quinta-feira, 18 de junho de 2015

ENTRE MORTOS E FERIDOS 
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)

Romance histórico

                         Por Joaquim A. Rocha


... (continuação)

- Mas vocês, nessa altura, já eram obedientes por natureza – observa Henrique.
- Nem todos. Os do meio rural, sim; os da cidade, porque também lá havia alguns, eram lixados. Com vinte anos apenas, já tinham vivido muita coisa.
     Mas voltando ao sargento: no quartel, tornava-se um reizinho! Dava ordens a torto e a direito, gritava, gesticulava, enfim estava no seu mundo.  
- E vocês andavam numa fona! – comenta Henrique, ironicamente.
- É verdade; numa roda-viva! Não nos dava descanso!
- Havia exceções – aventa o moço.
- Naturalmente. Conheci alguns desses sargentos, humanos, atenciosos. Ficaram no exército porque ganhavam mais ou menos e usufruíam de algumas regalias. Com a quarta classe, muitas vezes obtida como adulto, ou no próprio exército, não teriam grandes hipóteses de arranjar bons empregos, de angariar uns cobres, a não ser na emigração; assim, com aquela patente, ficavam praticamente equiparados a professores do ensino primário! O trabalho não os matava; aquilo para eles já era rotineiro.
- E a guerra?
- A guerra trouxe-lhes alguns benefícios materiais, embora arriscassem – não todos – a vida.
     Mas continuando… Fizemos vários exercícios antes de envergarmos as cinzentas fardas: de escrita, de cálculo, de agilidade mental e visual (os chamados testes psicotécnicos), e os imprescindíveis exames médicos.
- Passou a tudo, com uma perna às costas – arriscou Henrique.
- Passar, passei, mas não foi fácil. De acordo com aqueles que analisaram as minhas provas, eu daria um razoável condutor auto rodas. Seria, depois de longos treinos, a minha “ilustre” especialidade. Nunca, até então, tinha conduzido um carro, nem sequer fazia a mínima ideia do que era pegar num volante! Eu era pobre como Job, mal ganhava para comer e vestir, quanto mais para ter carro. Na minha pequena vila somente meia dúzia de pessoas possuía automóvel: o juiz, o médico, o doutor delegado, um ou outro padre, e os contrabandistas ricos. Estes últimos, sim, possuíam dois ou três carros ligeiros, e também pesados, nos quais transportavam as mercadorias para Espanha.  
- «Terra de raia, terra de contrabando» – aponta Henrique, filosoficamente.
- Assim é, meu amigo. Os espanhóis, durante a guerra civil, que durou, como sabes, de 1936 a 1939, compravam tudo: azeite, ovos, milho, café, sabão, pedras de isqueiro, tabaco… Até tripas! Alguns contrabandistas enriqueceram, outros, perdulários, gastaram tudo com amantes e negócios mal geridos – não tiveram cabeça!
- Há quem diga que houve corrupção… - acicata o rapaz.
- Houve… e muita! O soldado da Guarda-Fiscal ganhava um ordenado de miséria. Se fosse solteiro, e vivesse em casa dos pais, ia-se aguentando; mas quando casava, e vinham os filhos, o vencimento não dava para nada. Na década de sessenta auferiam pouco mais do que mil escudos por mês! Só dava para a bucha! A mulher não tinha emprego, tratava da comida, da roupa, dos filhos… e da horta; quase todos possuíam uma hortinha onde colhiam hortaliça (couves, repolhos, alface), cebola, tomate, pimentos, etc.
     A instrução dos filhos não ia além do ensino primário, pois mandá-los para a cidade – Viana ou Braga – era privilégio de poucos. Não causava qualquer surpresa ver-se um descendente dum elemento da Guarda-Fiscal a trabalhar na agricultura, ou como simples empregado de balcão, sobretudo nas cidades de Lisboa e Porto, ou noutras atividades humildes. Os empregos bem remunerados e de prestígio estavam nas mãos dos grandes senhores.
- E não foi sempre assim? – pergunta Henrique.
- Suponho que sim, mas não está certo. A minoria tudo domina; a maioria trabalha e obedece!
- Nesse caso… – impacientou-se Henrique, já cansado de tantos rodeios.
- Como ia dizendo, os guardas, segundo consta, fechavam os olhos mediante uma verba paga pelos grandes contrabandistas, porque aos pequenos, como não davam um centavo, a esses, se os apanhassem, não lhes perdoavam: tudo apreendido e multa para cima. Alguém tinha que desempenhar o papel de bode expiatório do sistema. Mas voltando ao assunto inicial…
    
