencionou.
Mas, peço-lhe: continue a sua narrativa e deixemos este assunto tão complexo e
polémico, senão, daqui a nada, estamos a discutir se as dúvidas de Jean Barois
não passavam de um mero exercício de retórica!
*
- À medida que o tempo fenece, a
memória, esse silo que tudo armazena e conserva, vai-me traindo; muitos dos
eventos já esqueci de todo e outros brotam da minha memória partidos,
fragmentados. Lembro-me, isso sim, de factos importantes que deixaram marcas
indeléveis no meu subconsciente. Por exemplo, este: uma noite, estando a minha
Companhia colocada em Teixeira Pinto, fomos espalhafatosamente acordados. Era o
alferes Briosa, cabelos entre o castanho e o loiro, olhos verdes, brilhantes,
dentes pequeninos, jovial, prazenteiro, com uma vitalidade fora do comum, que,
em altos brados, nos obrigava a saltar da cama e ir imediatamente vestir a
farda. Queria-nos prontos a partir para o mato dentro de dez minutos. Na guerra,
o soldado está vinte e quatro horas ao dispor do seu amo e senhor.
Já na parada, formados, o nosso capitão Fontelas (fora promovido havia pouco tempo) vociferou: «A nossa “excursão”
hoje vai ser até um quartel perto de Bula, que neste preciso momento está a ser
atacado pelos nossos “amiguinhos” turras. São cerca de quarenta quilómetros daqui
lá. Temos, de qualquer modo, daí chegar o mais rápido possível. As estradas são
perigosas, de terra batida, e cheias de surpresas. Todo o cuidado é pouco. Não
se esqueçam de levar as bengalas de ferro, pois a partir de um certo sítio –
isso ser-vos-á indicado oportunamente – terão de ser usadas para detecção de
minas. Não se sabe o tempo que vamos demorar e nem o que nos irá suceder, por
isso levem água e rações de combate para dois dias.»
Entrámos para aqueles camiões enormes, revestidos a aço, com bancos
corridos, em madeira, que faziam uma barulheira infernal ao arrancar e nos
transportavam aos solavancos durante o percurso. À frente da coluna seguia um
desses terríveis monstros pré-históricos, cheio de sacos de areia. A sua invulgar
alcunha - «rebenta minas» - não
poderia ser mais apropriada. Logo atrás rolava o pequeno blindado, o «chaimite», desejoso por mostrar as suas
habilidades.
Seguimos estrada fora. Percorridos uns bons vinte quilómetros
mandaram-nos descer dos carros e continuar a pé. A partir daí seria um
autêntico suicídio permanecer dentro daquelas viaturas. Os seus motores
ruidosos atrairiam inevitavelmente a atenção dos nossos inimigos, pelo que
seria preferível e conveniente demorar mais tempo a socorrer os nossos companheiros
mas não correr o risco de irmos todos pelos ares.
O blindado, mais silencioso e maneirinho, passou para a nossa
retaguarda. Algumas viaturas iriam regressar a Teixeira Pinto – tinham cumprido
a sua missão.
- Tudo bem planeado…
- É verdade. Uns de um lado e outros do
outro da “estrada”, lá íamos picando,
picando, na ânsia desesperada de descobrirmos os explosivos mortais. Andámos,
andámos, quando de repente uma enorme explosão nos atira a metros de distância.
Uma mina assassina tinha rebentado ao passar sobre ela quatro gigantescos
pneus. O condutor, pois só ele ia nessa altura no carro, ficou sem jeito. Ainda
com vida, gemia com dores. O sangue escorria-lhe pela cara abaixo, cobrindo-lhe
os olhos, e os seus membros inferiores mais pareciam os de uma boneca: tinha,
sem quaisquer dúvidas, as pernas esfrangalhadas, desfeitas!
Enquanto o enfermeiro prestava os primeiros socorros ao ferido, pela
rádio lançava-se um apelo ao helicóptero para o transportar a Bissau.
Por precaução, e sabendo-se, ou presumindo, que o inimigo já tomara
conhecimento da nossa presença, arriscámos umas bazucadas em várias direcções.
Logo depois o perturbador silêncio invadiu todo o espaço à nossa volta,
provocando uma sensação de vácuo, de imponderabilidade.
- O helicóptero demorou muito? – perguntou Henrique.
- O “pássaro voador” tardava a chegar! Afastado do infeliz, não assisti à
sua partida. Não sei se sobreviveu aos ferimentos. O ser humano, ao longo da
sua existência terreal de milhões de anos, e depois de ter sido afastado violentamente
do paraíso, corrido a pontapé pelo deus todo-poderoso, tem resistido a tantas
provações que não me surpreenderia se o meu camarada condutor fosse hoje um
homem vivo e com saúde. A nossa espécie tem sete fôlegos como o felino!
- E também é frágil como uma avezinha…
- observa o jovem, com um sorriso
matreiro nos lábios.
- Tens razão. Depois de se ter desviado
a viatura do caminho – ou o que dela restava – avançámos lenta mas resolutamente,
com mil cuidados redobrados, até a luz do dia de nós se despedir. A noite não é
boa conselheira, sobretudo quando nos encontramos em guerra e no mato; o nosso
capitão, homem perspicaz e inteligente, sabia isso. Assim, mandou suster a
marcha: de madrugada prosseguiríamos. Barriga para baixo, metralhadoras em posição
de fogo, lá nos fomos acomodando ao longo do caminho: uns a oeste, outros a
este.
- Ficaram na escuridão total…
- Absoluta! Não se via nada, nem
ninguém. Contudo, havia sons: animais noturnos faziam ouvir a caraterística
voz; a sua passagem, vagarosa, arrastada, pela escura e demoníaca selva,
provocava calafrios de terror. As aves da noite chamavam, numa linguagem codificada,
o seu companheiro de farra.
// continua...
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