terça-feira, 30 de junho de 2015

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS

Por Augusto César Esteves





(continuação - ver a 6/6/2015))

In nomine Patris et Filii et Spirictus Sancti. Ego Alfonsus Dei gratia Portugalensium Rex pro remedio anime mea atque remissione omnium peccatorum meorum vobis domino Joani Abati de fenales et omnibus fratribus ibidem sub regula Beati Benedicti deo militantibus atque universis successoribus vestris dono atque concedo totum quod in presentarium habeo ab ila vite de Melgazo usque ad terminum de Chavianes quo modo claudit per cotarum et inde usque ad minium. Habeatis igitur vos et omnes successores vestri supra dictum locum evo perhenni. Facta scriptura firmitatis nono Kalendas novembris era MCCXI Ego Alfonsus Rex hanc kartan propriis manibus confirmo.
  
Ego Rex Sancius libenti animo confirmo.
Principe terre illius suerio arias.
Episcopo beltrano ecclesiam tudensem regente.
Fernandus notuit» ([1])

     Estudara o processo em casa; examinara-o com diligência; ponderara o libelo, a contrariedade, a réplica, todas as peças, enfim, e pelo que leu e do processo constava, sentenciou. Os réus julgaram preteridos os seus direitos e com todo o respeito apelaram. Não lhes valeu a pena, porque a Relação do Porto no acórdão lavrado deixou escrito: «Bem julgado foi pelo Juiz de Fora da vila de Melgaço na sentença apelada que confirmam...»
      E o apelante teve de pagar as custas de ambas as instâncias, no total de 37$277 réis e o corregedor, ainda em Melgaço, viu e apreciou aquele curto acórdão, confirmativo da sua ponderação e do seu saber. No fim do mês voltou a sentenciar, mas num processo de inventário, que vinha a arrastar-se pelos tribunais desde 1798 com embargos de terceiro, agravos e apelações e trazia toda a família do morgado do Reguengo embrulhada em demandas.
     Iniciara-o o juiz de fora João Vaz Soares, natural de Abrantes, antes de ser eleito provedor da Santa Casa e mesmo antes, quero crer, da sua esposa Dona Luísa da Piedade Pereira de Almeida aqui dar à luz um filho. Nele havia despachos do Dr. Joaquim Teotónio Segurado, outro juiz de fora, e se os não tinha do licenciado Subagôa e Vasconcelos isso fora devido, possivelmente, ao processo no seu triénio andar pelas casas dos Desembargadores da Relação do Porto. Outros mais, apresentava, e até um deles, reflectindo curiosa faceta da organização judicial da época, saíra dos lábios do conjurado da Casa de ao pé da Matriz, Caetano José de Abreu Soares, despacho de que o Dr. Gama agravara na audiência de 28/1/1802.
          Dera origem ao referido inventário – não se assustem agora os leitores com o tropel de tanta gente – o falecimento de D. Ana Joaquina Rosa de Castro de Noronha Moraes Sarmento, casada com Lourenço Pereira Leite de Barros, senhor da Casa da Tojeira, em São Tiago de Faia, de Basto, de quem descendem os Viscondes de Pereira e Coruche e logo na descrição de bens, D. Caetana Vitória, mãe da falecida, embrulhara tudo, falando até de seu defunto marido, Miguel de Castro Soares de Vasconcelos, o velho morgado do Reguengo, como um estoura-vergas, com dares e tomares na justiça; mas isto fica para ser desenvolvido em ocasião mais propícia, ou seja quando apurar as causas do processo-crime, porque ninguém deixa de ser pessoa de bem, lá porque ensinou qualquer canalha a ser correcto. Ora, o Juiz de Fora, fora recebido pelo Cavaleiro da Ordem de Santo Iago com todas as provas de deferência e não tardou a ser apresentado ao fidalgo galego e a conhecer o premente motivo do convite tão matinal.
  A celeridade vertiginosa dos acontecimentos impressionou-o e surpreendeu-o tanto como as confidências ouvidas àqueles dois cunhados. A conferência estava ainda no princípio quando a fidalga dona da casa introduziu naquela Sala do Conselho mais uma visita, o Licenciado António de Castro e Sousa. Como primogénito do Morgado de Galvão, o Dr. António de Castro Sousa e Menezes era, em Portugal, o imediato e legítimo sucessor desta casa e vínculo e da Capela de Santo António, começada a erguer em 1694 por D. Madalena Felgueiras e irmãs «com o favor de Deus e licença do arcebispo primaz» e, na Galiza, por herança de sua mãe, D. Maria Sebastiana dos Passos Sarmento Puga e Quinhones, havia de ser Senhor dos Morgados de Pontevedra, do de Barouta, no Ribeiro de Avia, em S. Clodio, entre Carvaliño e Ribadávia, do da Boa Vista e da Capela de Nossa Senhora da Conceição, na igreja de S. João de Alveios, jurisdição de Crescente. Nascera em 2/8/1767. Seu pai, Matias de Sousa de Castro e Menezes caíra cedo na orfandade e a sua vida nem sempre correra em mar de leite. Porque a casa estava endividada, foi necessário, mais para fugir à taxa alta dos juros do que para satisfazer ou calar credores renitentes, vender em 1763 alguns bens sitos em Guimarães.
     Certo que seis anos depois, para acrescer à quintazinha do Arrochal, tão maltratada durante a ausência dum velho morgado, e sargento-mor de Monção, comprara naquele sítio mais um campo a Silvestre Esteves e mulher Maria Lourenço, dos Ferreiros, de Prado, mas também, em 1787, teve de transaccionar primeiro com uma das irmãs e seu marido num processo por alimentos e noutro por sonegados e depois com os outros interessados. Arrastavam-se os autos no tribunal desde 1782, mas como não é agora oportunidade de evocar lutas de família à volta dum tacho pequeno, não sacudo o pó dessas folhas enegrecidas e hoje curiosamente conservadas numa prateleira da minha estante.
    A moralidade nada perde com esta fuga, porque namoros houve-os sempre e... atrevidos também. Ora Matias de Sousa, possivelmente por ter nascido franzino e ter atravessado a meninice sempre doente, cortou com a carreira das armas e encaminhou os filhos para o campo das letras. À vida eclesiástica destinou apenas o filho Diogo António, que chegando a tomar ordens menores, casou depois na Casa do Rio do Porto.
  Os outros foram para os estudos superiores, mas o Joaquim de Sousa e o Joaquim de Menezes, filhos de homem enfermiço, não tiveram resistência física para acabarem os cursos, porque um ficou enterrado na igreja do Samuel, termo de Soure, e o outro na de S. João de Almedina, na cidade Universitária. Dos estudantes escapou apenas o Dr. António de Castro que, por certo, recebeu aqui em Melgaço as primeiras lições ministradas por seu tio-avô Frei António de Castro, D. Abade do Mosteiro de Fiães e no fim da vida pároco da referida freguesia de Samuel e abade da igreja de S. Paulo, junto da cidade do Mondego. // Abraçada a carreira das letras, o Dr. António de Castro Sousa Menezes frequentou com brilho a Universidade de Coimbra e muito podia ter convivido com o Dr. José Acúrsio das Neves para do melgacense o autor da História Geral das Invasões Francesas deixar escrito «a sua honra e patriotismo me são pessoalmente bem conhecidos  // (continua)...



