domingo, 28 de junho de 2015

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



Casa do juíz Pinto


A EMIGRAÇÃO E A LÍNGUA PORTUGUESA


     A língua portuguesa é, como toda a gente sabe, uma das línguas neolatinas, isto é, pertence àquele grupo de línguas que tiveram origem no latim, tal como o castelhano, o catalão, o galego, o francês, o italiano, o romeno e o provençal. Não é de admirar por isso que os emigrantes portugueses consigam – em relativo pouco tempo – aprender essas línguas: o seu sistema fonológico e sintático são idênticos. A língua inglesa e alemã já se tornam para nós portugueses, sobretudo para os adultos, mais difíceis de aprender. Vejamos este exemplo em três línguas: - Tenho cabelos loiros e olhos castanhos. // J’ai les cheveux blonds et les yeux bruns. // I have fair hair and brown eyes.
     Como se vê, na língua inglesa a sintaxe (disposição e combinação das palavras na frase) é diferente da sintaxe das línguas neolatinas. Quanto aos vocábulos… nem se fala! É raro encontrarmos semelhanças. Pneu, é pneu em francês e tire (ou tyre) em inglês; guiador, é guidon em francês e handlebars em inglês, etc. Uma coisa, porém, é aprender uma língua, outra coisa é falar essa língua corretamente, isto é, de acordo com a norma constituída. A nossa língua tem duas normas: uma em Portugal e outra no Brasil. Os países africanos de língua portuguesa: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, adotaram a norma de Portugal, embora surjam desvios bastante significativos, tanto na fonética, como na sintaxe. A norma portuguesa apoia-se nos falares cultos de Lisboa e Coimbra. Os emigrantes portugueses, na sua maioria, são oriundos de meios rurais, possuidores, por conseguinte, de um léxico muito limitado, embora rico de termos tradicionais, os quais constituem o seu património linguístico.
     Com o advento da emigração o léxico do emigrante enriqueceu-se substancialmente porque confrontado com realidades diferentes daquela a que estava habituado. A sua inserção num universo linguístico estranho, num meio por vezes hostil, mesmo de índole racial, levou-o a criar o seu “dialeto”, designado pelos especialistas de emigrês (este termo não é de modo algum pejorativo). Esta nova “língua” é constituída por vocábulos do português e da língua do país onde o emigrante trabalha: França, Alemanha, Suíça, Estados Unidos da América, Canadá, etc. Uma frase como esta, da língua francesa: «Il faut développer le Portugal», em emigrês apresentar-se-ia assim: «É necessário develupar Portugal.» Existe até um pequeno dicionário do emigrês e é impressionante a deturpação da nossa língua. No entanto, facilitou, e facilita ainda, a comunicação entre as comunidades emigrantes. Vamos exemplificar: quem, em Melgaço, tinha baixa por doença? Ninguém. Logo, o emigrante que trabalha em França não diz que está com baixa por motivo de doença, mas sim que está de arreta (arrêt). O salário é peia (paye), a moeda peça (pièce), o lugar é praça (place), subir é montar (monter), encontrar é trovar (trouver), registar uma carta é recomendar uma carta, a mala transformou-se em valisa. Ao ascensor chamam censor, ao desemprego chomage, ao contrato chamam contrata. Quando solicitam ajudam, dizem: - «Dá-me aqui um cu de mão (coup de main). A reforma é retrete (retraite); daí dizerem a Caixa da Retrete, em lugar de Caixa de Aposentações! Os emigrantes que se encontram em países de língua inglesa criaram o portinglês (português + inglês). Ao gelado chamam açucrim (icecream), farmar é dedicar-se aos trabalhos na quinta (to farm); afordar é estar em condições de pagar (to afford); à Beneficência Pública dão-lhe o nome de alferes (welfare); ao conhecido bar designam por barrum (bar room); o homem importante (big shot) passou a ser beguechato; o bacon (palavra ainda não traduzida para a nossa língua) é a beica ou beique; a cerveja é bia; o negócio (business) aqui é muito maltratado – vejam lá: bisnas! Para o frio e para o calor têm o arcandeixa, ou seja, «air conditioner». E ariape, isto é, despacha-te (hurry up) porque é tarde. Não sejas bambo (vagabundo = «bum») e trabalha. Como não se pode baquear, quer dizer: voltar atrás (to back up) vamos dizendo mais uma coisas – se o bossa (chefe) nos deixar, é claro. E como não somos gente de faibrar ninguém (subornar = «to bribe») vamos meter o breique (travão = «brake») na conversa porque isto pode dar checa (barraca = shack») e nem vendendo todas as minhas cheias (ações = «share») poderia pagar os estragos. Vamos então chinglar a nossa fachada (to shingle) antes que me chutem (to shot), isto é, que me atinjam com balas – mesmo que as mesmas sejam de borracha. Metamos então as palavras na clauseta (roupeiro = «closet») e clinemos (limpemos = «to clean») a nossa linguagem. Bebamos um copo (chávena = «cup») de chá, acompanhado de pipocas, que se compram na corna popa (corn popper). Para ir para a Universidade é necessário fazer a escola Alta (Higt School). O espírito (spirits) se for bebido com regra até faz bem. Como hoje estou «off», quer dizer, estou de folga, e não tenho os fletes (pneus) em baixo, vou colocar os meus glassas (óculos) e dar uma volta. Você vá para o gorele (que é como quem diz – vá para o inferno de Dante «go to hell). Como sou um grinone (emigrante recém-chegado = «greenhorn») e para ter algo na despensa tenho que comprar grosserias (artigos de mercearia = «groceries»), mas não posso comer muito senão ainda a imbulança tem de me levar ao hospital (apesar daí haver bonitas norsas, ou seja, enfermeiras). Para não levar o saco (ser despedido = «to be sacked») vou já pagar a lisa (lease) ao senhorio. Como não pretendo pinchar tempo aos leitores (to pinch = roubar) o melhor é ir-me embora, quipar (guardar = «to keep») a esferográfica ou até deitá-la no rabicho («rubbish» = lixo) e vocês tenham um bom tempo (divirtam-se = «to have good time»), tirem um tiquete para a Disneylândia e depois digam como foi. Eu limito-me a ver na tubo (televisão = «tube»).
     Além do francês-português e do inglês-português, poderia também falar do português africânder, do português-alemão, do português-holandês, do português-espanhol, etc. Talvez um dia volte ao assunto.


Artigo publicado no jornal A Voz de Melgaço n.º 941, de 15/6/1991

Sem comentários:

Enviar um comentário