quinta-feira, 23 de março de 2017

LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
 
Por Joaquim A. Rocha 



desenho de Luís Filipe G. Pinto Rodrigues

XIV

Hesitei em dizer-to: agora já sabes!

 
     Dois homens, meus clientes e amigos, sabiam da marosca; contudo, não se queriam comprometer, passar por abelhudos. Vim a saber mais tarde que tiveram o seguinte diálogo:

 
- Não sei se o avisaremos, a Bera anda a fisgá-la e o crédulo rapaz desconhece tudo, um dia destes ela está casada, arranca para a França com o Artur da Teresa, e o pobre desgraçado apanha um desgosto que nunca mais terá cara para aparecer a ninguém, ele já é um pouco tímido, coitado, a mãe apanha cada borracheira, não ganha juízo aquela pobre de Cristo, nem merece este filho, é um ótimo rapaz, e agora isto, é demais, ainda por riba está quase a ir para o serviço militar, já está apurado na inspeção médica.

- Eu acho que devíamos avisá-lo, pelo menos ficava prevenido, olha que as mulheres são de se lhe tirar o chapéu, aparece por aí um tipo com umas coroas e ela vai de se lhe entregar; nem sequer respeitam os compromissos já assumidos, o que elas querem é a nota, boa roupa, boa comida, pinturas, botar figura, mas olha que quando for para a França ela vai ver, terá de trabalhar como uma escrava, limpar o esterco dos outros, que as francesas não fazem nada, são as criadas que lhes fazem tudo, ela se casasse com o Cândido seria pobre, mas era dona da casa dela, assim vai ser criada de servir de uma estrangeira, o que ela pensa, que vai para lá passear?

- Ouvi dizer que o Artur vai levar o sogro com ele, já andam a tratar disso, até parece que é tudo um negócio, vende a catraia e consegue ir para França com o genro, ao que nós chegamos, nunca esperei ver isto, olha que no meu tempo de rapaz havia mais seriedade no casamento, agora aparecem por aqui no verão, arranjam rapariga e casam, nem chega a haver namoro, o matrimónio assim nem é abençoado por Deus, ouvi dizer que anda por aí um emigrante dos Arcos de Valdevez à procura de noiva, diz que tem oitocentos contos de réis no Banco, quem mos dera, parece que a Sofia do Bogas vai casar com ele, a mastronça, já andou com um e com outro, a coisinha dela deve assemelhar-se a uma peneira rota, a um longo túnel, e olha que ainda não tem sequer dezanove anos de idade, começou cedo a galdéria. Os pais dela não vão com certeza perder esta oportunidade!

- O Cândido é um ingénuo, um parvalhão, um lorpa; eu se fosse a ele desligava logo, nem lhe olhava para a cara, que ela é um pedaço de mulher, lá isso é, boa que se farta, o Artur teve olhinhos, olha se ele foi buscar outra, havia por aí ainda raparigas solteiras e descomprometidas, agradou-se desta, pudera! Bonita e boa, com um namorado pacífico. O Cândido bem lhe pode dizer adeus, se calhar nem sequer molhou a sopa, que ele é um anjinho, devia estar à espera da noite do casamento, ao menos tivesse aproveitado, mas o palerma pensava que ela não lhe fazia esta patifaria, não conhece as mulheres, são capazes de tudo, só querem luxo, andar de carrinho, dar nas vistas, causar inveja às outras, agora que chupe no dedo, e que não se ponha a pau, não, que o Artur é um latagão e ainda o estoira de pancada se ele lhe disser alguma coisa, coitado, não lhe queria estar na pele, mas ele também não se vai meter com ele, quando souber é bem capaz de se pôr a choramingar como uma donzela, coitadito, tão sensível.

- Lá diz o ditado: «o marido cornudo é o último a saber», ele ainda não era marido, mas era como se fosse, nós já o considerávamos como tal, aos anos que eles se namoram, e a família, não viam outra coisa: «o nosso Candinho», só conversa. Agora já estão ao lado do emigrante: «tão bom rapaz, trabalhador, poupado…» Logo viraram o bico ao prego, oportunistas é que eles são, não deviam pactuar com esta maldade, isso não se faz, não sei qual é a opinião do padre Alberto, mas olha que ele não deve ter gostado desta vil e feia ação, mas claro vai ter de os unir pelos laços do matrimónio.                    

- Ó Chico, o que os padres querem é maçaroca, e olha que o Artur é bem capaz de lhe untar bem as mãos, de lhe dar uma boa nota, das maiores, que ele tem pressa e não quer perder a noiva, o sacerdote que lhe apresse o matrimónio, que ande depressa com a papelada, um mês voa.

- Ó Tónio, cá na minha, penso que o moço devia ser avisado, o rapaz vai ter um chelique quando souber.

- Que se cozam, depois ainda dizem que a gente anda a intrometer-se na vida deles; olha, mulheres há muitas, quando vier da tropa que arranje outra, o futuro a Deus pertence, eu não me meto nisso, se quiseres avisá-lo avisa-o, mas não me impliques a mim nesses imbróglios. // continua...    

 

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