domingo, 14 de junho de 2015

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



MELGAÇO: de 1950 a 1960.


     Como era Melgaço na década de cinquenta? Muita gente que viveu esse período ainda está viva, felizmente, e lembrar-se-á certamente desses tempos difíceis mas, de qualquer modo, saudosos. Aos que morreram e já são tantos – lembrá-los-emos com saudade. A escola primária da Vila (desculpem-me os leitores se eu falo mais da sede do concelho, mas foi aí que vivi a minha infância e juventude) situava-se mesmo ao cimo da praça principal (designada Terreiro) onde é hoje a agência da Caixa Geral de Depósitos. O senhor Abílio Domingues, castrejo, era professor da primeira e da segunda classe, e o senhor Manuel José Rodrigues, fenalense, era professor da terceira e quarta classe. O professor Rodrigues era nessa altura um homem novo (viria a ser mais tarde presidente da Câmara Municipal), cheio de energia e com uma vontade férrea de melhorar o ensino em Melgaço. O seu método de lecionar era severo, de uma austeridade imponente, mas quase sempre eficaz. O professor Abílio, homem quase a atingir a idade da aposentação, não dinamizava a sua aula, tornando-se esta morna e quase sem sentido (segundo informações que tenho, transmitidas por seus antigos alunos, o professor Abílio tinha sido um bom professor; a idade e o cansaço é que o tornaram indiferente e sem vontade). Em 1953, suponho, a escola primária passou para a antiga cadeia velha – no centro da Vila – e para substituir o professor Abílio foi nomeado o professor Ascenção Afonso (responsável também pelo Grémio da Lavoura).
     A garotada jogava futebol na avenida, pé descalço alguns, enquanto não aparecia a GNR obrigando todos a fugir – por pouco tempo, é claro! Na época das chuvas jogava-se hóquei com os caules das couves-galegas que nessa altura do ano eram arrancadas a fim de serem semeadas as batatas. O local do jogo era a praça do peixe. Essa praça tinha nas suas extremidades dois talhos: um pertencia ao senhor Manuel Alves, mais conhecido por Manuel da Mina, ou Mascote; o outro pertencia à senhora Germana do Leonel. No piso de baixo, virada para o Rio do Porto, onde se encontra agora uma pastelaria, existia a taberna da Dona Carmen, senhora de origem galega e esposa de um dos primeiros fotógrafos que houve em Melgaço. Nesse espaço da praça foram construídos mais tarde vários edifícios. Os miúdos que concluíam a quarta classe tinham o trabalho à sua espera. Os filhos de camponeses seriam camponeses; os filhos de comerciantes seriam, talvez, comerciantes (alguns deles, poucos, iriam para a cidade continuar os seus estudos); os filhos de sapateiros, alfaiates, barbeiros, etc., teriam essa profissão ou, em alternativa, iriam para a cidade arranjar emprego, sobretudo no comércio. Estas profissões, devido sobretudo ao excesso de artesãos, passavam nessa altura por uma grande crise. O fatinho só se vestia ao domingo para ir à missa, a barba cortava-se uma vez por semana, o cabelo aguentava o mais possível. As botas queriam-se fortes a fim de durarem vários anos. Os agricultores usavam tamancos. Existia, não nos esqueçamos, a profissão de soqueiro! Os engraxadores cobravam um escudo por engraxar os sapatos e mesmo assim os clientes eram escassos. Foi por esta ocasião que apareceu em Melgaço o “Carrocinha” com o seu burro e a sua carroça. Era tendeiro e engraxador. Cantava enquanto se deslocava: «lá vai, lá vai, a carrocinha…», com uma pronúncia caraterística, e um riso estranho. A fama conquistou-a como engraxador; o seu pano de puxar o brilho provocava uma chiadeira tremenda! O cliente pedia sempre: - «com chiadeira, senhor Carrocinha.» Havia em Melgaço bons artífices: os sapateiros senhor Cândido “Quinchoso”, senhor Abel da Rocha, senhor António de Oliveira “Cerinha”, senhor