domingo, 24 de fevereiro de 2019

LEMBRANÇAS AMARGAS
 
romance
 
Por Joaquim A. Rocha





XXVIII

 Ele imaginou a realidade e saiu do lodaçal
 
 



     Mais lembranças amargas desfilarão perante vossos olhos, já cansados talvez de verter tanta lágrima; mas, que se poderá fazer? A riqueza e a felicidade andam tão mal distribuídas: uns têm tudo, outros não têm nada! As recordações servem de catarse, de alívio à dor. Por isso, eu nunca perco uma única oportunidade de projetar na tela imaginária as cenas da minha infância infeliz.



- Lembras-te de quando eu fiz cair o tio?

- Se lembro! Terias tu sete ou oito anos de idade.

- Tinha sete anos. A tia não me deixava sair da mesa enquanto não engolisse aquele caldo de farinha e couves com unto rançoso; nele podia-se enterrar uma colher que ela nem sequer se mexia, tal era a sua espessura. Eu então resolvi fugir; o tio, que se encontrava ocasionalmente em casa, partiu atrás de mim como uma flecha. Eu, porém, fui mais rápido, deixava-o propositadamente aproximar-se e depois, com fintas engenhosas, fugia-lhe como a lebre foge do cão. A avenida andava em obras, os calceteiros estavam a colocar paralelepípedos, e utilizavam um enorme cilindro em pedra granítica para depois lhes passar por cima, a fim de ficarem todos ao mesmo nível; eu aproximei-me dele e esperei que o tio chegasse perto de mim – quando se encontrava a um metro de distância, mais ou menos, deu um enorme salto para me agarrar; baixei-me e de imediato dou uma guinada no sentido oposto ao dele. Coitado, bateu com todo o seu corpo contra o cilindro.

- Foram buscá-lo desmaiado!

- É verdade. O choque foi de tal modo violento que esteve cerca de uma semana na cama.

- Não me lembro se te bateram.

- Não se atreveram. Ficaram-me com medo e raiva. A partir daí a tia nunca mais me obrigou a comer aquele caldo de porcos, eu preferia passar fome.   

- Ainda bem que saíram de casa, a nossa relação com eles estava a tornar-se insustentável.
 

 - Sabes que ia ficando sem um dedo da mão na barbearia do tio?
- Sem um dedo?

- Sim. Eu e a prima Laura disputávamos um pedaço de pão, que bem ele cheirava, e como nenhum de nós queria ceder, então resolveu-se cortá-lo ao meio.

- E o tio, não interveio?!

- Ele não se encontrava presente, tinha ido beber uma malga com uns amigos, ou clientes. Claro que fui eu a cortar o pão; fugiu-me a faca e cortou-me o dedo; depois fui a correr para o hospital, o que me valeu foi o enfermeiro, pôs-me uns pensos e logo chamou o médico para me operar, é por isso que tenho um dedo da mão mais curto e mais magro do que o outro.  

- Deste uma queda pelas escadas de pedra, ias morrendo queimado, doente, depois o dedo. De facto, tudo te tem acontecido!

- Estás a esquecer-te que certo dia ia morrendo afogado; o Trufas empurrou-me para o poço mais fundo do regato, ali perto de onde ele vai desaguar, salvei-me por pouco, caramba! Os pés pareciam de chumbo, o corpo não queria subir, não podia respirar, fica-se completamente perdido. E como o destino é irónico: quem acabou por morrer afogado no rio anos depois foi ele! Levei também uma lapada na cabeça, até vi as estrelas.

- Uma lapada?!

- Sim, com uma pedra atirada pela tia Ana da Ponte, caseira do senhor Renato.

- Forte razão devia ela ter para te atirar com a pedra.

- Eu andava a roubar cornecha, ou cornelho, uns pauzinhos pretos que se tiravam do centeio, lembras-te? Depois vendiam-se na feira, ou até na farmácia; segundo diziam os feirantes, compravam-na para depois os laboratórios fazerem medicamentos.

- Já me recordo disso; até tiveste de ir ao hospital levar uns quatro ou cinco pontos!