[1] Sumário: 1173, Novembro, 1 — D. Afonso Henriques doa ao abade D. João e aos monges do Mosteiro de Fiães quanto possuía desde a [Fonte da] Vide, de Melgaço, até ao limite de Chaviães e desde o Cótaro ao rio Minho. // Documento confirmado pelo rei D. Sancho I, associado ao governo, desde 1169, e subscrito pelo governador da terra, Soeiro Aires, e pelo bispo de Tui, D. Beltrão, e pelo notário Fernando. (J.M.)

1 comentário:

  1. Prezado Joaquim Rocha,
    Li interessado seu relato sobre os Castro e Sousa e gostaria de saber se tem algo mais sobre a família, notadamente no século XVIII. Descendo de Jerônimo de Castro e Sousa, passado para as Minas Gerais no Brasil no início do século XVIII e cujas ligações com Portugal me são desconhecidas, exceto que era natural da Vila de Melgaço. Ele se casou com Francisca Vieira de Moraes, natural de Minas, com quem teve, ao menos, dois filhos: um homônimo e Antônio de Castro e Sousa Medronho, casado em 1786. Como disse, tenho interesse em tentar estabelecer a relação desse Jerônimo emigrante com a família que permaneceu no Reino.
    Desde já agradeço sua atenção,
    Rafael Baker Botelho

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