Aqui, Henrique, olhando para o relógio, dá um pequeno grito:

- Santo Antoninho! Tenho que me encontrar com a Rita, a minha prima. Ia-me esquecendo. Desculpe Cândido, a conversa estava interessante, mas será retomada na próxima oportunidade, se assim o desejar.
- Vai-te embora, homem; não se deve fazer esperar as senhoras, sobretudo as primas – comenta com graça e ironia. - Voltar-nos-emos a encontrar no próximo fim-de-semana.

       Henrique, com um sorriso de orelha a orelha, diz-lhe:

- Com pena minha, a Rita já tem noivo. Para que saiba, eu não tenho sorte nem com o jogo, nem com as mulheres.
- Pobrezinho! Que pena eu tenho de ti.

     E assim se despiram, a rir.  

      Cândido ficou só e pensativo. Sempre que abordava o tema da guerra ficava triste, absorto, incapaz de reagir durante algum tempo. Aquela ferida dolorosa funcionava como uma úlcera; só o tempo, pensava ele, seria o remédio para a cura. De qualquer forma tivera sorte, não fora ferido, estava ali, vivo e com saúde, apesar daquelas dores de estômago, que de vez em quando o incomodavam. Quantos companheiros vira tombar, quantos tinham vindo para a metrópole feridos. Quantos! O melhor era ir dar uma volta pela cidade, ver as montras na Rua do Ouro e Rua Augusta, subir depois ao Chiado, à tardinha acendiam as luzes, que bonito tudo ficava, era sempre festa. Na sua terra, a mais bonita do mundo, mas medieval, coitada, não havia luzes à noite. Candeeiros aqui e ali, alguns com as lâmpadas fundidas, mal alumiavam as poucas ruas que havia; as lojas não tinham praticamente vitrinas, e as que tinham não estavam decoradas – ninguém se importava com isso!
     Olhou para o relógio, a sua “cebola”, como o designava, e alarmou-se: estava na hora de jantar. Os restaurantes ao domingo não gostavam de fechar tarde – cliente que não chegasse a tempo, não era atendido. Claro que havia restaurantes que só encerravam às tantas, mas esses eram os de luxo, não eram para a sua magra bolsa. Ele ia às tascas, às tabernas, sentava-se naquelas mesas quadradas, com uma toalha de pano ruim, aos quadradinhos, que já fora lavada milhares de vezes. Já o conheciam:

- Então que vai hoje, Sr. Cândido?
- O mesmo de sempre, Sr. Sousa. Para não variar. Olá menina Quitéria, sempre linda.  