- O raio da mulher tinha cá uma pontaria! E logo havia de acertar em mim; olha que estávamos lá uns cinco ou seis.

- Tu eras um autêntico “terrorista”…

- Era como os outros; simplesmente como não tinha ninguém que me defendesse mostrava-me mais agressivo do que aquilo que na realidade era.

- Tempos difíceis.
 











- Para cúmulo da desgraça, depois dos tios terem ido em 1951 ou 1952 viver para a capital do país, apareceu a nossa irmã com a barriga grávida.



- Teve a criança passado dois meses.

- E nós tivemos de tomar conta do cachopo, para ela poder ir ganhar o sustento para os dois; tu, no entanto, ias brincar e obrigavas-me a cuidar dele, imperava a lei do mais forte e do mais velho. Eu bem o embalava, a ver se dormia, cerrava-lhe docemente as pálpebras, cantarolava, mas o que ele fazia era chorar; coitado, devia estar todo borrado, eu não sabia mudar-lhe as fraldas, uns trapos, só tinha sete anos de idade, passou maus bocados e fez-me a vida negra também. Quando ele tinha cerca de ano e meio ia-o matando! 

- Matando-o. Como?!

- Levei-o para a avenida das tílias, deixei-o sozinho e fui jogar a bola; quando me lembrei dele andava o pobre rapaz em cima do muro; corri como um louco, mas já não fui a tempo: caiu como um tordo. Pensei que se tinha matado, felizmente pouco se magoou.

- «À criança e ao borracho pões-lhes Deus a mão por baixo», lá reza o ditado.

- E a fome negra que passámos nessa altura!

- É verdade; chegávamos da escola a casa para comer e nada! Uma ocasião demos com umas bolachas na despensa, mas a maldita estava fechada à chave. Tu, como tinhas uns braços magrinhos, e o móvel de pinho já estava mais carcomido e esburacado do que a carcaça de um boi selvagem depois de longamente devorado pelos chacais, ainda conseguiste apanhar uma ou duas; porém, não muito tempo depois, deu-se o bom e o bonito quando a tua irmã chegou a casa. Acusou-nos de lhe andarmos a roubar as bolachas que eram do filho, que não podia confiar mais em nós, o demo!     

- Ainda estiveram lá em casa cerca de dois anos. As encrencas que ela arranjou por causa das nossas galinhas. Tinha saído recentemente uma lei a proibir as galinhas e porcos de andarem na rua, mas a tua mãe não a quis acatar. Resultado: foram as duas, mãe e filha, chamadas ao posto da GNR, estiveram quase a entrar na prisão, até um tenente do posto de Valença veio aqui à pressa para resolver o assunto! Depois ela partiu para Lisboa com o filho, pobre criança, foi um grande alívio para nós, eu fiquei mais livre, com menos responsabilidades. 

- Por pouco tempo, pelos vistos.

- É verdade. Logo a seguir a mamã amigava-se com o facínora do feiticeiro. Foi um passo muito mal dado; fez-nos sofrer imenso. Tu, mesmo assim, não estiveste muito tempo com ele, mas eu…

- Eu pus-me a andar. São tempos para esquecer.

- Não posso. São momentos que se gravam para sempre na nossa memória, só a morte ou a loucura os apagará.

- Tens uma tendência para dramatizar tudo.

- Eu? És insensível; sais, como diz a mamã, ao teu pai. Sabes que me passou pela cabeça matá-lo? Era um padrasto cruel. Com as suas bruxarias assustava-me imenso. A tua mãe estava quase sempre com a pinga, aquela casa passou a ser a casa do horror, do espiritismo, da feitiçaria, eu ia dando em doido. À noite tinha pesadelos, tudo me assustava. Quando fiz a 4.ª classe da instrução primária ia vestido com um fato de macaco e nos pés levava umas alpercatas galegas. Parecia uma miniatura de homem, um aprendiz de mecânico. Os miúdos riram-se de mim, o meu professor ficou pensativo. E eu, impotente, nada podia fazer contra a adversidade. Fugir. Restava-me fugir. E fugi, mas para dentro de mim próprio!

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