Amândio Fernandes “Castilha”, senhor Henrique Gonçalves “Abelhão”, senhor Armando Pereira “Caixa”…; os alfaiates senhor Arlindo Vilas, senhor José “Gorro”, senhor Ângelo Ribeiro (o mais malandro dos malandros, no bom sentido, naturalmente)…; os barbeiros senhor Júlio César de Sousa, conhecido por “António da Isaura” (cortava gratuitamente o cabelo aos rapazes para mais tarde serem seus clientes), senhor Augusto Domingues “Carlota”, senhor João Rocha “do Anti”, e na Calçada o tio do senhor Alfredo do Paço; os carpinteiros senhor Abel Rodrigues “Barrenhas”, senhor Fernando Pinto Barbosa “Robialac”…; os latoeiros senhor Raul Ferreira Cardoso “Cataluna”, senhores Amadeu e Edmundo Dias “Rato”, senhor Óscar Marinho, senhor Frederico Esteves… Outros havia, quer na Vila quer nas outras freguesias, mas de cujo nome não me recordo ou simplesmente desconheço. Os comerciantes eram tidos em grande conta, muito bem conceituados – tinham um estatuto médio na sociedade melgacense. Lembro-me do senhor Hilário Gonçalves, proprietário também do Cine-Pelicano, do senhor Ezequiel do Val, da senhora D. Silvana, do senhor Adão Marinho, das senhoras da Loja Nova, do senhor Manuel Lima, da viúva do senhor “Xinto”, do senhor Pereira, da Calçada…                 
     A autoridade civil era constituída pelo senhor presidente da Câmara Municipal, o senhor Doutor Juiz, o senhor Delegado Público. A autoridade religiosa era representada pelo senhor arcipreste (na altura era o senhor padre Carlos Vaz, pároco de Rouças). A autoridade militar, ou melhor, para-militar, era constituída por cinco ou seis praças da GNR e o seu comandante, com o posto de cabo. As Finanças também exerciam algum poder, sobretudo através dos seus fiscais. A cultura não física, nesse tempo, limitava-se ao cinema. Havia sessões às quintas-feiras à noite e domingos de tarde e à noite. Passavam no Cine Pelicano muitos filmes de cow-boys, de capa e espada, policiais… Estava na moda o Joselito (voz de rouxinol) e a Marisol. O Tarzan deliciava a malta nova; o Robin dos Bosques e seus maravilhosos companheiros davam lições de coragem e de fidelidade ao seu rei ausente. O Cantinflas fazia rir até os mais sisudos. Os filmes do Tótó, do Fernandel, dos irmãos Marx, e do inesquecível Charlot, deixaram na nossa memória momentos inefáveis. Os filmes inspirados na bíblia eram maravilhosos: «Os Dez Mandamentos» (EUA, 1956), «Sansão e Dalila» (EUA, 1950), etc. Um filme que fez chorar toda a população do concelho foi «Fátima». Os pastorinhos a serem interrogados pela autoridade, a dificuldade que tiveram em fazer-se acreditar, tudo isso provocava nos espectadores uma onda de choro sentido. Quando saíam do cinema ainda levavam os olhos cheios lágrimas. Enfim, recordações. Há tanto, tanto, para dizer. O cortejo das oferendas para o hospital da Santa Casa da Misericórdia; cortejo lindíssimo, com carros alegóricos, cheios de notas de vinte escudos, e de muitos, muitos chouriços, pedaços de carne de porco, fumada, vinho, batatas, alguns presuntos, eu sei lá! O “Santo Amaro” com as suas doidices engraçadas – era o rei D. Afonso Henriques, era D. Sebastião, era qualquer um (dizia-se que foram os gases da guerra civil de Espanha que provocaram tal doença – talvez!). O Augusto “Caçolas” que no domingo de Ramos levou para o convento das Carvalhiças um ramo maior do que ele próprio! Os senhores António “Trauliteiro” e Amadeu “Rato” que no carnaval faziam «cegadas» interessantíssimas. As festas, os bailes, os serões… As rivalidades entre freguesias e as lutas que se seguiam. O namoro, nesse tempo, era muito diferente do que é hoje. Disso tudo falarei para outra vez, por hoje chega.


Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 937, de 15/4/1991.

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