     A rapariga ficava ruborizada, um piropo daqueles sabia-lhe bem, embora pensasse de si para si que dali nada viria de concreto, de namoro ou casamento. Canté! Com um empregado de escritório. Ela, apenas com a 3.ª classe, estava condenada a casar com um moço de mesa, como ela, ou com um operário, ou talvez, quem sabe, com um estivador, profissões muito mal remuneradas.
      Passado pouco tempo era-lhe servido o frango com arroz e batatas fritas, um simulacro de salada: alface, tomate e cebola, muito vinagre e pouco azeite, ruim, o pior que havia, misturado com óleo, que ficava mais em conta.
     Depois do jantar dava mais uma volta pelas ruas, pejadas de gente, e ia deitar-se. O quarto era pequeno, a cama pequeníssima e pouco confortável. Quem sabe se um dia a sorte surgiria, sorrateira; comprava o seu apartamento, deitar-se-ia numa cama larga, ao lado da sua mulher, bonita, sorridente, culta… Quem sabe?
     No dia seguinte, segunda-feira, levantou-se às seis e meia da manhã, ainda ensonado, bebera-lhe bem no dia anterior, e dirige-se à casa de banho a fim de cortar a barba, agora já composta, e tomar o seu duche. Como a casa tinha mais hóspedes, teria que esperar a sua vez, com paciência. Haveria que dar tempo ao tempo, viriam melhores dias, a esperança era a sua companheira inseparável. Já passara por pior!           
        A semana passou-a como sempre: escritório de dia e aulas à noite, na Escola Comercial Veiga Beirão. Aquele curso era interessante, permitir-lhe-ia ser ajudante de contabilista, e o ordenado seria melhor do que agora, que mal dava para comer e pagar o quarto. O grande problema residia nos professores: alguns mal preparados cientificamente, outros, embora com grandes conhecimentos, estavam cansados depois de um dia de trabalho no Banco ou na Companhia de Seguros. Enfim, o ensino noturno era o parente pobre do sistema educativo. O esforço individual era a chave para obter bons resultados – sem ele ficar-se-ia pelo caminho. 
        Namorar não queria, era ainda cedo; quando ganhasse bem, pensaria nisso. Na terra tivera um princípio de namoro, mas fora informado de que ela já casara com um emigrante. «Melhor!», pensava ele; «assim não tenho compromissos com ninguém, sou completamente livre.» Claro que isso disfarçava uma profunda frustração, mas não queria dar o braço a torcer. Aquela rapariga, de uma beleza ímpar, dera-lhe a volta ao miolo, mas ele, tímido, não agira a tempo, e perdeu-a. Agora já era tarde de mais. Provavelmente já seria mãe de um ou dois filhos, com nomes franceses… Enfim, o melhor era esquecer.

       No domingo, tal como combinara com Henrique, lá foi ter à esplanada e sentou-se à espera do amigo. Sentia uma ânsia imensa de lhe contar tudo, desabafar, desentulhar aquela amálgama de mazelas que lhe obstruíam o peito. Quando ele se aproximou, disse-lhe, a rir:

- Já pensava que não vinhas; deves estar farto de escutar a minha insípida história.
- Não diga isso, nem a brincar. A sua odisseia militar é digna de ser escutada. Pena é que durante a semana a gente não se possa encontrar, mas o trabalho não o permite. Continue, por favor…
- Tudo bem! Fico satisfeito por saber que estás a gostar… Dos mil que éramos no princípio, ficámos seiscentos. Aos restantes quatrocentos, não classificados, enviaram para outros quartéis, onde seriam treinados como atiradores. Esses seriam lançados para a guerra mais cedo, dentro de cinco ou seis meses, como os leões para o circo de Roma no tempo de Nero!
        Logo a seguir à seleção, um oficial de secretaria, brincalhão nas horas vagas, e pensando talvez que possuía carradas de graça, mas de mordaz humor, tem o atrevimento de me perguntar: - «Preferes outra especialidade, ou estás satisfeito com esta
     Ingénuo até à medula, e nada habituado a lidar com gente tão fina e de língua afiada, respondo melifluamente: «Se pudesse escolher, gostaria de ser operador cripto, como foi o meu irmão
     A gargalhada soa, sarcástica, metálica, inumana! O monstro ria-se de mim! Na minha cara! As lágrimas vieram céleres, fáceis, a meus olhos. Seria, podes crer, a última vez que isso me aconteceria. Apercebi-me então que estava na selva e aí, nesse universo de maldade e perversão, não se chora: resiste-se, faz-se das tripas coração, engolem-se todos os sapos vivos e moribundos, aprende-se quase instantaneamente a eterna e sublime arte da sobrevivência.
     Os seiscentos mancebos aprovados foram divididos em três grupos de duzentos cada um. O primeiro grupo ficava já no quartel; o segundo iria para casa e voltaria em Fevereiro; os restantes duzentos rapazes apresentar-se-iam em Março. Tudo matematicamente elaborado, milimétrico, perfeito! Na tropa não se improvisa: é tudo pré-determinado, tudo feito a régua e esquadro.
     Simularam um qualquer sorteio, e a mim calhou-me o terceiro grupo. Como não tinha dinheiro em abundância, e porque também era poupado, quase forreta, e não sabendo o que o futuro me reservava, decidi regressar à minha querida terra à boleia. Pus-me na berma da estrada e comecei a fazer o sinal caraterístico, isto é, fechei os quatros dedos mais compridos da mão e com o polegar bem esticado indicava a direção que pretendia seguir. Nunca antes andara à boleia, mas vi outros fazerem o mesmo e logo se aprende, se adquire o jeito. Nessa altura, e por razões óbvias, que não vêm ao caso, não se tornava tão perigoso, como agora, tal procedimento.
    Quem tinha carro, e eram poucos, sabia que a maioria do povo português era pobre. Uma boleia era sempre bem-vinda, pois economizava uns cobres a quem a recebia.
     Os automóveis passavam como bólides, indiferentes e alheios àquele braço estendido, àquele olhar de criança desprotegida. Carros de quatro ou cinco lugares apenas transportando uma ou duas pessoas! A viatura pertencia-lhes, dela podiam fazer o que bem quisessem, mas afinal de contas a solidariedade, o humanismo cristão tão apregoado no púlpito, tornavam-se em meros conceitos esvaziados de conteúdo. Por outro lado, um jovem fardado, um soldado da pátria, que iria brevemente defender o território nacional, ameaçado por bandidos, como os salazaristas diziam, por hostes de negros, sedentos de poder, merecia o apoio de todos os portugueses. Mas não! Passavam e não me viam! Não queriam que um pobre soldado se sentasse a seu lado, eles, que tinham carro, logo outro estatuto!
     Já desesperado, eis que um automóvel ligeiro, com alguns anos, mas ainda com bom aspeto, pára junto de mim. O condutor, homem de meia-idade, complacente, interroga-me: «Para onde se dirige?» Eu, ainda incrédulo, algo desconfiado, respondo-lhe: «Vou para Melgaço.» O senhor, numa voz algo emocionada, diz-me: «Para Melgaço!!! Que coincidência, sou precisamente de lá, embora resida e tenha o meu emprego no Porto; vou neste preciso momento fazer uma visita a minha irmã, a Brígida, conhece
    Respondi que sim, por sinal conhecia-a muito bem. Numa vilazinha tão pequena como a nossa toda a gente se conhecia, éramos todos vizinhos e amigos. Era proprietária de uma loja de louças junto à igreja matriz, ali pertinho do castelo medieval, o qual, segundo reza a História, fora mandado construir por D. Afonso Henriques, o nosso primeiro rei. Esse monarca também dera ao concelho, em 1183, um foral, que era uma espécie de constituição concelhia. Eu tinha apenas a sexta classe, ou seja, a quarta classe mais dois anos de um curso noturno «curso complementar de aprendizagem agrícola», mas sabia alguma coisa de História, porque gostava dessa disciplina e tinha como livro de cabeceira uma História de Portugal.
     A senhora Brígida era mãe da Teresinha, como nós lhe chamávamos carinhosamente. O pai da menina, ninguém sabia concretamente quem era, falava-se num contrabandista, talvez um padre ou um juíz, era um segredo bem guardado, provavelmente já teria morrido.
     O senhor estava radiante com a minha companhia. Pelo caminho conversámos sem parar. Ele, mais do que eu. Era pracista, ou técnico de vendas, como agora se diz. Tinha duas filhas adolescentes, mostrou-me as fotografias, amorosas, «acompanham-me sempre», disse com ternura.
    Convidou-me a ir a sua casa quando voltasse ao Porto. Teria muito gosto nisso, fazia questão em apresentar-me à esposa e filhas. Era sempre bom ter alguém da mesma terra para conversar, lembrar aqueles tempos felizes, mas de relativa miséria, tempos que jamais voltariam.
- Claro que foi visitar esse senhor e a família – interrompeu Henrique, atento ao desenrolar da história.
- Não fui! Por timidez, para não incomodar. Só muito mais tarde me apercebi que a presença de um patrício no nosso lar, quando se vive longe, nos traz imensa alegria e nunca aborrecimento. Essas coisas aprendem-se por experiência própria. Uma pessoa da nossa terra, um conterrâneo, é um pedacinho dessa mesma terra, faz parte do nosso ser, é uma molécula viva da antiga memória coletiva.
- Está a filosofar, mas talvez seja verdade o que acaba de dizer – concorda o moço.

     Cândido quase não o ouviu. As memórias irrompiam, como nascentes de um rio caudaloso. Prosseguiu:  // (continua)...

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